O esporte afasta crianças e jovens da violência. A afirmação ganha significado especial na Cidade Industrial, Sítio Cercado e Cajuru, pela ordem, os três bairros mais violentos de Curitiba.

De 2012 a 2015, juntas as regiões registraram 643 homicídios, segundo números da Secretaria de Estado da Segurança Pública (Sesp) – a cada 2,2 dias, uma pessoa tombou pela área. Não fosse o futebol e este placar fúnebre seria ainda mais grave.

“Nos locais violentos, de baixo índice de desenvolvimento humano, o futebol representa uma fuga, uma alternativa social”, atesta André Capraro, doutor em História e professor do Departamento de Educação Física da Universidade Federal do Paraná (UFPR).




Em cenário desolador de violência, campos e quadras se transformam em trincheiras. Sempre de forma precária. O futebol jogado nas quebradas sobrevive graças ao fascínio natural da bola e o socorro de abnegados.

É opção de lazer, atividade esportiva e possibilidade de ascensão social. Na hora do recreio, na aula de Educação Física, nas peladas, escolinhas, campeonatos amadores locais e na tradicional suburbana curitibana.

“Na periferia nós não temos muitas atividades. E também poucas chances de subir na vida. Por isso é tão importante para nós jogar bola”, conta Pedro Marcelo Levino, 16 anos, estudante.

Nos locais violentos, de baixo índice de desenvolvimento humano, o futebol representa uma fuga, uma alternativa social.”

- André Capraro, doutor em História e professor da UFPR.

Numa tarde qualquer no Sítio Cercado, trajado com a camisa do Barcelona de Neymar, cabelo moicano descolorido, Pedro tentava a sorte na peneira Rio Negro. Enquanto do outro lado do gramado, um grupo de jovens fumava maconha.

Há uma preocupação do poder público em reforçar o esporte como agente transformador, especificamente o futebol. Entretanto, ainda são esparsas as iniciativas, igualmente nas esferas municipal e estadual.

“Não temos usado devidamente o poder dessa ferramenta. O futebol aparece com destaque apenas no profissional”, admite Aluísio Dutra, secretário municipal do Esporte, Lazer e Juventude (SMELJ).

Ainda este ano, a prefeitura de Curitiba pretende implantar 12 campos públicos de grama sintética, projeto em fase de licitação. E este mês começará o campeonato sub-15 de futebol de campo, bancado pelo município, com 82 times inscritos.

O governo do estado, por sua vez, age com a disseminação de escolinhas de futebol. “É uma iniciativa do programa Paraná Mais Esporte, um trabalho social”, diz Douglas Fabrício, secretário estadual de Esporte e Turismo.

CIC

Esperança na cancha do tráfico

Ex-jogador do Coritiba nos anos 90, Edson Maciel treina crianças na Vila Sabará.

Em um dos campos da Vila Sabará, parte da Cidade Industrial, futebol e violência convivem diariamente – e, pode parecer uma contradição, de forma pacífica. Graças ao trabalho do professor Édson Maciel.

Ex-jogador do Coritiba, atuou ao lado do ídolo coxa-branca Alex nos anos 90, Maciel mantém uma escolinha em um campo de grama à espreita do tráfico de drogas local. Já são cinco anos do projeto na região em que os pais dele moram.

“Aqui é um lugar esquecido. Sou conhecido e todos sabem da importância e seriedade do meu trabalho. E ajudo a criançada, sem incomodar ninguém”, conta Maciel, que detém o apoio da Essencis Soluções Ambientais, empresa da área.

Aqui é um lugar esquecido. Sou conhecido e todos sabem da importância e seriedade do meu trabalho. E ajudo a criançada, sem incomodar ninguém.”

- Édson Maciel, professor

Filhos de integrantes do “movimento” participam das atividades e o cair da noite é a senha para todo mundo vazar. E se algum pacote estranho estiver mocozado pelo extenso gramado, melhor não mexer.

É a realidade do bairro mais violento de Curitiba – de 2012 a 2015 foram 297 homicídios. A CIC é também disparada o maior, 44,3 km², uma justificativa para a liderança mórbida.

Estatística da qual William Oliveira foge todo dia. O estudante de 11 anos é um dos alunos do professor Maciel. Corre descalço pelo campo judiado do Sabará há quatro anos e já virou ajudante da escolinha.

“É o que eu mais gosto de fazer e estou acostumado a jogar aqui que nem sinto falta de chuteira. Quero um dia ser volante no Corinthians”, diz William, filho de uma diarista e de um motorista de caminhão.

A CIC é ainda território da única sub-sede de uma torcida organizada, outra representação do futebol nos bairros. Mas, para evitar emboscadas, as facções surgem apenas nos dias de jogos, em locais incertos, com a formação dos bondes.

É uma exceção a casa da Zona Oeste da Fanáticos, torcida organizada do Atlético, encravada no topo do Morro do Piolho desde 2008. Presença só possível graças ao predomínio dos rubro-negros nas imediações.

“Nunca tivemos problema e temos ainda uma boa relação com a Guarda Municipal”, afirma Leonardo Borges, morador do imóvel, representante do grupo que é oposição ao comando central da facção atleticana.

Integrante de um grupo de oposição dentro da torcida Os Fanáticos, Leonardo Borges mora na sede do grupo no Morro do Piolho.

Na CIC, o bairro mais violento de Curitiba, 297 homicídios
foram registrados entre 2012 e 2015

Sítio Cercado

Boleiros x Vida Lokas

Há 16 anos professor da escolinha do Rio Negro, no Sítio Cercado, Romildo Vieira elaborou uma tese. Nos bairros violentos, o garoto precisa ser cooptado pelo futebol até os 13 anos. Segundo o aposentado, para antecipar a sedução pelo tráfico.

Romildo Vieira há 16 anos inicia jovens jogadores no futebol do Rio Negro.

“É muito importante que a gurizada venha jogar bola. Conviva nesse ambiente sadio, de esporte, de educação, de respeito. Assim evitamos que eles fiquem na rua, sabe Deus em qual situação”, comenta Vieira, 63 anos.

Representante do bairro na Suburbana, o Rio Negro sofre com as dificuldades das equipes amadoras. Pichações e invasões são comuns na sede, o Estádio Wilson Gomes Pereira, mantido com patrocínio do comércio local e churrascos solidários.

O Sítio Cercado é o segundo bairro mais violento da cidade. Entre 2012 e 2015 foram registrados 182 homicídios. Felizmente, a violência nunca alcançou o estudante Rahuan Fabris, 12 anos.

É muito importante que a gurizada venha jogar bola. Conviva nesse ambiente sadio, de esporte, de educação, de respeito."

- Romildo Vieira, professor da escolinha do Rio Negro

Torcedor do Atlético e fã do goleiro Weverton, o menino sonha repetir a carreira do ídolo. E enquanto procura testes pelos clubes, treina no Parque do Semeador, no campo vizinho do Ribeirão dos Padilhas.

As condições são péssimas e há ameaça de extinção do local. Recentemente, a prefeitura de Curitiba encampou um projeto para transformar a área em um “piscinão” para conter as frequentes enchentes no local.

Rahuan e o avô Sidnei: desejo do garoto é ser jogador profissional.

Enquanto isso, Rahuan salta atrás das bolas quase todos os dias. “Acho que sou muito bom nas saídas do gol. Quem sabe eu um dia não jogue na Baixada?”, sugere o menino, lama da cabeça aos pés após um embate na chuva.

A mesma esperança tem o avô do arqueiro. “Os estudos são a prioridade. Mas o Rahuan tem potencial e é apaixonado pelo esporte. Vejo como uma chance de mudar de vida”, declara Sidnei Fabres, 63 anos, representante comercial.

Cajuru

O Atletiba da quebrada

O Cajuru tem seu Atletiba próprio. Pela Vila Autódromo, fundão e região mais sinistra do bairro, é onde habitam os times amadores Beira-Rio e Beira-Linha, rivais como Atlético e Coritiba são no futebol profissional.

Os campos das duas equipes são separados por poucas quadras e revelam o cenário barra-pesada do local. O Cajuru é o terceiro bairro mais violento de Curitiba – de 2012 a 2015, registrou 164 homicídios.

Apertada entre construções, várias de dois andares, a sede do Beira-Rio lembra uma versão pobre de La Bombonera, mítico estádio do Boca Juniors, da Argentina. A fama é de que as partidas só terminam quando os donos da casa estão na frente.

Vizinha do autódromo está a cancha do Beira-Linha, cercada por um entroncamento ferroviário. A carcaça queimada de um carro apodrece ao lado e o matagal serve como refúgio para quem é vida loka. Estranhos não são bem-vindos.

Entre os locais, corre a história de que um goleiro do Beira-Linha, envolvido com o tráfico, acabou morto por rivais do Beira-Rio. Mas ninguém tem coragem de dar detalhes sobre a bronca que misturou esporte e violência.

Nascido no Cajuru e desde os 15 anos jogador do Beira-Linha, Maikon William sabe como rola o futebol na comunidade. “O futebol mistura a galera. As torcidas organizadas convivem, quem é de bem e do mal”, diz o marmorista e lateral-direito de 25 anos.

Maikon é jogador do Beira-Linha, equipe que tem o campo cercado por ferrovias, na região da Vila Autódromo.

O futebol mistura a galera. As torcidas organizadas convivem, quem é de bem e do mal."

- Maikon William, desde os 15 anos jogador do Beira-Linha.

Um dos principais responsáveis pela comunhão da bola é Neemias Portela. O comerciante de 48 anos integra a organização da Copa Cajuru, competição que vai para a 8ª edição em 2016.

“Antes rolava uma tensão no ar. O pessoal da Vila Camargo não podia ir jogar na Vila Autódromo, que não era bem recebida em outros campos, por exemplo. Com os campeonatos conseguimos minimizar essa situação”, comenta Portela.

Neemias é narrador de futebol e organiza a já tradicional Copa Cajuru.

1 Públicos. 2 Ensino básico e fundamental, escolas públicas municipais e estaduais. 3 Segundo o IBGE, 2010.

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