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Imigrantes durante uma das sessões do “La Dictée des Cités”: maior integração por meio do jogo do ditado | Capucine Granier-Deferre/NYT
Imigrantes durante uma das sessões do “La Dictée des Cités”: maior integração por meio do jogo do ditado| Foto: Capucine Granier-Deferre/NYT

Talvez não haja outra atividade na escola francesa que cause mais náuseas e suor nas mãos com tanta rapidez quanto o temido ditado. O professor lê um trecho de uma famosa obra de literatura francesa e o aluno o escreve, palavra por palavra. E cada erro é avaliado.

Para uma língua em que a palavra escrita tem pouca semelhança com a falada, esse exercício é, ao mesmo tempo, o terror lendário de gerações de crianças em idade escolar e um rito de passagem – até mesmo de doutrinação – para se tornar um francês verdadeiro.

Por isso, muitos franceses considerariam a ideia de passar uma agradável tarde de sábado fazendo ditados por diversão, nada menos do que “fou”, ou loucura.

Mas foi o que cerca de 60 pessoas de todas as idades e classes sociais – avós e crianças, esposas e maridos, adolescentes e imigrantes – fizeram recentemente. E não apenas uma vez.

“Lembro-me que era o único exercício da escola onde a nota podia ser menor que zero. Era terrível, porque cada erro em uma palavra era descontado. O ditado deve ter traumatizado inúmeras crianças”

Os ditados coletivos, conhecidos como “La Dictée des Cités”, começaram há três anos. Hoje eles vão de um subúrbio de Paris tomado de imigrantes para outro, todos os sábados, aceitando qualquer um que queira participar.

Essas tardes são a inspiração de Abdellah Boudour, 30 anos, funcionário público franco-argelino de Argenteuil, subúrbio no noroeste de Paris, que teve a ideia através de seu trabalho contra as desigualdades vividas pelos jovens de sua associação, a Force des Mixités.

Quando conheceu Rachid Santaki, 42 anos, escritor de suspenses do subúrbio de Saint-Denis, os dois decidiram transformar o aterrorizante exercício de escola em uma competição divertida para as pessoas do bairro, oferecendo acesso a todos, inclusive imigrantes, que quisessem adotar e dominar a língua francesa.

“Começamos com 40 cadeiras nas ruas do meu bairro e terminamos com um recorde: mais de mil pessoas no ano passado em frente à Basílica de Saint-Denis”, disse Boudour.

Crianças esperam para receber livros de gramática para participarem da competição de ditadosCapucine Granier-Deferrre/NYT

O evento normalmente reúne de 60 a 200 pessoas e também percorre várias cidades da França. “Ninguém esperava que fosse funcionar tão bem, mas era uma forma de reunir pessoas em torno de uma coisa comum, ou seja, o amor pela língua francesa”, disse Boudour.

Identidade

Boudour e Santaki passam por toda a periferia de Paris, de ginásios até cantinas escolares, para ditar passagens da literatura nacional, escolhendo os textos de acordo com a história do bairro ou os nomes das ruas.

Muitas vezes escolhem clássicos, trechos de obras icônicas de Victor Hugo, como “Os Miseráveis”, ou “Madame Bovary” e “A Educação Sentimental”, de Gustave Flaubert.

“Alguns vêm pela nostalgia; outros querem melhorar o francês e há quem venha só atraído pela sedução do lucro porque oferecemos brindes aos vencedores”, disse Santaki.

A obsessão francesa de dominar cada aspecto de sua língua tem uma qualidade quase chauvinista: às vezes, estranhos, mesmo sem solicitação, corrigem a pronúncia ou escrita de estrangeiros em voz alta.

O conceito do ditado não fica muito longe do campeonato de soletração americano, mas ele está mais profundamente enraizado na identidade nacional.

“Era também uma forma de selecionar as pessoas. No início do século XIX, por exemplo, Napoleão Bonaparte fez o ditado obrigatório para a contratação de funcionários públicos”, disse Daniel Luzzati, linguista e autor de um livro sobre a ortografia francesa.

Os textos redigidos são corrigidos por voluntáriosCAPUCINE GRANIER-DEFERRE/NYT

“Era uma forma de mostrar que você pertencia à nação francesa”, acrescentou.

Drama escolar

Não menos importante, a rigidez do ditado também é objeto de longos debates sobre seu valor heurístico como método de aprendizagem.

“Lembro-me que era o único exercício da escola onde a nota podia ser menor que zero. Era terrível, porque cada erro em uma palavra era descontado. O ditado deve ter traumatizado inúmeras crianças”, disse Yoni Diibril, 28 anos, que participou de uma sessão recente.

Apesar da reputação, ele se tornou um exercício popular, em 1985, quando o jornalista cultural francês Bernard Pivot começou seu próprio programa de televisão, no qual fazia ditados.

“Não havia notas. Era tipo um jogo e ainda dava para testar a gramática e todas as dificuldades e armadilhas da língua francesa”, recorda-se Pivot em uma entrevista.

Quando Boudour e Santaki (nenhum deles têm diploma do ensino médio) decidiram levar o exercício para as ruas, também o viam como uma maneira de democratizar a língua e de entreter as pessoas.

“De certa forma, acabamos com os sacramentos da literatura francesa, tornando-a mais acessível a todos. É um jogo, mas mesmo assim as pessoas escrevem e se interessam pelo texto em si e, portanto, praticam o francês”, disse Santaki.

Não faz muito tempo, em Fontenay-sous-Bois, a leste de Paris, voluntários distribuíam canetas e papel e Santaki citou as regras antes de começar a ler.

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Alguns participantes escreveram a data e até mesmo o título “La Dictée des Cités” em sua página; outros chegavam até mesmo a sublinhá-lo, como costumavam fazer na escola.

“Sinto o mesmo estresse de quando fazia meus exames. É tão bobo que decidi vir hoje”, disse Aurore Tangre, enfermeira de 32 anos.

Não muito longe dela, Françoise Garcia, 74 anos, professora aposentada, com um forte sotaque do sul da França, riu nervosamente.

“Sou dos velhos tempos e de uma cidadezinha pequena. Era uma época em que fazíamos ditados todas as manhãs e, se você cometesse muitos erros, a professora dava um chute no traseiro”, disse ela.

Prêmios

Quando Santaki começou a ditar um texto do escritor Hector Malot, que viveu e morreu em Fontenay-sous-Bois, andava ao redor das mesas, como um professor faria.

Todas as cabeças abaixadas, as mãos cuidadosamente rabiscando frases, pausando para escutar atentamente quando ele repetia o texto. Depois de meia hora, as cópias foram coletadas e corrigidas.

Aqueles com o menor número de erros ganham uma camiseta ou um tênis. Outros recebem um romance ou um livro de gramática. Para Santaki, a recompensa é o sucesso do evento.

“De certa forma, voltamos à República Francesa, que o público achava que a tinha abandonado”, disse ele.

“Essa é a força da língua francesa; é um primeiro passo. Sei que o ditado pode parecer uma besteira para quem está de fora e que não vai resolver todos os problemas dos subúrbios, mas é um começo.”

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