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Ideia de dedicar um curso ao estudo do “golpe de 2016” partiu do professor Luís Felipe Miguel, do curso de Ciências Políticas da Universidade de Brasília (UnB). | SM/DNSERGIO MORAES
Ideia de dedicar um curso ao estudo do “golpe de 2016” partiu do professor Luís Felipe Miguel, do curso de Ciências Políticas da Universidade de Brasília (UnB).| Foto: SM/DNSERGIO MORAES

Após anúncio pela Universidade de Brasília (UnB) da criação de um curso sobre o “golpe de 2016”, diversas universidades brasileiras manifestaram interesse em ofertar cursos ou disciplinas voltados ao estudo do impeachment de Dilma Rousseff pela perspectiva de um golpe de estado.

Segundo levantamento da reportagem, mais de dez instituições públicas estão oferecendo cursos para analisar o processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, aberto em 2016 após o plenário da Câmara dos Deputados acolher denúncia de crime de responsabilidade fiscal contra a petista, pela ótica do “golpe”. 

“O impeachment de Dilma seguiu todas as regras processuais cabíveis regulamentadas pela Constituição, com plena sansão do Supremo, cuja maioria dos membros foi indicada por gestões do PT”, destaca Rodrigo Jungmann, doutor em filosofia e professor na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). 

“São cursos que estão mentindo, apresentando uma versão dos fatos que qualquer exame minimamente sensato mostra que não tem qualquer procedência”, completa. 

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A inexistência de um golpe de estado também é defendida por José Matias Pereira, professor de Administração na UnB e autor do livro “Tempestade Perfeita”, que retrata o momento político brasileiro que culminou no impeachment.

“Todo o processo foi feito com base nos preceitos constitucionais e foi dado um amplo direito de defesa. Tínhamos uma crise de governabilidade e, quando isso acontece, você tem que encontrar uma saída”, explica. “A narrativa de golpe não é cabível”, continua. 

O jurista Alexandre Magno, especialista em direito educacional, acredita que as universidades se excederam ao criar cursos sobre o “golpe”. 

“Isso vai contra o princípio do neutralismo estatal, de que as entidades estatais não podem ter posições políticas ou ideológicas”, afirma. 

Para ele, outra consequência do uso da palavra “golpe” sem questionamentos é a ofensa à liberdade de opinião dos alunos. “O aluno que considera o processo de impeachment legítimo fica obrigado a se manifestar de forma contrária à sua própria consciência”, diz.

Origem

A ideia de dedicar um curso ao estudo do “golpe de 2016” partiu do professor Luís Felipe Miguel, do curso de Ciências Políticas da Universidade de Brasília (UnB). O curso “O golpe de 2016 e o futuro da democracia no Brasil”, segundo o conteúdo programático, pretende estudar a “fragilidade” do sistema político no Brasil e investigar a “agenda de retrocesso” de Michel Temer. De acordo com a ementa, o curso ofertado pela UnB tem três objetivos: 

- “Entender os elementos de fragilidade do sistema político brasileiro que permitiram a ruptura democrática de maio e agosto de 2016, com a deposição da presidente Dilma Rousseff”

- “Analisar o governo presidido por Michel Temer e investigar o que sua agenda de retrocesso nos direitos e restrição às liberdades diz sobre a relação entre as desigualdades sociais e o sistema político no Brasil” 

- “Perscrutar os desdobramentos da crise em curso e as possibilidades de reforço da resistência popular e de restabelecimento do Estado de direito e da democracia política no Brasil” 

A divulgação do curso levou o Ministério da Educação (MEC) a recorrer à Advocacia-Geral da União, ao Tribunal de Contas da União, à Controladoria-Geral da União (CGU) e ao Ministério Público Federal (MPF) para investigar uma possível prática de improbidade administrativa pela universidade. De acordo com o MEC, o curso pode ser configurado como “proselitismo político e ideológico”.  

“Evidentemente se trata de uma tentativa de ideologizar no sentido de favorecer uma corrente política. Eles fazem isso na universidade com a intenção, como se fazem nos regimes socialistas, de reconstruir a história, perpetuando essa mentira de que houve um golpe. É uma forma de tentar mentir no presente e fazer com que essa mentira se prolongue pelo futuro”, diz Jungmann. 

Debate

A repercussão chegou até a ex-presidente Dilma Rousseff: após o MEC anunciar que investigaria a situação, a ex-presidente trocou farpas com o ministro da Educação, Mendonça Filho, pelo Twitter. 

“Os atos do pseudo-ministro são uma terrível agressão à autonomia universitária, à cultura acadêmica, à livre circulação de ideias e à própria democracia. É abuso típico dos estados de exceção. os maiores inimigos da cultura e da educação”, disse Dilma.

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Mendonça Filho respondeu à ex-presidente; para ele o PT estaria usando recursos públicos para “propagar mentiras, manipular fatos e formar militância”. 

“Faço uma pergunta pública a ex-presidente Dilma. Em nome da autonomia universitária ela defenderia a criação de uma disciplina intitulada ‘O PT, o petrolão e o colapso econômico do Brasil’?”, questionou. 

Nas redes sociais, Mendonça também criticou o professor Luís Felipe Miguel, criador da proposta do curso, e reprovou o “uso do espaço público para promoção de militância político-partidária” na UnB. 

Em seguida, a Comissão de Ética Pública da Presidência informou que o ministro deveria prestar esclarecimentos em processo que apura se houve abuso de autoridade no exercício do poder ao se manifestar publicamente contra Miguel. 

O questionamento de uma hegemonia partidária nas universidades também é destacado por Rodrigo Jungmann, da UFPE. 

“Qualquer curso que se pretenda criar em uma universidade, por razões regimentais, tem que passar pelo colegiado do departamento que ministra o curso”, explica. 

“E como esses colegiados são maciçamente dominados pela esquerda, é muito improvável que alguém tivesse uma disciplina, por exemplo, sobre o petrolão do PT ou o mensalão. Muito provavelmente não seria aprovado pelos colegiados, diante da hegemonia incontestável da esquerda”, completa. 

Por outro lado, o processo de aprovação de cursos e disciplinas é apontado por José Matias Pereira, da UnB, como parte de debates que garantem diversidade de ideias no meio acadêmico. 

“Na universidade você vive em um ambiente com condições, manifestações e ideias contraditórias. Então, para o mundo acadêmico, disciplinas como essa absolutamente não incomodam ninguém.” 

Segundo Pereira, o caráter optativo da disciplina oferece uma possibilidade de discussão aos interessados no tema sem prejudicar a formação geral dos estudantes. 

“Se fosse uma disciplina obrigatória, confesso que ficaria preocupado. Mas sendo uma disciplina optativa, quando você dá oportunidades para as pessoas refletirem sobre determinados temas, você permite que ela caminhe no sentido de amadurecer no sentido profissional e de formação”, explica. 

“O importante é que o aluno saiba fazer suas escolhas e a partir delas tirar proveito para que possa ser produtivo para ele”, continua. 

Os limites da autonomia universitária

Para a UnB, o curso sobre o “golpe” é protegido pelo princípio de autonomia universitária. De acordo com a Constituição Brasileira, esse princípio consiste na “capacidade de autodeterminação e de autonormação” da universidade dentro dos limites estabelecidos pelo poder que a constitui. Ainda segundo documento, “universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial”. 

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A autonomia didática e científica das universidades garante a capacidade de determinação dos conteúdos a serem ensinados sem controle central do governo. Em contrapartida, deve respeitar os princípios de gratuidade do ensino público, gestão democrática, garantia do padrão de qualidade e pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas. 

“Se você não tiver na universidade autonomia para abordar qualquer tipo de problema, vai estar restringindo a liberdade acadêmica de pesquisa”, defende Antonio Carlos Mazzeo, pós-doutor em filosofia política e professor na USP. 

Mas a autonomia universitária também desperta ressalvas: para Rodrigo Jungmann, o argumento pode ser uma forma de justificar doutrinação. 

“Quando surge esse discurso voltado para a questão da autonomia, temos que nos precaver, porque às vezes é meramente um subterfúgio. Fazem parecer que sua autonomia está sendo vilipendiada, quando na verdade eles querem meramente garantir o que já têm, que é um espaço cativo para promover essa obra de doutrinação”, aponta. 

O pluralismo de ideias garantido pela Constituição, de acordo com Mazzeo, pode justificar a inclinação ideológica dos estudos sobre o impeachment. “Em nenhum movimento social, quando tem a presença da sociedade, existe neutralidade ideológica”, diz. “É obvio que você vai encontrar, nos meios institucionais, não só acadêmicos, posturas ideológicas, até porque a ideologia está presente na sociedade humana”, justifica. 

Para Jungmann, porém, o movimento expõe tendências de esquerda no meio acadêmico brasileiro. 

“No meio acadêmico brasileiro, sobretudo nas humanas, a hegemonia da esquerda é acachapante. Ali a esquerda teve um sucesso colossal. E um acadêmico isolado que ouse contrariar essa versão é imediatamente escanteado.” 

A necessidade de diversidade de perspectivas também é apontada por José Matias Pereira, da UnB: “Seria muito bem vindo que essas universidades também oferecessem disciplinas que tivessem uma visão contrária àquilo que está sendo colocado. Esse exercício de debates é o que faz com que a universidade seja um espaço interessante e que possa avançar com novas ideias”. 

Histórico 

Após a repercussão do curso da UnB, diversas universidades públicas brasileiras anunciaram intenção de ofertar, neste ano letivo, cursos, disciplinas e projetos de extensão sobre os desdobramentos do impeachment de Dilma Rousseff pela perspectiva de um golpe de estado. 

A primeira delas, a Universidade Federal da Bahia (UFBA) anunciou que 22 professores de áreas como Sociologia, Economia e Química ministrarão uma disciplina homônima.

Em seguida, um grupo de professores do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) anunciou a criação de um curso livre sobre o tema, aberto para alunos da instituição e para a comunidade externa. 

Além dela, a Universidade de São Paulo (USP) criará um curso semelhante e a Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) abrirá um curso de extensão sobre o “golpe de 2016”. 

Completam a lista a Universidade Federal do Amazonas (Ufam), Universidade Federal do Ceará (UFC), Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). 

O professor de Filosofia e criador do curso de extensão na UEPB, Valmir Pereira, afirma que o movimento de criação de cursos sobre o “golpe de 2016” nas universidades foi motivado pelo próprio ministro da Educação, Mendonça Filho, ao se posicionar contra o curso da UnB e pedir a investigação da universidade. 

“Essa discussão foi motivada pela postura do ministro da Educação, ao tentar tirar a autonomia da universidade e ao mesmo tempo cercear a liberdade de cátedra do professor, algo que nem os militares fizeram durante a ditadura”, diz. 

Segundo ele os cursos livres e disciplinas optativas permitem diversidade de opiniões sobre o tema. “Se inscreve quem estiver interessado, independentemente do ponto de vista. É possível entrar tanto aquele aluno que enxerga o impeachment como golpe, quanto aquele que não vê dessa forma. A discussão, por ser aberta, não tem um caráter de perspectiva única”, conclui.

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