A morte de Veneza

Key Imaguire Junior
30/01/2016 00:00
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Foto: Marialba Gaspar Imaguire/Acervo.

Eu gostaria de estar escrevendo sobre o romance de Thomas Mann ou o filme do Luchino Visconti – e que o título acima fosse “A morte em Veneza”. Mas, mesmo reconhecendo as qualidades artísticas de ambos os autores, não gosto da representação que fazem da cidade, como um restolho decadente, boa só para turistas e seus paus de selfie. A insalubridade que eles retratam era planetária no século 19 – injusto e errado atribuí-la a Veneza apenas.
Estou me referindo, literalmente, à morte de Veneza , a cidade mais bonita, mais carismática e mais amada do mundo. Ela está ameaçada. Seu aspecto envelhecido não pode ser pretexto para eutanásia!
Não esqueçamos que Veneza está sendo condenada, antes de mais nada, pelo abandono de sua população. Depois de séculos de uma trajetória gloriosa, só comparável na civilização ocidental a Atenas e Roma, em 1631 sofreu com uma peste que vitimou cerca de uma terça parte da população, reduzindo-a a 98 mil pessoas. Daí em diante, cresce lentamente até a Segunda Guerra: em 1951, tem 175 mil habitantes. De lá prá cá, cai assustadoramente até os atuais 56 mil, diminuindo a cada ano.
Salvatore Settis, no excelente “Se Venezia muore”, atribui essa redução a vários fatores. Menos ao turismo intensivo que, se por um lado aporta recursos, por outra tira de seus habitantes o direito à cidade. Muito, aos ricaços que aí compram propriedades – pelo prestígio de ter um lugar em Veneza – para aí passar uma semana por ano. É uma cidade úmida, onde é preciso constante atenção à conservação.
Mas sua morte está sendo decretada menos por seus problemas que pela cobiça dos grandes capitalistas internacionais. As soluções que estão em cima da mesa são típicas: investimentos – e lucros, bem entendido – com uma dúzia de zeros. Em euros.
Transformar o Gran Canale em rodovia asfaltada integrada à rede europeia; fechar a Laguna com “um arco de praias e prédios como Copacabana” ; demolir a Giudecca para aí fazer uma Disneylândia ou uma Las Vegas. A isso se chamaria “salvar Veneza”.
Settis diz que a salvação da cidade passaria pela recomposição da população – mas, nesse ponto, discordo. Uma nova população iria para a cidade com interesses específicos – e portanto, aceitariam as “soluções” capitalistas.
O autor menciona que há, no Brasil, 22 “Venezas”, nos EUA, 29, e na China surgem em toda parte a todo momento: Veneza não é apenas a cidade mais bonita do mundo, mas a obra prima, ainda preservada, do ser humano como construtor de urbes. Ela é o item número um do Patrimônio Cultural da Humanidade: se acabarem com Veneza, não haverá mais coisa alguma que se possa salvar no planeta. Nossa cultura será apenas as cifras do mercado imobiliário.

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