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“Já fui ao Brasil, Praia e Bissau, Angola, Moçambique, Goa e Macau. Ai, fui até Timor. Já fui um conquistador”. As frases rítmicas ecoam pelas ruas estreitas do tradicional bairro de Alfama, em Lisboa, animando grupos de jovens e famílias inteiras durante as festas dos santos populares, que acontecem todo ano em junho em Portugal.

“As pessoas podem até achar a qualidade musical duvidosa, mas ninguém fala da letra”, afirma Marta Araújo, pesquisadora principal do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra sobre a música intitulada “Conquistador”. Bastante presente no discurso público de Portugal, a narrativa do “bom colonizador” pode ser encontrada em canções e até nos manuais escolares de história do país.

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No caso da canção acima citada, os versos que falam de um povo que “guiado pelos céus, espalhou-se pelo mundo seguindo os seus heróis e levaram a luz da cultura” fazem referência à suposta aptidão de Portugal para uma “boa colonização”. Interpretada pelo grupo português Da Vinci, a obra caiu no gosto dos seus conterrâneos no fim da década de 1980 e continua fazendo sucesso ainda hoje.

Nos primeiros comentários do vídeo disponível no YouTube, com mais de 455 mil visualizações, é possível ler diversas exaltações à expansão marítima portuguesa iniciada no século 15. Enquanto um internauta elogia a canção por retratar como “os portugueses são conquistadores por natureza”, outra usuária garante que “de facto, o mar corre nas nossas veias e de certeza terá ainda muito para nos dar”. 

De acordo com Marta Araújo, o ensino de história em Portugal ajuda a perpetuar esse mito de “bom colonizador”. Ao analisar os livros didáticos dos 7.º, 8.º e 9.º anos escolares entre 2008 e 2011 em Portugal, a pesquisadora concluiu que a ideia de que o colonizador português é mais benevolente está sempre implícita nos manuais escolares.

“Há vários livros que falam que os holandeses foram racistas, que os espanhóis eram violentos e que dizimaram populações indígenas inteiras. Mas quando se fala de Portugal, parece que a diminuição da população indígena aconteceu de repente, como se fosse uma consequência das doenças levadas pelos europeus”, afirma.

“Nesses manuais, transmite-se a ideia de que havia apenas pequenas tribos ou povos menos avançados no Brasil, que era um espaço à espera de ser descoberto, pois não existiam grandes civilizações”, diz a socióloga política Silvia Rodriguez Maeso, que participou da pesquisa ao lado de Marta Araújo.

Escravidão naturalizada

Nos manuais escolares analisados por Marta e Silvia, a escravidão aparece retratada de forma naturalizada, surgida da necessidade econômica da colonização. “Mas isso não é uma questão só de Portugal. Nos Estados Unidos também se falava como a escravidão era um sistema econômico inevitável, como se os países não tivessem como se desenvolver sem ela porque os índios não se adaptavam, então era preciso escravizar os negros”, explica Marta sobre o trecho encontrado em livro de história de 2008 em que é dito que “depois de os portugueses terem tentado utilizar os índios para trabalho escravo, verificaram que estes não se adaptavam, o que tornou necessário recorrer aos escravos africanos”.

“A própria figura do escravizado é objetificada. Lembro-me quando estava na escola e havia aqueles mapas das rotas de comércio transatlântico mostrando as especiarias, o marfim e os escravos, como se aquelas pessoas escravizadas fossem um produto”, recorda Marta. Se hoje esses mapas caíram em desuso, a pesquisadora relata que ainda é possível encontrar o mesmo tratamento de formas mais sutis e igualmente desumanizadoras, como na escolha de termos e frases como “importados”, “reexportados” e “partiram (...) com destino à Europa ou à América” encontrados nos livros didáticos de história do país para retratar a movimentação dos escravizados.

Ocupando apenas duas a três páginas desses manuais escolares, a escravidão é representada a partir de uma ideia de passividade. “Não se fala dos quilombos no Brasil ou da Revolução do Haiti. Por outro lado, fala-se de escravos se divertindo em dia de festa, ou seja, um bocado essa ideia de que não estava assim tão mal”, afirma Marta.

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Por causa do projeto, a pesquisadora conta que, na época, fez workshops com alunos de 14 e 15 anos e eles “mostraram-se surpreendidos quando souberam que houve revoltas das populações escravizadas”. “Não há nesses livros didáticos uma discussão minimamente aprofundada sobre a escravização e a questão racial. Já se dá por suposto que os escravos são negros, africanos”, critica a pesquisadora Silvia.

Outra narrativa bastante comum é a ênfase nos aspectos “positivos” do colonialismo e o multiculturalismo resultante desse processo. “Fala-se como se a escravidão estivesse na origem do multiculturalismo do Brasil de hoje, como se fosse uma questão celebrativa”, explica Silvia sobre trechos destacados de livros didáticos de história portugueses:

“A prática da escravatura, levando ao transporte em grande escala de população africana para a América e a Europa, fez desenvolver a miscigenação (mistura de raças)” e “O Brasil atual é uma sociedade multicultural, cujas raízes remontam aos primeiros séculos de colonização. Hoje, o povo brasileiro é composto pelos descendentes da população índia original, dos colonos brancos e dos escravos negros, tendo-se dado uma síntese das várias culturas”.

Freyre e o lusotropicalismo

Recorrente, o mito do “bom colonizador” em Portugal é uma narrativa antiga, bastante presente especialmente durante o Estado Novo (regime político autoritário que durou 41 anos, até a queda na Revolução dos Cravos, em abril de 1974).

Segundo Cláudia Castelo, pesquisadora do Departamento de História e Filosofia das Ciências na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, o salazarismo utilizou esse conceito “de forma conveniente para permanecer nas colônias” na época em que os movimentos anticoloniais ganhavam força e surgiam as primeiras independências na Índia, na Indonésia e na África no pós-guerra. 

Durante o Estado Novo, o lusotropicalismo, ou seja, a tese de Gilberto Freyre sobre a suposta aptidão especial de Portugal para a colonização e a miscigenação, passa a ser ressaltado com frequência no país.

“O ideário freyreano acabou por encontrar em Portugal um terreno propício porque há muito tempo circulavam ideias de um ‘colonialismo de face humana’ no país”, explica Pedro Schacht Pereira, professor de Estudos Portugueses e Ibéricos da Ohio State University, nos EUA.

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Apesar de Casa-Grande & Senzala ter sido publicado em 1933, o ideário freyreano só foi introduzido no discurso colonialista português anos mais tarde. Na Revisão Constitucional de 1951, o termo “império” é substituído por “ultramar” e as colônias, por “províncias ultramarinas”.

Gilberto Freyre, por sua vez, foi convidado para visitar Portugal e suas colônias, tendo até mesmo suas obras enviadas para diplomatas portugueses espalhados pelo mundo, uma vez que elas “ajudavam a argumentar com autoridade científica que a colonização portuguesa era distinta das outras porque não era determinada por interesses políticos e econômicos, mas sim resultava dessa capacidade de entendimento e fraternidade com outros povos”, conforme conta a pesquisadora. 

Para Miguel Bandeira Jerónimo, doutor em História Imperial e Colonial e investigador do CES, o caso português não foge à regra do colonialismo. “Todas as sociedades com projetos imperiais e coloniais produzem e reproduzem mitos sobre a excepcionalidade da sua ação em territórios sobre os quais têm alguma espécie de domínio político e econômico. Projetam imagens de benevolência, de ‘civilização’ ou de evangelização, entre muitas outras que visavam e visam justificar e legitimar o empreendimento imperial e colonial”, afirma. 

Racismo à portuguesa

Mesmo após o fim do Estado Novo e o advento da democracia em Portugal, o mito do “bom colonizador” se manteve presente no imaginário da população. “O lusotropicalismo foi banalizado na cultura de massas, em revistas de grande difusão de atualidades. Esse conceito não foi reproduzido apenas no nível de discurso político ou em fóruns diplomáticos, mas acabou por se alastrar para universos mais amplos da sociedade portuguesa em um processo de identidade nacional”, explica Cláudia Castelo.

As consequências de ter esse conceito tão enraizado na sociedade portuguesa, segundo os pesquisadores, é a negação da existência de racismo no país. “As chamadas visões lusotropicalistas tornaram-se generalizadas e contaminam a consciência da sociedade portuguesa, que se vê como não racista. Trata-se de um processo que junta negação com ilusão, e caracteriza profundamente o nacionalismo português”, diz Miguel Vale de Almeida, professor de Antropologia no Instituto Universitário de Lisboa.

Mas o problema, segundo Marta Araújo, não começa nos manuais. “É mais amplo que isso, só que os livros didáticos acabam por refletir esse mito e ajudam a reproduzi-lo”, explica. “Neles, não há uma discussão sobre como se forma um pensamento racista e como o racismo na contemporaneidade é uma reprodução das relações coloniais”, argumenta sua colega, Silvia Maeso.

A reprodução do mito do “bom colonizador” e a invisibilidade do racismo em Portugal não se limita ao ensino básico. “A historiografia dos ‘descobrimentos’ também tem sido potenciada e alimentada nas universidades. As abordagens dominantes continuam a ser ‘despolitizadoras’ na licenciatura e nos cursos de pós-graduação”, afirma a pesquisadora. 

Apesar desse mito do “bom colonizador” português não ter muito espaço no ensino brasileiro, a educação no país também é vista como eurocêntrica por muitos pesquisadores. “O quanto os portugueses exploraram o que viria a ser o Brasil me parece muito mais forte no ensino aqui do que o mito do bom colonizador, mas a ideia de civilização que é celebrada ainda é a europeia. As culturas indígenas, africanas e afro-brasileiras passam ao largo, de maneira geral, do processo educacional”, afirma Amilcar Pereira, professor de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Para estudar como esse mito ainda se perpetua quando o assunto é a colonização portuguesa, a socióloga e professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) Mariana Selister Gomes mapeou 50 museus relativos aos “descobrimentos” em 10 cidades no Brasil e em Portugal reconhecidas como cidades do período colonial. No projeto, concluiu-se que apenas dois tinham uma perspectiva crítica ao colonialismo. “O silenciamento sobre a colonização violenta dificulta o surgimento de políticas reparatórias porque se nega o problema usando um discurso mitológico. Se não há uma reflexão do passado, não tem como se enfrentar os problemas no presente”, atesta a pesquisadora. 

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