Urbanismo

Um passeio pela Trajano Reis: uma rua com várias camadas de história

Sandro Moser
17/02/2018 17:52
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Apesar da pouca extensão, rua Trajano Reis mistura estilos arquitetônicos, o que fala muito sobre a origem de Curitiba. Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo. | Gazeta do Povo

Com cerca de 800 metros de extensão, em apenas quatro quarteirões, a rua Trajano Reis, no centro histórico, é uma amostra sintética do barro sobre o qual, em três séculos, se ergueu a cidade de Curitiba.
Desde o período colonial quando a via era caminho lamacento entre as missas de corpo presente na Igreja do Rosário e o então recém-inaugurado cemitério da cidade, até às agitadas noites boêmias dos dias atuais, a Trajano Reis é uma via com camadas sobrepostas de história social e arquitetônica que dizem muito sobre quem foi e quem é o curitibano que nela vive e viveu.
Numa mesma esquina é possível perceber casarões coloniais ecléticos, prédios com inspiração art-déco, construções modernistas e edificações contemporâneas despojadas.
Na patina arquitetônica são visíveis os traços trazidos por descendentes de imigrantes de diversas origens que se somam a matriz étnica brasileira composta pelos índios, africanos e portugueses.
A reportagem de HAUS convidou o arquiteto Guilherme de Macedo, do escritório Lona Arquitetos para um passeio arquitetônico pela Trajano.
Macedo destaca os contrastes entre tempos e estilos arquitetônicos antigos e modernos que enriquecem a paisagem urbana da rua desde primeira quadra, na feliz convivência entre a Igreja do Rosário e o modernista Edifício do Rosário, onde hoje funciona a loja Novo Louvre.
Contrastes: essa é a marca da Trajano Reis, segundo o arquiteto. Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo.
Contrastes: essa é a marca da Trajano Reis, segundo o arquiteto. Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo.
De um lado a atual Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos de São Benedito construída em 1946, em estilo barroco, no mesmo local da antiga, demolida em 1931.
A primeira igreja do Rosário foi construída por escravos e para os escravos e serviu de matriz de 1875 a 1893, durante a construção da Catedral, na Praça Tiradentes. Seu interior abriga em azulejos portugueses os passos da Paixão de Cristo.
Do outro, o prédio construído nos anos 1960 tem linhas retas próprias do período modernista outros elementos como pilotis internos, elementos vazados no espaço de circulação e janelas em fita.
O modernismo do prédio contrasta com o rebuscamento dos três casarões ecléticos típicos do que lhe fazem frente, cheios de molduras e detalhes ornamentais.
“Muitos destes casarões eram construídos pelos próprios moradores  e misturam traços de memórias destas pessoas de arquiteturas de seus lugares de origem”, explica Macedo.
Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo.
Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo.
Ao lado das construções coloniais, dos casarios ecléticos e dos exemplos modernistas há “patinhos feios”; edificações feitas a partir da década de 1970 a quem Macedo se refere, educadamente, como “construções com menos personalidade e sem tanto compromisso com qualidade de projeto”.
“A Trajano de uns anos pra cá, entrou no circuito cultural da cidade que envolve boêmia e a chamada baixa gastronomia e este comércio ocupou os casarões alguns sem muito pudor com o patrimônio histórico. O que é válido, pois ao menos dá vida para o espaço”, disse.
“O importante é quem dá uso a estes imóveis saiba que a história aqui tem valor e por isso deve ser cuidada. O Bairro do São Francisco permite uma integração com grafites dando vida as empenas das construções que dão um novo modo de olhar a cidade”, conclui.
Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo.
Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo.
Na segunda quadra da Trajano, um edifício  mostra os traços da arquitetura art-decò na transição para o modernismo que começou nos anos 1940.  No prédio moderno da calçada direita da segunda quadra, o térreo do prédio de quatro andares é todo ocupado por comércio.
Ao lado, uma vila de apartamentos que usavam a mesma célula construtiva em sequencia horizontal, antes que a tecnologia possibilitasse que se fizessem edifício de patamar mais alto.
Em frente, o Jano Bar com sua arquitetura peculiar (algo kitsch) se destaca por um painel gigante de grafite do artista Tom + Amor.
Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo.
Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo.
Na esquina com a rua Carlos Cavalcanti, há um inesperado respiro urbano. A igreja luterana construída em meados de 1890. No mesmo local, uma igreja anterior, em estilo Enxaimel, foi levantada em 1876, mas foi demolida logo depois para dar vez a sua versão mais “moderna”. Para Macedo, a tranquilidade e a área verde (com araucárias e palmeiras imperiais) “rara num centro tão antigo cria um contraste com a nova vocação interessante notívaga da Trajano Reis”.
Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo.
Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo.

Cemitério, América e Trajano

O primeiro nome da via foi “rua do cemitério”. O que parecia um nome tétrico demais para o logradouro cheio de comércios como açougues, armazéns de secos e molhados, alfaiatarias e outros. Ainda durante o império, mudaram-lhe o nome para rua América, usado até 1918.
Deste período ainda resta um único comércio ativo, a Padaria América. Fundada em 1913 e ainda hoje aberta na esquina com a rua Carlos Cavalcanti.
Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo.
Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo.
Em 1918, a rua foi rebatizada com seu nome atual em homenagem a memória do médico e sanitarista falecido naquele ano. No outro lado  – em relação à centenária padaria – está o edifício Jaú.
Com 10 pavimentos, ele se destaca na paisagem com seu estilo moderno e apartamentos grandes que foi todo cercado nos anos 1990, o que atrapalha o conceito inicial de térreo ativo do projeto.

Binário está mudando o perfil do tráfego para pior

Um caminhão carregando uma escavadeira enroscou na fiação na esquina das ruas Trajano Reis e Paula Gomes, um dos cruzamentos mais famosos do centro histórico de Curitiba. O motorista precisou se arriscar com um pedaço de ferro para desembaraçar os fios, manobra que causou um engarrafamento e despertou buzinas no entorno.
O pequeno acidente é sintoma de um novo momento do tráfego da região – o buraco na esquina é outro – depois que a instalação do binário deslocou parte da circulação da rua Nilo Peçanha para o centro histórico, e sem placas (pelo menos na região da Trajano Reis) de orientação para os veículos pesados.  “Pode acontecer mais vezes, se não tiver um projeto para desviar o fluxo pesado daqui”, acredita Macedo.Nesta altura da via, a calçada também foi alterada no ano passado.
Perfil arquitetônico da rua Trajano Reis.  história, os prédios principais o que está conservado/abandonado
Perfil arquitetônico da rua Trajano Reis. história, os prédios principais o que está conservado/abandonado
“Acho importante que a Prefeitura se mantenha atenta aos novos usos das áreas. Aqui há muita circulação de pessoas, bares que ocupam as ruas. É interessante este tipo de reformulação desde que respeite o patrimônio e permita a coexistência dos pedestres com os carros”, afirma Macedo.
Nesta esquina, há duas casas imponentes, uma era da família Leal (onde hoje funciona o centro de educação profissional do Colégio Martinus) é o casarão que sofre um incêndio que abortou seu projeto de restauração.
A Trajano acaba no limite com a rua Inácio Lustosa. Nesta esquina, dois comércios que se orgulham de serem “reis” em suas áreas de atuação: o Rei das Torneiras e o tradicional loja Pedroso, o “rei dos tapetes”.  Real mesmo, porém, são as camadas de história sobrepostas nos muros da Trajano.
O limite da Trajano Reis e Nilo Peçanha. Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo.
O limite da Trajano Reis e Nilo Peçanha. Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo.
“É uma rua vai se transformando de uma forma inconsciente, mas orgânica com a lógica dada pela mudanças de usos e de perfis de pessoas que a frequentam e vivem nela”, disse Macedo.

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