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 | Hedeson Alves/Arquivo Gazeta do Povo
| Foto: Hedeson Alves/Arquivo Gazeta do Povo

As quase 400 páginas do documento que deve orientar os currículos das escolas brasileiras, divulgado incompleto na última quinta-feira (6) pelo Ministério da Educação (MEC), esconde uma história de tensão entre diversas ‘facções’ do setor de educação no país.

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A lacuna grave para a reforma do ensino médio

O cenário não é preto no branco, mas a questão pode ser dividida, resumidamente, entre duas vertentes principais. De um lado, estão os vencedores desta batalha, pesquisadores e especialistas internacionais e das empresas. Estes são considerados ‘mecanicistas’ pelo grupo dos ‘vencidos’, formado por outra série de pesquisadores e de associações de professores, considerados ‘corporativistas’ pelos primeiros.

Depois de mais de dois anos de discussões, consulta pública com 12 milhões de contribuições, seminários dos quais participaram 9 mil professores, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), nome oficial do documento, é classificada pelo grupo dos vencidos como um texto imposto de cima para baixo. Já, pelos vencedores, como fruto de um consenso possível no momento atual de polarização entre diferentes linhas (quase entre direita e de esquerda).

“O documento não apresenta princípios (...) mas uma série de conteúdos alfanuméricos . O que acontece? (...). As avaliações cobram aquele conteúdo alfanumérico e o professor não consegue desenvolver os conhecimentos que o mundo de hoje altamente tecnológico oferece”.

Guilherme do Val Toledo PradoFaculdade de Educação da Unicamp

A BNCC mostra claramente essa tentativa de agradar todo mundo. No início, como queriam os ‘perdedores’, o documento apresenta dez competências a serem desenvolvidas em sala de aula, colocadas de forma aberta, como princípios gerais: os professores devem ajudar os alunos a “valorizar e utilizar os conhecimentos historicamente construídos”; a “exercitar a curiosidade intelectual”; a “argumentar com base em fatos”; a “conhecer-se”; a “agir pessoal e coletivamente com autonomia”, e assim por diante.

Mas, depois, vêm o ‘osso duro’ de roer para quem critica a forma empresarial e de resultados de gerir a educação. A cada ano, da educação infantil ao 9º ano do ensino fundamental – ainda não saiu a parte do ensino médio, outra grande chaga para muitos (leia abaixo) –, o documento exige um conteúdo concreto a ser ensinado, descrito por um código alfanumérico, por exemplo, “EF67MA01”, que significa “ensino fundamental”, “sexto e sétimos anos”, “matemática” e, o ‘01’ final, a primeira habilidade proposta para a disciplina.

Qual é o problema? Para os pesquisadores do grupo ‘perdedor’, a rigidez na descrição das disciplinas tira a liberdade do professor em sala de aula para ir além do proposto – e não leva em conta as mais de 12 milhões de contribuições propostas ao longo da construção da Base. “O documento não apresenta princípios de trabalho com conhecimento, mas uma série de conteúdos alfanuméricos que é preciso cumprir. O que acontece? Aqueles códigos alfanuméricos são transformados em descritores para as avaliações em larga escala [Ideb, Prova Brasil, etc]. As avaliações cobram aquele conteúdo alfanumérico e o professor não consegue desenvolver os conhecimentos que o mundo de hoje altamente tecnológico oferece”, dispara o pesquisador Guilherme do Val Toledo Prado, da Faculdade de Educação da Unicamp.

“O que se vê em outros países é que, para que a educação seja de qualidade, é fundamental explicitar com clareza quais são os direitos de aprendizagem da criança e do adolescente. A autonomia do professor é uma autonomia nos métodos que ele vai usar para que esse direito seja assegurado”.

Claudia CostinEx-diretora de Educação do Banco Mundial, professora de Harvard e da FGV

Não faltam argumentos para responder a essa e a outras críticas da parte do grupo que acha que a Base foi um primeiro passo para uma educação de qualidade, como fazem outros países bem-sucedidos nesse campo. “Há uma visão que eu acho incorreta que um currículo tiraria a autonomia do professor em sala de aula. E talvez isso se deve ao fato de que muitas vezes a educação é pensada na lógica do adulto que ensina e não na criança e no jovem que aprende. O que se vê em outros países é que, para que a educação seja de fato de qualidade, é fundamental explicitar com clareza quais são os direitos de aprendizagem da criança e do adolescente”, explica Claudia Costin, ex-diretora de Educação do Banco Mundial, professora de Harvard e da FGV. “A autonomia do professor é uma autonomia metodológica, nos métodos que ele vai usar para que esse direito seja assegurado”.

‘Demonização’ do professor

A impressão, para quem não gostou do produto final, é o de que a Base tem um discurso de denúncia contra os professores, como se eles fossem os únicos culpados pelos índices educacionais no país e, agora, tendo um guia para ‘cobrar’, tudo vai dar certo. “Não é verdade dizer que os professores ensinam mal porque não têm currículo. Além de que todos seguem currículos, esse é um discurso que desconfia do professor, como se eles não quisessem trabalhar ou ensinar”, defende o professor Ocimar Alavarse, da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de São Paulo (USP).

Há outros fatores, à revelia do professor, que influenciam na aprendizagem da criança, como nível socioeconômico e de escolaridade dos pais, infraestrutura da escola, entre outros. “Há uma ilusão, tanto para os que são contra a Base para os que são a favor, que o fato de eu prescrever isso vai se realizar. Faltou mais debate, principalmente envolvendo as faculdades que formam professores”, afirma Ocimar.

Pesquisadores como Priscila Cruz, do movimento Todos pela Educação, por outro lado, não consideram que a base traz esses pressupostos sobre o professor dessa maneira. Para ela, a liberdade do professor não está em risco e, agora, como o documento é fruto do consenso possível, é preciso boa vontade de todas as partes para, daqui a alguns anos, colher os frutos desses esforços.

*** Sem o ensino médio: lacuna grave

Em setembro do ano passado, o governo federal propôs a reforma do ensino médio, por meio de uma medida provisória, com a justificativa de que não haveria mais tempo para debater e sim para agir. Como a reforma depender da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), o fato de o MEC ter apresentado documento sem a parte do ensino médio foi duramente criticada. “Como o governo acelera uma reforma para o ensino médio e não acelera o currículo para essa etapa?”, pergunta o professor Ocimar Alavarse, da Faculdade de Educação da USP.

*** Pontos importantes da BNCC

* É mais específica sobre o que deve ser ensinado em cada ano, desde a educação infantil até o fim do ensino fundamental.

* Antecipa em 12 meses o que era previsto e define que as crianças saibam ler e escrever ao final do 1º do ensino fundamental.

* Conteúdos de matemática do 4º ano do ensino fundamental, como probabilidade e estatística, passaram a ser no 1º ano.

* Não inclui a sugestão de definir o currículo do ensino religioso facultativo e tampouco a de mencionar, em sala de aula, “identidade de gênero” e “orientação sexual”.

*** Frases sobre a base

“Tecnicista”

“A descrição de listas de objetivos é uma retomada do modelo curricular chamado de “tecnicista” e que o Brasil experimentou nos anos 70 (...). A decisão sobre o que e como ensinar que orienta essa seleção é também uma decisão sobre que tipo de pessoa se pretende formar, sendo mais do que uma decisão técnica, uma decisão de natureza política que a suposta neutralidade esconde”.

Mônica Ribeiro da Silva

Professora da Faculdade de Educação da UFPR

O desafio em sala de aula

“O desafio é a forma da implementação da base curricular. A base indica os direitos à educação, mas não diz o “como”, não entra em metodologias. Os estados e municípios têm a grande responsabilidade de aplicar esses direitos que a base garante para a educação infantil e fundamental”.

Patricia Mota Guedes

Gerente de Pesquisa e Desenvolvimento da Fundação Itaú Social

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