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Entrevista com Ângelo de Souza sobre a educação no  Chile |
Entrevista com Ângelo de Souza sobre a educação no Chile| Foto:

Livre mercado

Democracia herdou sistema de ensino da ditadura militar

No Chile, a Declaração de Princípios de 1974, promulgada um ano após o golpe de estado de Pinochet, e a Constituição de 1980 reposicionaram o Estado como protetor dos direitos de propriedade, em detrimento de direitos básicos como saúde e educação.

Emílio Araújo, doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), explica as conse­­quências desta política em artigo publicado em 2006 na Revista Brasileira de Política e Administração da Educação:

"O novo regime estimulou a ‘economia de mercado’, à qual foram submetidas políticas de proteção social".

Assim muitos centros de ensino superior surgiram, absorvendo a demanda reprimida: de 100 mil para 500 mil matriculados em 24 anos.

"Não houve penalização na qualidade, ao contrário do que ocorreu no Brasil. Não temos o controle de qualidade que os chilenos têm", compara Ângelo de Souza, pesquisador do Nupe-UFPR.

987,4 mil

estão matriculados no ensino superior, dos quais 634.733 em universidades, 224.339 em institutos profissionalizantes e 128.331 em centros de formação técnica.

Linha do tempo

Marcos do movimento estudantil chileno

Maio de 2011: Manifestações no país envolvem cerca de 1 milhão de pessoas.

Junho de 2011: Protestos derrubam o Ministro da Educação Joaquín Lavín, cotado como futuro presidente do país.

Julho de 2011: Mesmo com o anúncio oficial de um investimento de US$ 4 bilhões em educação, os estudantes não cessam os protestos e realizam um "beijaço" coletivo na cidade de Valparaíso.

Agosto de 2011: A Central Única dos Trabalhadores do Chile convoca uma greve nacional de 48 horas no dia 24, em apoio aos estudantes. Com a adesão do sindicato dos servidores públicos, vários serviços são interrompidos, como o correio e a previdência social. Professores, partidos de esquerda e algumas empresas privadas também passam a apoiar a causa.

Maio de 2012: Manifestações completam um ano. Marchas pela Educação em vários pontos do país acabam em pancadaria.

Comparativo

Veja como é o financiamento do ensino superior em outros países

• Argentina

As taxas de ensino são gratuitas, mas nossos vizinhos têm um sistema precário de bolsa de estudo, que não atende a todos os estudantes argentinos. Alguns custos extras, como transporte e livros didáticos, acabam impedindo muitos jovens de baixa renda de ingressar no ensino superior. Além disso, a maioria dos cursos de pós-graduação não é gratuita.

Normalmente, os calouros das universidades arranjam empregos em período integral logo no primeiro ano, devido aos custos da vida universitária. Ao mesmo tempo em que esses jovens ganham experiência de trabalho, o início precoce no mercado de trabalho pode ser a causa de muitas desistências logo no primeiro ano de faculdade.

• França

As taxas de ensino são bem baixas, visto que o governo financia o ensino superior, e variam entre 150 e 700 euros (R$ 390 a R$ 1,8 mil reais). Estudantes de baixa renda podem requisitar bolsa de estudo e receber ainda uma ajuda de custo de 450 euros por mês. Um diferencial em relação a outros países é que alunos com até 20 anos de idade também ganham seguro de saúde gratuito. Após os 20 anos de idade, o seguro de saúde passa a custar 200 euros (R$ 520) por ano, cobrindo a maioria das despesas médicas.

• Estados Unidos

A maioria das instituições de ensino é pública. O financiamento para o ensino superior é dividido em duas partes. Uma metade é financiada diretamente pelo Departamento de Educação, através do Programa Federal de Empréstimo Direto ao Estudante (FDSLP). A outra metade fica por conta de entidades comerciais como bancos, cooperativas de crédito e firmas de serviço financeiro, através do Programa Federal de Empréstimo à Educação da Família (FFELP). Algumas instituições aceitam apenas empréstimos do FDSLP, outras do FFELP. Há aquelas que aceitam os dois programas, e também aquelas que não aceitam nenhum, onde o estudante deve procurar alternativas privadas para conseguir um empréstimo.

• Brasil

Aqui no Brasil, temos o Programa Universidade para Todos (ProUni), voltado a estudantes com renda familiar máxima de três salários mínimos. O programa oferece bolsas integrais e parciais em instituições privadas de ensino superior aos alunos com melhores notas no Enem. Juntamente com o ProUni, o Ministério da Educação trabalha com o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), em que o curso do estudante precisa ter boa avaliação no Sistema Nacional de Avaliação Superior (Sinaes). O MEC ainda oferta outras modalidades de financiamento, como o Finep (Financiadora de Estudos e Projetos, destinada a projetos de pesquisa voltados à inovação tecnológica) e o Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior, destinado a cursos de pós-graduação e doutorado).

  • Estudante arremessa pedra em policiais durante protesto em Santiago que reuniu mais de 100 mil pessoas no último dia 16
  • Vista geral dos estudantes se reunindo para o protesto
  • Estudante segura um pôster do ex-presidente chileno Salvador Allende
  • Manifestante segura bandeira:
  • Estudante vende máscaras do personagem
  • Manifestante mascarado segura um cartaz onde se lê:
  • Um manifestante encapuzado joga uma tábua de Madeira contra a vidraça do banco BBVA
  • Policiais da tropa de choque correm para prender os manifestantes
  • Estudante encapuzado usa um estilingue contra a tropa de choque
  • Manifestante arremessa uma grade contra a tropa de choque
  • Tropa de choque dispara jatos de água para conter os manifestantes.
  • Estudantes encurralados por um oficial a cavalo
  • Oficiais da tropa de choque tentam conter um estudante
  • Estudante é carregado pelos oficiais sob protestos
  • Estudante é arrastada pelos oficiais
  • Manifestante é carregado pelos oficiais
  • Manifestante resiste à prisão
  • Estudante é levado pelos oficiais
  • Estudante resiste à prisão durante protestos no Chile
  • Estudante é contida pela polícia durante manifestação

Fazer um curso superior no Chile significa pagar taxas e mensalidades, mesmo para quem consegue uma vaga em universidade pública. As manifestações estudantis que começaram há exatamente um ano em cidades chilenas querem mudar esse quadro: exigem ensino público gratuito e o fim do lucro das instituições privadas.

A proposta que tramita no Senado para tirar o financiamento do ensino superior dos bancos não melhorou a imagem do gover­­no perante os estudantes. Tampouco o anúncio do presidente Sebastián Piñera de uma reforma tributária que aumenta em 3% (de 17% passou para 20%) o imposto sobre o lucro das empresas.

FOTOS e INFOGRÁFICO: Veja as imagens do protesto no dia 16 e os números da dívida dos estudantes chilenos

Com essas medidas, o governo pretende agregar cerca de US$ 700 milhões por ano para investir em ensino, do básico ao superior, e garantir crédito aos estudantes por meio de uma agência estatal com juros de 2% em vez dos 6% que os bancos cobram atualmente.

Para os estudantes, isso fará pouca diferença no que eles consideram o ponto principal. "Tirar o financiamento dos bancos é positivo. Mas, mesmo que a lei proíba, as instituições de ensino ainda lucram com a educação. Como vamos entregar dinheiro do Estado a instituições que visam mais ao lucro que ao ensino?", questiona Valentina Urquizar, estudante de Matemática da Universidade do Chile, que falou com a Gazeta do Povo por e-mail.

Valentina se refere ao subsídio garantido pelo­­ Es­­­­ta­­do para as instituições­­ de ensino, incluindo as par­­ticulares. Com a Lei Or­­gânica Constitucional de 1990, o governo do dita­­dor Augusto Pinochet (1915-2006) definiu como instituições de ensino superior, além das universidades, os centros de formação técnica, institutos profissionalizantes e academias superiores das Forças Armadas, Carabineiros e­­­­­ In­­­­ves­­­­tigações.

As manifestações recomeçaram no fim de abril e, em 16 de maio, a Marcha Nacional pela Educação ocupou as ruas de Santiago, da qual 100 mil pessoas participaram. No dia, o presidente da Federação dos Estudantes da Universidade do Chile, Gabriel Boric, prometeu: "Senhores do governo, nós vamos continuar rebeldes, porque o movimento estudantil não vai se conformar com a correção de alguns excessos. Nós queremos que se corrija tudo".

Em cerimônia pública, no último dia 21, o presi­­dente Piñera provocou: "Va­­lorizo o idealismo e a rebeldia dos jovens, mas eles também precisam lembrar que têm deveres".

Segundo Ângelo de Souza, pesquisador do Núcleo de Po­­líticas Educacionais da Uni­­versidade Federal do Pa­­raná (Nupe-UFPR) e coautor de um estudo que compara a educação no Brasil e no Chile, as bolsas concedidas pelo governo para os estudantes são para custear alimentação e materiais, e não taxas e mensalidades.

"Sem o financiamento compartilhado, as universidades públicas não sobreviveriam", argumenta Souza. Porém, a maior parte desse dinheiro vem de empréstimos feitos pelos estudantes.

A estatística mais recente do Ministério da Educação aponta que, de 2007 para 2008, um em cada quatro chilenos desistiu após o primeiro ano de curso.

"Enquanto um curso de­­ Medicina no Brasil é qua­­se quatro vezes mais ca­­ro que um de licenciatu­­ra, no­­ Chile, todos são mui­­to caros". Um curso de Me­­­­­­di­­cina na Universidade de Santiago do Chile, por exemplo, custa cerca de R$ 14 mil por ano, apenas R$ 4 mil a mais do que paga Valentina Urquizar para estudar Matemática. Pelo Fundo Solidário, que atende os estudantes do Con­­selho dos Reitores e cobra juro de 2%, um estudante de Medicina pode emprestar por ano o equivalente a R$ 11 mil e pagar sua dívida em até 15 anos após o término do curso.

É o caso de Santiago Mur­­­­­­­­­­ray, que terá uma dívida acumulada de quase R$ 80 mil ao fim de seus estudos. "Mesmo com um salário equivalente a R$ 6 mil, vou demorar uns 11 anos para saldar a dívida, pagando 10% do meu salário por mês. É um cenário assustador", diz.

Depoimentos

Dois estudantes chilenos deram seus depoimentos à reportagem da Gazeta do Povo, contanto o drama que é cursar uma faculdade no país.

Valentina Urquizar

"Atualmente, estudo Matemática na Faculdade de Ciências da Universidad de Chile. No ano de 2010, meu curso estava em cerca de R$ 10 mil por ano, o que significava mais de R$ 800 por mês. Pelo Fundo Solidário [que financia quem estuda em universidades do Conselho de Reitores] de crédito, a uma taxa de juro de 2% ao ano, posso financiar 70% do meu curso; os outros 30% sou eu quem tem que pagar.

Isso dá aproximadamente R$ 400 por mês. Mas após dois anos de faculdade o valor anual subiu mais R$ 600. É muito caro para a minha situação financeira atual, uma vez que meu pai está desempregado há mais de um ano e minha mãe recebe um salário muito curto há dois meses, depois de dois anos desempregada. Por isso eu tive que encontrar um jeito de pagar a faculdade conciliando trabalho e faculdade. Os estudos em Licenciatura são bastante complexos e exigentes, mas, lamentavelmente, a universidade não facilita nem considera uma situação como esta".

Santiago Murray

"Estudo Medicina na Universidade de Santiago de Chile e, como qualquer estudante, frequento as aulas, estudo em casa e quando tenho um tempo livre, faço algo para me divertir ou para ganhar algum dinheiro. Minha família e eu gastamos muito dinheiro em educação. Meu curso custa cerca de R$ 14 mil por ano. Para uma família de classe média chilena, essa é uma quantidade elevada. Para mim, é ainda maior, mas não pagamos tudo porque conto com créditos universitários.

Mais que abandonar outros planos, minha mãe, que é solteira, teve que aumentar sua carga de trabalho e eu também faço alguns bicos de vez em quando. Isso nos permitiu manter nossa qualidade de vida, mas talvez tenhamos perdido nosso tempo juntos. Eu não acredito que as medidas de financiamento propostas pelo Estado vão servir muito. As universidades estaduais têm problemas de infraestrutura graves e seus gastos se baseiam principalmente nas taxas cobradas dos alunos, e nós dependemos principalmente de crédito para conseguir pagá-las. Há bolsas de estudo para estudantes de famílias mais pobres, mas só uma minoria consegue chegar lá.

Eu devo tanto dinheiro que não gosto nem de fazer o cálculo. Minha dívida deve estar entre o equivalente a R$ 55 mil e R$ 60 mil e eu ainda tenho alguns anos de estudo para continuar me endividando. No final da minha carreira, facilmente minha dívida será de cerca de R$ 80 mil. Os médicos são bem pagos no Chile e posso aspirar a um salário de mais ou menos R$ 6 mil logo ao sair da faculdade - um valor fora do comum para a classe trabalhadora chilena. Se eu destinar 10% do meu salário por mês para pagar minha dívida, conseguirei saldá-la em 11 anos. É um cenário bastante assustador".

Protestos do dia 16 no Chile

Leia amanhã: Série Talento Jornalismo 2012 traz reportagem sobre o índice de transparência da Câmara dos Vereadores de Curitiba na editoria Vida Pública.

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