Arquitetura

“É urgente nos reconectarmos à cidade”, defende um dos criadores da Curitiba moderna

Mariana Domakoski*
29/03/2017 13:59
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Pertencente à leva de modernistas que a UFPR formou em sua primeira turma de Arquitetura, Bongestabs mantém até hoje os princípios que norteiam a estética. Foto: André Rodrigues/Gazeta do Povo | Gazeta do Povo

“Eu nunca levo máquina fotográfica quando viajo. Quero olhar ali na hora, não quero ver a cidade depois, em casa”. As palavras são de Domingos Bongestabs, arquiteto formado na primeira turma de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Paraná (UFPR), aberta em 1962, da qual saiu modernista até o último fio de cabelo. “Ainda acredito em princípios como o respeito aos materiais, à função, no uso do material de acordo com sua natureza”, afirma.
Bongestabs projetou várias das obras que dão cara a Curitiba, como a Ópera de Arame, aberta ao público em 1992, e a Universidade Livre do Meio Ambiente (Unilivre), do mesmo ano. Também criou praças, como a Afonso Botelho e a 29 de Março. Esta última, inclusive, inaugurada em 1966 para homenagear o aniversário da cidade.
Hoje, ele vê as praças vazias e as cidades passando despercebidas pelos olhos de todos. Frutos da insegurança e da falta de tempo. Para comemorar os 324 anos que a capital comemora nesta quarta-feira (29), HAUS conversou com Bongestabs sobre essas e outras questões: como o modelo de urbanismo e a arquitetura atual.
Você é conhecido por ter feito obras que dão a cara que Curitiba tem hoje. Quais são as suas preferidas?
Minha preferida é a Universidade Livre do Meio Ambiente. A segunda é a Ópera de Arame e a terceira, a Praça 29 de Março.
Fale um pouco sobre cada uma delas.
A Universidade Livre do Meio Ambiente foi bem interessante porque está num espaço do qual ninguém lembrava na época. Era um ambiente muito bonito, com lago e natureza, então queríamos uma estrutura transparente, que não atrapalhasse. Levantamos tudo com madeira, que era uma característica dos parques da cidade na época. Além disso, queríamos levar as pessoas para o alto, porque de lá dava para ver a cidade em praticamente 360 graus. Daí surgiu a ideia da rampa, o que acabou se tornando a parte mais interessante do passeio. Sobre a Ópera de Arame: o lugar era muito bonito. A principal ideia era não estragar a paisagem, não construir um edifício convencional ali, que escondesse o entorno. Por isso, fizemos uma estrutura transparente, com sustentação metálica, como uma gaiola. Mais tarde, foi preciso fechá-la com vidro, porque Curitiba é uma cidade fria. E sobre a Praça 29 de Março: tenho muito carinho porque é parecido com algo que fiz quando estava no terceiro ano do curso de Arquitetura, quando fiz o projeto de um monumento para Santos Dumont. Tinha imaginado uma estrutura em placas, sobre um espelho d’água, assim como é a praça. Ela foi feita para comemorar o aniversário da cidade e o monumento formado por cinco placas faz um retrato dos cinco ciclos econômicos do Paraná.
Foto: André Rodrigues/Gazeta do Povo
Foto: André Rodrigues/Gazeta do Povo
Hoje há um mau aproveitamento das praças em Curitiba?
Eu não tenho uma percepção do que acontece nos bairros, porque não acompanho mais. Mas me parece que uma das questões importantes que fazem as pessoas evitarem as praças é a segurança. Veja essa praça [29 de Março, onde estamos conversando]: está praticamente vazia. Até as 15 horas havia um fiscal da prefeitura. Agora não tem mais ninguém. Vi apenas uma senhora entrar com um carrinho de criança. Tem um playground, mas você não vê ninguém brincando. A questão da segurança é crucial, acredito. As pessoas não confiam que estarão seguras num espaço totalmente aberto. E esse é um problema das ruas em geral, não só praças.
Foto: André Rodrigues/Gazeta do Povo
Foto: André Rodrigues/Gazeta do Povo
Na Unilivre, você usou na estrutura postes de eucalipto desativados, em um movimento de arquitetura vernacular. Por que isso foi feito?
Para reutilizar um material que seria jogado fora. A Copel tinha desativado postes de eucalipto na área rural. E os cedeu à Secretaria Municipal do Meio Ambiente, que começou a usá-los, primeiramente em sua própria sede e depois em parques, fazendo com que virassem quase uma marca registrada. Como o tronco tem uma grande resistência e é fácil trabalhar com ele, resolvemos utilizá-lo em vez de uma madeira com corte convencional.
Universidade Livre do Meio Ambiente: em parte da estrutura Bongestabs aproveitou postes de luz antigos que seriam eliminados.<br>Foto: Daniel Castellano / AGP / Agencia de Noticias Gazeta do Povo
Universidade Livre do Meio Ambiente: em parte da estrutura Bongestabs aproveitou postes de luz antigos que seriam eliminados.<br>Foto: Daniel Castellano / AGP / Agencia de Noticias Gazeta do Povo
Você vê um reaproveitamento real dos materiais no que é produzido hoje na arquitetura?
Esse processo de reutilização ganhou continuidade, mas com troncos de reflorestamento, comprados de empresas que tratam e revendem. Não é o material bruto que recebíamos, reaproveitado de fato. As coisas mudam com o tempo. Mas hoje vejo muitos projetos com troncos em que eles são mal utilizados. Porque são usados como enfeite. Nós usávamos como estrutura realmente. O tronco estava ali porque tinha uma função específica.
Foto: André Rodrigues/Gazeta do Povo
Foto: André Rodrigues/Gazeta do Povo
Isso que você fala, de usar algo para estrutura, e não enfeite, é um traço do modernismo?
Minha formação é modernista. Ela aparece sempre. Eu nunca aderi, por exemplo, à loucura do pós-modernismo, àquele exibicionismo. Eu ainda acredito em princípios como o respeito aos materiais, à função, o uso do material de acordo com sua natureza. Acredito em usar aço como aço, madeira como madeira, tijolo como tijolo. Não usar aço como madeira, coisa que vi muito nos Estados Unidos, por exemplo. Eles fazem uma estrutura de aço e decoram como se fosse madeira. Aí você olha e acha que é madeira. Para mim, tem que deixar o aço aparecendo. Aço é aço, madeira é madeira.
Falando em modernismo, na época em que você e vários outros oriundos do curso de Arquitetura e Urbanismo da UFPR assumiram a concepção de diversas obras públicas e de urbanismo, Curitiba ganhou novos traços. Curitiba ainda é um exemplo de urbanismo?
Curitiba teve um plano de urbanismo inovador numa época certa. Ele funcionou por anos. Não estamos piores hoje porque o plano foi feito naquela época. Os benefícios dele ainda perduram, como questões estruturais. Nós alteramos a cidade. Curitiba ainda se beneficia das consequências do que começou a ser implantado em 1965.
Você fala que o plano foi implantado numa época certa. Por que era uma época certa?
Porque tínhamos uma população de cerca de 600 mil pessoas. Não havia tantas leis restritivas ao poder público como há hoje. Enquanto prefeito, Jaime Lerner fechou a Rua XV em um final de semana. Hoje, qualquer prefeito que tente fazer isso terá atrás um procurador ou juiz proibindo. Além de todas as dificuldades de licitação, etc. Ele [Lerner] só conseguiu porque foi uma surpresa. As leis facilitavam mais a ação do administrador público. Hoje, juiz dá palpite, promotores públicos dão palpite, todo mundo intervém.
Hoje há um excesso de legislação?
Sim. Por exemplo hoje você vai fazer uma rampa na obra e ela precisa ter tanto de altura, tantos graus de inclinação. É um exagero, como se os profissionais, arquitetos ou engenheiros, não fossem responsáveis. Há normas demais. Inclusive, eu brinco, falando que as prefeituras geralmente são coautoras dos projetos, porque elas te limitam, fazem exigências exageradas ou até mesmo tolas. Mas também há uma exigência social. O mercado produz o que vende, o que as pessoas querem. Quem define os padrões arquitetônicos é a sociedade. O que a sociedade quer é o que ela pede dos arquitetos.
Questões ambientais estão muito em voga. No último dia 22 de março, prefeitura e estado oficializaram uma parceria para a despoluição do Belém, por exemplo. Esse é o caminho certo para voltarmos a ser um exemplo de cidade?
O Rio Belém é um problema. E vem sendo um problema há muito tempo. Quando entrei na prefeitura, em 1965, já era um problema. A despoluição do Rio Belém e de outros rios vem se arrastando há anos. Só que a coisa começou errada, quando colocaram o rio num canal. Ele precisa correr livre. Ao canalizá-lo, cria-se um problema. Acredito que essa não seja nem uma questão de ecologia, mas sim de saúde pública.
Foto: Henry Milleo/Gazeta do Povo
Foto: Henry Milleo/Gazeta do Povo
Descanalizar seria uma forma de as pessoas se sentirem mais próximas dos rios?
Sim. O rio faria parte da vida das pessoas, o que não acontece hoje. Ele está escondido, ninguém sabe que existe. No caso do Barigui, do São Lourenço, o tratamento foi feito de maneira adequada: você tem um parque que protege o rio e protege o entorno de enchentes. Assim, outra relação é criada com o rio.
Escritórios de Curitiba estão ganhando projeção ao vencerem diversos concursos nacionais com projetos inovadores. Eles apontaram a falta de concursos locais para obras públicas e a detenção dos projetos por parte do Ippuc como contribuintes para a reprodução de uma arquitetura sem mudanças por aqui. O que você pensa sobre isso?  
Não sei dizer com certeza. Mas sem dúvida a tendência do Ippuc é se tornar um órgão burocrático, como qualquer órgão público. Na época do Lerner, tinha uma porção de profissionais trabalhando no Ippuc para desenvolver o plano de Curitiba, que foi fruto de uma mudança de mentalidade. Tenho a impressão de que hoje o Ippuc se julga dono da cidade. Detém um monte de arquitetos lá dentro e quer colocar esses profissionais para fazerem projetos.
O melhor seria lançar mais concursos?
Se dúvida. O concurso é mais viável do ponto de vista da escolha do melhor projeto. Só que o concurso tem um custo adicional que geralmente o poder público não quer pagar, a não ser que seja uma obra muito fora do comum.
Agora, sobre a relação das pessoas com o espaço: hoje existe uma falta de conexão dos moradores com sua cidade?
Eu acho que sim. Na minha opinião, baseada em algumas pesquisas em outros locais e na minha própria percepção, a cidade é um local de passagem. As pessoas vão da rua à casa, da casa para o serviço, do serviço para casa, de casa para um restaurante, mas não têm muita percepção do que acontece em volta delas. A cidade é calçada e rua. É por isso que a nossa arquitetura, em geral, é ruim e as cidades são feias. Porque as pessoas não prestam atenção, não vivem a cidade. Não há conexão. Muitas vezes não percebem a própria casa. Você saberia fazer um desenho da sua agora, de memória?
Por que estamos assim?
Não sei dizer. Mas acho que sempre foi assim. Em cidades grandes, as pessoas não têm tempo para observar. Não é como em uma cidade pequena, em que você anda e acaba topando com as coisas. Pra mim é muito diferente quando sou motorista e quando eu estou de carona. No segundo caso, eu olho em volta. Quando estou dirigindo, fico concentrado. O modo como você se transporta te desliga, te desconecta da cidade. Os meios de transporte realmente alteraram a maneira de perceber as coisas. Quando você caminha e presta atenção ao que acontece em volta, passa a fazer parte.
E como incentivar as pessoas a caminharem mais?
Eu não tenho ideia. Mas acredito que um bom caminho seria começar com crianças, nas escolas. Levar as crianças a praças, parques, fazendo com que deixem os celulares em casa, claro [risos]. E deixa que elas curtam, vejam, sempre orientando. Quando você conhece sua cidade, a praça, o parque, você passa a viver esses espaços, frequentá-los mais. Mas hoje é difícil, perigoso sair com um bando de criança na rua.
Que benefícios podemos ter se aumentarmos a conexão com as cidades?
Possivelmente as cidades seriam melhores. Porque você teria mais críticos, mais gente prestando atenção. A arquitetura seria melhor, já que seriam feitos projetos para as pessoas verem de fato. Como diria um arquiteto famoso aí, arquitetura não tem arquibancada. Ninguém senta para ficar admirando um edifício.
*Especial para a HAUS.

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