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Nos filmes, costuma ser bem claro: a pessoa diz suas últimas palavras, fecha os olhos, a cabeça e os braços tombam. E acabou. Aquele organismo estava vivo, agora não está mais. No mundo real, morrer não é nada parecido com isso. A ciência ainda discute em que momento, exatamente, uma pessoa faleceu. Quando acha que encontrou respostas, surgem casos que desafiam tudo o que se sabia sobre o assunto. 

Por muitos séculos, para a medicina, a falta de respiração e batimentos cardíacos caracterizava a morte. Essa situação mudou a partir da década de 1960, quando surgiram novos equipamentos capazes de mapear o organismo. O foco então se deslocou para o cérebro: se ele para de funcionar, é sinal de que a pessoa não tem mais consciência de si e do mundo. Mesmo que o quadro cardiorrespiratório seja sustentado, natural ou artificialmente, a pessoa sofreu o que se costumou chamar de “morte cerebral”. Seria o momento, portanto, de selecionar órgãos para doação e se despedir do paciente. 

E o que fazer para impedir a morte? As técnicas mais tradicionais foram surgindo e se acumulando: a respiração boca-a-boca em 1740, a massagem cardíaca em 1890, o desfibrilador em 1947 e a respiração cardiopulmonar em 1970. Nos últimos anos, surgiram duas novas formas de recuperar um organismo que está entrando em colapso. Uma delas é o resfriamento do corpo, que reduz a velocidade de degradação das células e aumenta em 33% as chances de sobrevivência. A outra é o uso do ECMO (sigla para extracorporeal membrane oxygenation, ou “oxigenação por membrana extracorpórea”), um equipamento que filtra o sangue e o bombeia de volta ao organismo. 

Essas novas técnicas de ressuscitação se apoiam num conceito bastante recente, o de que neurônios podem ser reativados. Foi o que aconteceu em 2012, com o jogador de futebol Fabrice Muamba, que desmaiou durante um jogo no estádio White Hart Lane, em Londres, e sobreviveu, sem sequelas, depois que seu coração ficou parado por 1 hora e 18 minutos. Ou com o brasileiro Airton Inamime, que, também em 2012, sofreu uma parada cardíaca dentro do metrô de São Paulo e, depois de 12 minutos sem vida, foi completamente recuperado. 

Se não tivessem sido atendidos com as novas tecnologias, eles certamente estariam mortos. Não estão. Aliás, sabe-se atualmente que, mesmo quando não há nenhum batimento cardíaco, as células ósseas sobrevivem por 4 dias, as células da pele por 24 horas e os neurônios, por 8 horas – e, mesmo depois desse tempo, apesar de ficarem inativos, ainda são viáveis; foi o que descobriram pesquisadores do Instituto Salk, da Califórnia, em 2001, quando usaram neurônios de pessoas que haviam acabado de morrer para cultivar, com sucesso, novas células nervosas.

Sabe-se mais ainda: o antigo medo dos médicos, de que a pessoa ressuscitada sofreria danos cerebrais irreversíveis, pode ser controlado. Acontece que, sem oxigênio, o corpo produz ácido lático. Neste momento, o oxigênio se torna tóxico para o organismo, principalmente se ele é lançado de uma só vez para dentro do corpo. Quem resolve esse problema e reequilibra a química do organismo lentamente é o ECMO. 

Dilema

Mas, se o sistema nervoso pode se recuperar de quadros que, havia poucos anos, eram considerados irreversíveis, o que pensar do conceito de “morte cerebral”? É adequado desligar os aparelhos de uma pessoa em coma, mesmo num cenário em que a medicina claramente ainda não consegue definir com clareza o que é a morte de um organismo? Mas, se a pessoa está imóvel, aparentemente sem nenhuma reação, e ainda sim consegue sentir estímulos, mantê-la viva não significa provocar um sofrimento gigantesco? 

Não há respostas claras para essas perguntas. No Brasil, uma resolução do Conselho Federal de Medicina determina que os médicos respeitem a vontade de morrer do paciente, independentemente do que diz a família, desde que ele tenha expressado esse desejo por escrito, quando estava consciente e sem sinais de depressão. 

“A resolução define que não é antiético desligar aparelhos no caso de uma doença irreversível quando somente os aparelhos mantêm o estado da doença, sem benefícios”, explica Maria Julia Kovács, professora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, onde é também coordenadora do Laboratório de Estudos sobre a Morte. 

“O desligamento de aparelhos não é eutanásia, e sim ortotanásia. A eutanásia não é legalizada em nosso país, é uma medida ativa que induz à morte”, a professora continua. “A ortotanásia é não realizar procedimentos que não trazem nenhum benefício a não ser manter o status quo”. Por que o Conselho Federal de Medicina precisou se manifestar? É que não existe uma lei regendo a questão. 

“O Congresso Nacional vem discutindo há mais de 20 anos uma legislação sobre o assunto e simplesmente foge da sua responsabilidade em tomar uma posição. Temas de abordagem delicada que envolvem questões morais plurais ou religiosas são invariavelmente postergados ad eternum na Câmara e Senado”, afirma Volnei Garrafa, coordenador da Cátedra Unesco de Bioética da Universidade de Brasília (UnB). 

“Defendo fortemente que a palavra final, sempre, é do paciente”, diz o especialista. “Em caso de inconsciência, a decisão deverá ser pautada em um documento deixado pelo paciente, que, no caso de sua inexistência, deverá ser substituído, aí sim, pela decisão da família, mas jamais do médico, unilateralmente”. O professor Volnei já registrou suas vontades por escrito. 

Ainda assim, é muito comum que os aparelhos sejam desligados, seja por desejo do médico ou dos familiares. Aconteceu com a americana Marlise Muñoz, que recebeu diagnóstico de morte cerebral em novembro de 2013 e cujo marido conseguiu na justiça que os aparelhos fossem desligados em janeiro de 2014, apesar de ela estar grávida de 14 semanas

Mas existem casos polêmicos, que colocam a área médica em conflito aberto com as famílias e expõem as limitações para o que a ciência sabe sobre o fim da vida. Vamos conhecer quatro dessas histórias. 

Homem em coma 

A identidade do paciente não foi divulgada, e ele acabou falecendo por infecção pulmonar. Mas seu caso apresentou uma possível nova ferramenta para a medicina devolver a consciência a pacientes em coma. O homem em questão tinha 35 anos e estava em estado vegetativo desde 2001, quando sofreu um acidente de carro. Até que, em 2017, pesquisadores do French National Center for Scientific Research o “acordaram”. 

Para isso, promoveram estímulos elétricos no nervo vago, que controla o sistema nervoso parassintético, responsável, por exemplo, por controlar o funcionamento do fígado e o ritmo dos batimentos cardíacos. Os pesquisadores acreditam que, ao estimular o nervo, utilizando eletrodos na região do pescoço, conseguiram que o paciente recuperasse ao menos parte de sua consciência. 

Depois do tratamento, o homem, que não apresentava nenhum tipo de resposta a estímulos, passou a abrir os olhos com mais frequência, parecia seguir o movimento das pessoas com os olhos, e começou a responder a instruções de mexer os olhos e sorrir. Aparentemente, ficou emocionado a ouvir sua canção favorita – pelo menos, lágrimas saíram de seus olhos no mesmo momento. 

Sarah Scantlin 

Atropelada por um motorista embriagado em 1984, quando tinha 18 anos, a americana e moradora da cidade de Hutchinson, no Kansas, perdeu parte do cérebro durante a cirurgia realizada para salvar sua vida. Os médicos foram claros: ela dificilmente sairia do estado vegetativo, e se por acaso saísse não seria mais capaz de falar. 

Pois em 2005, ela abriu os olhos e começou a conversar, ainda que com dificuldade. Apelidada pela imprensa americana de “a verdadeira bela adormecida”, só morreu em 2016, duas semanas depois de completar 50 anos. Nesse meio tempo, ela concedeu entrevistas, e foi tema de um documentário

Ficou claro então que, ao longo dessas duas décadas, Sarah não chegou a perder totalmente a consciência. Ela tinha alguma ideia, por exemplo, de que havia acontecido um atentado terrorista em Nova York, em 11 de setembro de 2001. Conseguia expressar opiniões e sentimentos, ainda que não tenha recuperado o movimento do corpo. 

Sarah não é um caso isolado. A britânica Jenny Bone, por exemplo, ficou aparentemente inconsciente, mas por um motivo diferente: ela tinha a Síndrome de Guillain-Barré, que faz com que o sistema imunológico ataque o próprio organismo e deixa a pessoa sem movimentos ou reações. Acontece que ela acordou, voltou a trabalhar e conseguiu até mesmo disputar uma corrida de rua de cinco quilômetros. Ela lembra de ouvir, nitidamente, o momento em que o médico pediu ao marido dela autorização para desligar os aparelhos, e ele recusou. 

O sul-africano Martin Pistorius não recuperou os movimentos, mas também ficou preso dentro do corpo, e depois voltou a se comunicar com as pessoas. Foram 12 anos, aparentemente sem reações, até que uma enfermeira especialmente atenciosa começasse a perceber que havia um padrão no movimento de seus olhos. Martin hoje está casado e vive na Inglaterra. Até hoje os médicos não sabem por que ele entrou em estado vegetativo, nem por que saiu. 

Carol Brothers 

A dona-de-casa britânica tinha 63 anos em 2013, quando seu coração ficou parado por perto de 45 minutos. Na sequência, foi colocada num helicóptero, onde o médico, ciente da importância de resfriar a temperatura de pessoas que sofreram paradas cardíacas, colocou sobre Carol Brothers os pacotes de comida congelada que ela tinha acabado de comprar – a paciente estava guardando as compras do mercado quando passou mal. 

Os primeiros exames hospitalares sugeriram que ela podia estar com morte encefálica. Ela ficou em estado de coma, mas se recuperou completamente depois de alguns poucos dias. Ao recobrar a consciência, Carol fez um relato que nem chega mais a ser surpreendente, de tão comum a pessoas que passaram pelo mesmo que ela: disse ter saído do corpo. 

Os relatos são sempre parecidos: as pessoas que passaram por experiências de quase morte contam que deixaram o próprio organismo, ouviram tudo o que acontecia a sua volta e até mesmo conversaram com amigos ou familiares já falecidos. A sensação geral é de paz, bem-estar. A brasileira Letícia Cristina Moreira de Barros também passou por isso, em 2015, quando sofreu convulsões consecutivas e sofreu duas paradas cardiorrespiratórias. Letícia contou, depois de voltar à vida, que ouviu seus avós, já falecidos, pedindo que ela não abandonasse sua mãe. 

O que a ciência sabe sobre as experiências de quase morte? Quase nada, a não ser que existem padrões nos relatos. As poucas teorias que existem – como a de que o fenômeno é explicado pela falta de oxigênio no organismo – não se sustentam. Por exemplo: normalmente, a ausência de oxigênio provoca pavor, e não bem-estar. 

Jahi McMath 

Já o caso da adolescente americana é tão complexo que um tribunal vai precisar decidir se ela está viva ou não. Ela parecia ter morrido em dezembro de 2013, depois de ser submetida a uma cirurgia de amígdalas – durante a recuperação, começou a perder sangue de forma inexplicável e, no dia 12, sua morte cerebral foi declarada. Oficialmente, desde então, Jahi está falecida, e um atestado de óbito foi emitido. Sua mãe, Latasha Winkfield, não concorda, e já produziu dezenas de vídeos em que a menina move as mãos seguindo instruções específicas. 

Depois de comprar uma briga com o Hospital Pediátrico de Oakland, a família se mudou para Nova Jersey, um dos dois estados americanos que permitem que os familiares questionem o diagnóstico de morte cerebral – que, a essas alturas, já havia sido confirmado por outras autoridades médicas, incluindo Paul Fisher, chefe da Neurologia Pediátrica do hospital infantil da Universidade Stanford. Para se sustentar nessa situação de exílio, a família chegou a viver em motéis, até conseguir uma casa, cujo aluguel é bancado graças à venda da casa de Latasha Winkfield na Califórnia. 

O caso é tão confuso que Latasha já teve que pagar multa ao Imposto de Renda, por ter declarado sua filha como dependente, quando, oficialmente, ela está morta. A família processou o hospital onde foi feita a cirurgia de amígdalas. A mãe acusa os funcionários da instituição de terem cometido o erro médico que deixou Jahi no estado atual. Arthur Caplan, diretor e fundador do Departamento de Ética Médica da Universidade de Nova York, chegou a declarar que o que a família estava fazendo, ao manter a garota ligada a aparelhos, era alimentar um cadáver. 

Acontece que, em junho de 2017, uma das maiores autoridades em neurologia pediátrica do país, o doutor Alan Shewmon, declarou que Jahi McMath está, sim, viva. Apesar de os exames neurológicos continuarem a indicar que não existe atividade cerebral, ela reage a estímulos, exatamente como alega a mãe da garota. O caso está nos tribunais e Latasha Winkfield segue cuidando da filha, à espera de uma audiência e impossibilitada de voltar para sua cidade natal, onde a Justiça a obrigaria a desligar os aparelhos. 

“A morte cerebral não é consistente com a morte do organismo como um todo. Ela foi introduzida como uma forma de procurar por mais órgãos transplantáveis”, diz Scott Henderson, professor de filosofia da Universidade Luther Rice e autor de Death and Donation: Rethinking Brain Death as a Means for Procuring Transplantable Organs. “Apesar de pacientes com morte cerebral não continuarem a viver por muito tempo, eles ainda não estão mortos”. Por isso mesmo, enquanto a medicina busca respostas, casos como o da Jahi tendem a continuar aparecendo e provocando muita polêmica.

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