Arquitetura

Abandonado, palacete que hospedou Dom Pedro vira casa para pombos em Paranaguá

Carolina Werneck*
14/08/2017 10:30
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Na fachada do prédio de 1856, as marcas do abandono: tinta descascando e janelas quebradas. Foto: Hugo Harada/Gazeta do Povo | Carolina Werneck Bortolanza

Poucas construções representam tão bem a relevância de Paranaguá nos tempos do império quanto o Palacete Visconde de Nácar. O edifício de 160 anos ergue-se amarelento em uma rua de paralelepípedos cujo nome também rende homenagem ao antigo dono do casarão.
Quem passa por ali apressado pode não prestar atenção ao número 33 da estreita alameda. Agora desbotado e cheio de mofo e infiltrações, o endereço já hospedou até um imperador. Foi em 1880, quando Dom Pedro II, então imperador do Brasil, desembarcou em Paranaguá para uma visita à província que ele mesmo havia emancipado quase 30 anos antes. Mas o casarão pouco guarda de seus anos de glória. Abandonado pelo poder público, ele resiste como pode às investidas do tempo e do esquecimento.
Muitas infiltrações são vistas tanto no exterior quanto no interior do palacete. Foto: Hugo Harada/Gazeta do Povo
Muitas infiltrações são vistas tanto no exterior quanto no interior do palacete. Foto: Hugo Harada/Gazeta do Povo
Ao avistar o prédio pela janela do carro, o arquiteto Key Imaguire Jr., ex-membro do Conselho do Patrimônio Histórico e Artístico do Paraná, impressionou-se. “Olhe o estado em que ele está”, limitou-se a lamentar, enquanto corria os olhos por cada marca deixada pelo descaso no palacete, que é tombado pelo Patrimônio Estadual desde 1966.
Do lado de dentro a situação é ainda mais triste. Logo no saguão de entrada, caixas e mais caixas de documentos se acumulam – uma cena que se repete em quase todos os cômodos do casarão. Sobre elas, além da poeira, muita sujeira feita pelos pombos que tomaram conta do lugar. Eles parecem estar em toda parte, no forro do prédio, no assoalho e até sobre os móveis que, meio capengas, ainda se encontram por lá. Durante a visita, os animais não param de arrulhar e dão a sensação de que a casa é mesmo deles.
Documentos estão empilhados no saguão de entrada do palacete. Foto: Hugo Harada/Gazeta do Povo
Documentos estão empilhados no saguão de entrada do palacete. Foto: Hugo Harada/Gazeta do Povo
Do lado de dentro, a sujeira dos pombos tomou conta de quase todos os cômodos. Foto: Hugo Harada/Gazeta do Povo
Do lado de dentro, a sujeira dos pombos tomou conta de quase todos os cômodos. Foto: Hugo Harada/Gazeta do Povo
Construído em 1856 para ser a sede do governo do estado, o palacete teve sua vocação inicial frustrada pela instalação da capital da província em Curitiba em vez de Paranaguá. Tornou-se, então, residência da família de Manoel Antônio Guimarães, “um dos mais empreendedores negociantes do litoral da província e o mais importante exportador de erva-mate”, de acordo com o livro Espirais do Tempo, da Secretaria de Estado da Cultura. Imaguire detalha que o edifício tem “uma composição em faixas e é perfeitamente simétrico. A curvatura nas janelas é característica do período. Na parte de baixo a gente nota que essa curvatura é falsa, o que é uma prática comum no ecletismo. Você põe a forma, mas o conteúdo estrutural não é contemplado”. O arquiteto aponta, ainda, a platibanda que impede que a água do telhado caia na rua. “Os telhados da arquitetura colonial jogavam água na rua. Nesse período já não se quer isso porque tem mais gente nas cidades.”
João Ricardo de Castilho é técnico em restauro da Prefeitura de Paranaguá e um profundo conhecedor do palacete. É ele quem conta detalhes sobre os ambientes e as muitas vidas vividas ali. “Esse prédio é muito bonito, mas houve muitas intervenções durante os anos”, diz ele, enquanto vai apontando algumas dessas intervenções. O teto do salão principal do andar superior foi um dos elementos que sofreram alterações. Hoje feito de madeira plana, o original provavelmente era uma abóbada moldada em  barro. Outros pontos também dão sinais de modificação. Tanto que Imaguire afirma não conseguir entender como era a planta original. “Alguma coisa não está casando, não está conforme a tradição. É esquisito.”
Em registro com anotação de 1908, o salão do segundo andar recebe uma reunião, possivelmente da Prefeitura ou da Câmara Municipal de Paranaguá. Foto: Reprodução
Em registro com anotação de 1908, o salão do segundo andar recebe uma reunião, possivelmente da Prefeitura ou da Câmara Municipal de Paranaguá. Foto: Reprodução
A confusão a respeito da divisão entre os ambientes acontece porque, depois de ter sido usado como residência familiar, o palacete do Visconde de Nácar abrigou a Prefeitura e a Câmara Municipal. Para cada novo uso, novas adaptações. A inclusão de um banheiro no segundo andar, por exemplo, obrigou que se erguessem paredes no térreo para sustentá-lo. Ao lado de uma das senzalas – o visconde mantinha cerca de 50 escravos na casa – uma escada tem corrimão feito com mãos francesas e mastro de bandeira. Até a cor do edifício foi alterada. Castilho critica a tonalidade amarelada do exterior. “Eu sou contra isso aqui. Tem que conservar como era. Aqui em Paranaguá muitas dessas casas antigas estão todas com a mesma cor, bege com salmão. Acho que não é por aí. Esse prédio aqui era azul e branco. As casas eram só caiadas, não tinha tinta colorida. Eles botavam o azul nas molduras, para ornamentar.”
Divisória comum em repartições públicas foi usada para substituir antiga divisória de madeira do prédio. Foto: Reprodução
Divisória comum em repartições públicas foi usada para substituir antiga divisória de madeira do prédio. Foto: Reprodução
Uma história tão vasta torna o trabalho de resgatar a alma do palacete ainda mais complicado. “O palacete passou por várias fases na mão do visconde e várias fases na mão da Prefeitura. O que a teoria do restauro diz? Tudo isso tem que ficar evidenciado. Há muitas opções e é preciso se perguntar: ‘o que eu vou deixar aqui?’ Posso deixar isso ou isso. As duas coisas são reveladoras de uma determinada fase da história do prédio. Posso escolher qual vou deixar”, explica Imaguire.
Sala de jantar é vista em foto sem registro de data. As curvas em madeira escura que sobrem até o teto parecem não fazer sentido, do ponto de vista de Imaguire. Como o teto parece ter sido rebaixado ao longo dos anos, o arquiteto acredita que elas pudessem formar um arco. Foto: Reprodução
Sala de jantar é vista em foto sem registro de data. As curvas em madeira escura que sobrem até o teto parecem não fazer sentido, do ponto de vista de Imaguire. Como o teto parece ter sido rebaixado ao longo dos anos, o arquiteto acredita que elas pudessem formar um arco. Foto: Reprodução
Para a arquiteta Vânia Foes, da Secretaria de Cultura da cidade, a situação “não é tão ruim. A casa só precisa de restauro e adaptação às novas atividades. Essa degradação que tem lá não é nada estrutural”. Falando pela Secretaria, ela informa que “o palácio foi objeto de um termo de referência para que a gente fizesse o restauro.” Esse documento, segundo Vânia, foi elaborado junto com o Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) para que fosse possível fazer a licitação. O processo esbarrou na transformação da Fundação de Cultura de Paranaguá em uma Secretaria de Cultura. “O palácio é prioritário para restauro neste momento. Acredito que, depois que a licitação for definida, levemos no máximo um ano para acabar.”
Enquanto a Secretaria de Cultura diz que a obra pode ser feita em um ano, o arquiteto Key Imaguire avalia que os danos são muito extensos para um prazo tão curto. Foto: Hugo Harada/Gazeta do Povo
Enquanto a Secretaria de Cultura diz que a obra pode ser feita em um ano, o arquiteto Key Imaguire avalia que os danos são muito extensos para um prazo tão curto. Foto: Hugo Harada/Gazeta do Povo
A estimativa é otimista, se comparada à feita por Castilho. Ele fala em um prazo de cerca de dois anos e meio, período que Vânia calcula para todo o processo de restauro, desde a preparação da licitação até o fim das obras. Imaguire discorda de ambos. “É uma obra bem complicada, bem complexa. Toda hora você tem que parar, mandar para o laboratório uma casquinha para eles verem qual é a mais antiga. Em dois anos e meio não se faz.”
Outro ponto de discordância é a utilização do palacete do visconde depois do restauro. Para Castilho, o prédio deveria abrigar um museu municipal. Contrariando o desejo do técnico, Vânia diz que o plano é que o local seja a sede de uma das secretarias do governo municipal.
A tribuna original que, um dia, foi usada por camaristas e integrantes da Prefeitura da cidade, hoje está coberta de poeira e fezes de pombo. Foto: Hugo Harada/Gazeta do Povo
A tribuna original que, um dia, foi usada por camaristas e integrantes da Prefeitura da cidade, hoje está coberta de poeira e fezes de pombo. Foto: Hugo Harada/Gazeta do Povo
*Especial para a Gazeta

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