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 | Illustration by Thomas Paterson for The New York TimesThomas Paterson
| Foto: Illustration by Thomas Paterson for The New York TimesThomas Paterson

Em agosto passado, no início do ano letivo universitário, eu ainda não tinha terminado o livro que começara na praia, durante as férias, "Barbarian Days: A Surfing Life", de William Finnegan e, por isso, resolvi levá-lo para a aula de redação do primeiro ano. 

Tentei ler alguns trechos em voz alta para quebrar o gelo; achei que meus alunos fossem se identificar com um em especial, no qual o escritor especula se poderia transformar suas experiências no surfe em algo que valesse a pena ler.

"Nossas paixões e frustrações peculiares, pequenos triunfos e grandes peculiaridades, mais os personagens que habitam a água, mais as fotos, provavelmente manteriam um blog em funcionamento."

"Qual a sua opinião sobre isso? O que acham que ele quis dizer com ‘grandes peculiaridades’?".

Silêncio. Um fiozinho de areia que eu "roubara" da Califórnia escorreu por entre as páginas e se espalhou na mesa. Talvez eles estivessem tentando imaginar o que é um blog.

A minha expectativa é sempre a de que os calouros se sintam pelo menos tão à vontade com a autoexpressão como os blogueiros faladores e os escritores de outrora – afinal de contas, tem que haver algo a mais que selfies estilizadas no feed de suas redes sociais.

Entretanto, todo ano descubro que fazê-los admitir que se dedicam a alguma coisa ou se sentem frustrados com outra, ou que têm uma pequena peculiaridade (quanto mais uma grande), é praticamente impossível. 

E como alguém que já leu milhares de composições estudantis ao longo da última década, poucas coisas são mais decepcionantes – e conforme as páginas vão aumentando, desalentadoras mesmo – do que aquelas escritas por jovens de 18 anos que não veem as próprias características. Mas por que não conseguem enxergá-las?

Uma das razões se revela quando alguém finalmente faz a pergunta esclarecedora: "Quer dizer que podemos escrever usando o pronome ‘eu’?".

A classe me olha, assombrada. Acontece a mesma coisa todo ano. Em algum ponto do caminho, esses jovens ouviram de seus professores que sua essência na escrita devia se dissociar das pessoas que eram em seus telefones ou, como a escritora Grace Paley talvez tivesse dito, "com a família e na rua". 

Eles vivem um "eu" particular que conhece a dedicação e a frustração; eu os vejo mandando mensagens em aula, conversando, rindo e às vezes chorando pelos corredores. Usam camiseta com nome de banda, geralmente da minha época, o que me leva a crer que têm bom gosto. Eu os vejo ler.

Mas quem quer que sejam em particular, quando tenho o primeiro contato com sua escrita, percebo que só usam a voz passiva: "O texto foi lido", "A prova foi feita".

Não aparece um "Eu li o texto", ou "Eu fiz a prova" – e nunca, jamais um "Adorei o texto com um entusiasmo peculiar!".

É verdade que o estilo de um aluno não é tudo e que grande parte do que chamamos de "boa escrita" não pode ser ensinado (ao contrário da ruim). A pessoa pode muito bem ser dedicada a alguma coisa – uma banda nos anos 90, surfe, religião – sem ter a capacidade de representá-la em palavras.

Porém, minha experiência com os alunos me faz suspeitar que os anos e anos de "textos sendo lidos" e "provas sendo feitas" incutiram neles a crença de que seus gostos e desgostos não importam muito para nós, contanto que saibam as respostas para nossas perguntas e passem nas provas. 

Ao escreverem tão passivamente e com uma distância que aprenderam ser apropriada e "objetiva" sobre tópicos nos quais não parecem ter muito interesse, esses jovens me mostram que ainda estão esperando que algo importante ou verdadeiro aconteça a eles.

Talvez achem que só aqueles que passaram por uma situação marcante – como os alunos que sobreviveram ao ataque de Parkland, na Flórida – conquistaram o direito de ser ouvidos. É difícil imaginar qualquer um daqueles jovens ativistas escrevendo algo como "O protesto foi realizado porque o Congresso foi comprado e armas foram adquiridas".

Mas o que dizer das paixões e frustrações peculiares, experiências e ideias que incutem particularidades em um determinado coração?

Dez anos lecionando para escritores principiantes me ensinaram muita coisa. Primeiro, precisamos valorizar mais a vida completa e complexa dos jovens: de onde vêm, como se expressam. Eles vivem vidas que merecem nossa atenção e reconhecimento.

Segundo, precisamos encorajá-los a levar a sério a vida que levam, mesmo que venham a entender – tanto através da educação formal como da falta dela – que esperamos muito mais deles. Com isso, podemos ajudá-los a aprender mais sobre si mesmos também.

Algumas frases do grande escritor John McPhee me ajudaram a consolidar essas lições ao longo dos anos. Fazendo uma análise na New Yorker, em 2011, ele escreveu: 

"Uma vez listei todos os artigos que escrevera em vinte, trinta anos, e fiz uma marca ao lado daqueles que eram relacionados a coisas que me interessavam antes de começar a faculdade; no mínimo 90 por cento do material ficaram de fora".

Sempre digo aos meus alunos que acho essas palavras reconfortantes. Como escritor, passei mais de vinte anos avaliando as alegrias e tragédias, a vergonha e a dor, o compromisso com o esporte e os estudos dos meus anos pré-universitários. 

Uma boa parte do meu trabalho continua a me levar ao norte da Flórida, onde, quando eu era jovem, meu pai foi morto por um motorista bêbado. As histórias que continuo a descobrir ali – sobre justiça, raça e dependência – começaram quando eu tinha cinco anos, continuaram na adolescência e permanecem na idade adulta.

McPhee e Finnegan – que conta que, aos treze anos, descobriu no mar obliterador que "as fronteiras do pensável estavam silenciosamente ganhando terreno" – me dizem que não há motivo para eu deixar de ir à Flórida e me interessar pelo que acontece lá.

No início deste semestre, li algumas passagens do clássico invernal "Sonhos Árticos", de Barry Lopez; as descrições são incomparáveis, ainda que o próprio cenário continue indizível: 

"A paisagem física é desconcertante em sua capacidade de transcender qualquer compreensão, tão sutil em sua expressão quanto na transformação da mente, e muito maior que nosso entendimento; no entanto, ainda assim se faz reconhecível".

Esta é a lição do semestre para os meus alunos. Olhe ao redor, identifique o que lhe impressiona; olhe para dentro de si e identifique suas particularidades, veja como suas próprias fronteiras continuam a se expandir. Não se preocupe, você nunca vai saber até que ponto o mundo o transcende e qual a sua capacidade de descrevê-lo. Eu certamente não sei – e tenho 41 anos! Só não se esqueça de que você vem tentando entender o mundo e triunfar nele desde que se conhece por gente, literalmente. Agora vá lá e escreva.

*Scott Korb é diretor do programa inaugural de Redação da New School em Nova York.

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