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A chamada “alt-right”, ou direita alternativa, ganhou destaque público repentino nos Estados Unidos há mais de um ano | ANDREW CABALLERO-REYNOLDSAFP
A chamada “alt-right”, ou direita alternativa, ganhou destaque público repentino nos Estados Unidos há mais de um ano| Foto: ANDREW CABALLERO-REYNOLDSAFP

A chamada “alt-right”, ou direita alternativa, ganhou destaque público repentino nos Estados Unidos há mais de um ano. Inicialmente era um movimento que estava presente principalmente online e era cada vez mais dominado por ideólogos nacionalistas brancos. Em meados de agosto, a alt-right se uniu offline com neonazistas e membros da Ku Klux Klan na manifestação “Unite the Right” (Una a Direita, em tradução livre), em Charlottesville, que acabou em violência, resultando na morte de Heather Heyer.

Depois de Charlottesville, a condenação pública aos “grupos de ódio” foi intensa, e com razão. Apesar disso, o alcance internacional da alt-right continua a crescer. Se estamos preocupados com o futuro, não basta simplesmente protestar contra o “ódio”. É preciso analisar e refutar as crenças que levam esse movimento a parecer aceitável, até mesmo atraente. 

Richard Spencer, que cunhou o termo “alt-right”, frequentemente pede uma discussão racional de suas posições. Para responder efetivamente, precisamos atender a seu chamado e apresentar uma crítica de seus princípios. Pelo fato de fazer da identidade racial o fundamento da humanidade de um indivíduo, o chamado “identitarismo” de Spencer tende intrinsecamente à violência. Tratando nossa condição humana comum como sendo irrelevante para a questão da identidade, ele se posiciona em oposição dramática às raízes culturais da civilização “ocidental” cujo manto reivindica. 

A raça como base da identidade 

Em seu vídeo mais visto no YouTube, Spencer indaga: “Quem é você?”. Para ele, quem somos é algo mais profundo que preferência pessoal, quem foram nossos pais ou nosso lugar de origem. “Em última análise”, ele afirmou em dezembro na universidade Texas A&M, “gostando ou não, você faz parte da uma raça”. A raça, para ele, é algo mais profundo que a cor da pele. É cultura, história e a comunidade genética na qual estas foram desenvolvidas. A continuidade genética é necessária; a pureza, não. Uma raça, explica Spencer, é “um povo e seu espírito”, uma “família maior” com sua própria “narrativa a transmitir”. Nada é mais profundo que raça. A raça é “o alicerce da identidade”, a “raiz” e “a base, sendo impossível ir mais fundo que isso”. Conhecer a própria raça é conhecer a si mesmo. 

Quem é o próprio Richard Spencer? Ele faz parte “dos povos, da história, do espírito e da civilização da Europa”, uma raça que começou “no mundo grego e romano”, cresceu para tornar-se um império e foi alimentada pelo cristianismo, hoje suplantado (Spencer é ateu). 

Na visão dele, a ânsia multicultural atual por igualdade representa um risco a todas as raças, mas especialmente à da Europa. Esse “grande apagamento” está, para ele, reduzindo os brancos a não-pessoas, “destituídos de identidade e sentido”, nas “ruínas do mundo pós-moderno”, onde vivem “em meio a dívidas, Snapchat, pornografia e Prozac” em “um futuro pior que a extinção”. 

Para combater esse destino, Spencer quer um “etno-Estado branco” norte-americano em que a raça pan-europeia possa voltar a se fortalecer. Pois, segundo ele, apenas a raça pode nos conferir um destino ou “telos”, um “ideal que canalize nossas energias” para “alcançarmos as estrelas” e “arriscarmos tudo por metas que são super-humanas”. 

Mas será que a visão racial de Spencer se enquadra na tradição da civilização europeia que ele evoca? Muitos de seus críticos citam a democracia, o capitalismo e os direitos humanos como desenvolvimentos historicamente europeus que não são definitivamente “europeus” mas que, como valores universais, podem pertencer a todos e conferir grandeza a todos. Spencer ironiza esses desenvolvimentos, descrevendo-os como os “clichês” de um “universalismo abstrato” que não expressa nada mais profundo senão o mero fato de nossa participação comum em uma economia globalizada. Como princípios de identidade, eles nos deixam “sem raízes”, “vagando sem destino” em uma terra que se tornou “apenas mais um lugar onde sair às compras”. O consumismo pacífico, ele alega em seu vídeo, não foi o que definiu a Europa e fundamentou sua grandeza: “O homem não vive e não morre por abstrações”. Os europeus sempre viveram e morreram não pela liberdade e as compras, ele afirma, mas pela raça. É quem somos. Esse espírito de conquista teria produzido as grandes realizações culturais e tecnológicas da civilização ocidental. 

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Podemos, é claro, querer afirmar que cada pessoa é mais que seus bens, suas preferências, as coisas que compra ou mesmo que suas amizades; que quem somos transcende as circunstâncias de vida do status social e das conquistas materiais pelas quais uma cultura consumista pode nos medir; que deve haver algum ideal que nos aponte um caminho mais elevado, que conduza a algo maior. No entanto, algo está faltando na “raça” descrita por Spencer. Alguma coisa foi esquecida, perigosamente. 

Nós a encontramos em nossa própria experiência. Embora a vida de outros, seu sofrimento e sua experiência na sociedade não possam ser nossas, e embora as culturas e “narrativas” distintas das quais Spencer fala existam, não deixa de ser fato que cada um de nós é moldado por nossas interações com as pessoas com quem esbarramos na vida. Uma criança italiana que conheça uma criança nigeriana, pela primeira vez; um estudante de intercâmbio vindo da Baviera que faz amizades quando passa um ano do ensino médio na península superior do Michigan, até mesmo a amizade do próprio Richard Spencer com um estudante afro-americano no colégio – transformamos uns aos outros através dos relacionamentos. 

O identitarismo da direita alternativa não consegue explicar essa capacidade como sendo uma dimensão necessária de quem somos. Ele não consegue explicar como esses contatos entre diferentes culturas e “raças” possam ser de alguma maneira melhores que a diluição ou mesmo degradação de nossa identidade. No entanto, dentro da tradição ocidental que Spencer evoca – de fato, como um princípio fundamental dessa tradição -, outros já refletiram sobre a base e o significado da transmissão pessoal e cultural. 

Sócrates e a humanidade

Spencer pode ter razão quando diz que não foi o consumismo que impulsionou a civilização ocidental, mas está errado quando considera que foi a raça que o fez. Seu vídeo aponta para outra narrativa de quem somos. No momento em que ele fala em cultura, história e destino, a câmera se detém sobre um busto de Sócrates, ele próprio uma das fontes originais do pensamento ocidental. Como Spencer, também Sócrates perguntou “quem é você?” e aconselhou que as pessoas “se preocupem menos com o que possuem e mais com quem são”. 

Mas Sócrates descobriu um alicerce da identidade que é mais profundo que a raça. De acordo com o filósofo Pierre Hadot, para Sócrates “o problema real” é “ser desse jeito ou daquele”. Na Apologia, Sócrates aconselha que nos questionemos, indagando se “levamos em conta a sabedoria, a verdade e a perfeição de nossa alma”. Cada pessoa precisa “velar por si mesma e sua própria perfeição na bondade e sabedoria”, que deve ter precedência sobre a reputação, as honras e o papel da pessoa em sua cidade. Sócrates vive e de fato morre para aprimorar sua cidade, indagando sobre como ser humano, sendo isso algo que perpassa e subjaz a vida da pessoa como ateniense. Não basta a pessoa saber que é ateniense. Sócrates vai mais fundo que o alicerce racial citado por Spencer. Apenas através de uma vida que examina sua própria humanidade é que nossa observância das leis e virtudes atenienses pode nos conduzir à excelência maior. Sem nos questionarmos como humanos, não podemos nos conhecer verdadeiramente. 

Mas Sócrates não procura definir a humanidade em um vazio. Cultura, sociedade e experiência individual não são, para ele, uma casca que precisaria ser descartada para revelar o núcleo humano em seu interior. São as formas através das quais a humanidade é vivida, pelas quais ela é condicionada e através das quais ela é conhecida. Não podem ser negadas ou apagadas. 

Assim, ao mesmo tempo em que a tradição socrática rejeita a ideia de que raça e cultura seriam a base mais profunda da identidade, ela não reduz a boa sociedade a um globalismo fácil de autonomia individual e prosperidade material. Uma sociedade nunca pode ser “apenas mais um lugar para se fazer compras”, uma cultura perpetuamente cambiante feita de modismos e tendências, porque a humanidade autêntica requer bens morais que são atualizados e encontrados através da vivência individual e da comunidade cultural. 

Entretanto, a humanidade continua a ser o terreno dessas formas, e, na medida em que suas potencialidades transcendem qualquer formação particular, as vidas humanas distintas nunca podem ser absolutamente incompreensíveis umas às outras, nunca podem ser essencialmente inacessíveis umas às outras, por mais que possam diferir. Nossa identidade amadurece em diálogos humanos que, precisamente pelo fato de que os participantes são humanos, continuam a ser possíveis – por mais difíceis possam ser – tanto entre culturas quanto no interior delas. Sempre temos algo a mais a aprender com outros. Vivemos mais plena e humanamente graças aos diálogos profundos com os quais, na visão de Hadot, os seres humanos “descobrem suas possibilidades interiores”, mesmo as realidades humanas que essa ou aquela vida ou cultura particular deixa ocultas. Assim, Sócrates dialoga livremente com políticos, poetas, artesãos e escravos, porque no cerne de seu projeto está a confiança em que o diálogo humano é capaz de chegar a uma verdade humana fundamental.

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É uma verdade vivida (ele espera) por meio das culturas e dos povos, mas uma verdade que, mesmo assim, transcende essas culturas e esses povos, uma verdade pela qual eles devem ser avaliados. Assim, no “Mênon”, Sócrates afirma que “tanto o homem quanto a mulher, se quiserem ser bons, precisam das mesmas qualidades de justiça e moderação”, de modo que “toda a humanidade é boa da mesma maneira; pois homens e mulheres tornam-se bons quando adquirem as mesmas qualidades”. A humanidade não é uma abstração pós-facto. Esses potenciais e suas diversas concretizações nas circunstâncias reais de nossa vida são o que tornam o ser humano mais profundamente aquilo que ele ou ela pode vir a ser. 

É esse o “espírito” e o ideal da tradição ocidental: valorizar o que é contingente como sendo o contexto de nossa vida e, ao mesmo tempo, olhar através do que é contingente para buscar uma excelência universal. É essa a busca que, para Sócrates, pode realmente levar um ser humano e uma sociedade à grandeza. 

Na civilização europeia, esse espírito foi alimentado em algo que o historiador Rémi Brague descreve como uma “identidade excêntrica” que se recusava a enxergar sua própria cultura ou raça como absolutas. A civilização ocidental “utilizou seu conhecimento do que lhe é estrangeiro ... para compreender a si mesma, ganhando consciência do caráter não óbvio de suas próprias práticas culturais”. Assim, os romanos tomaram emprestado dos gregos. A cristandade herdou dos judeus, dos pagãos, dos muçulmanos e do Extremo Oriente. Brague enxerga o colonialismo como um declínio, um momento em que a “identidade excêntrica” da Europa perdeu espaço devido a um “desejo de compensar, através da dominação sobre povos que ela alega que seriam inferiores, por seu próprio sentimento de inferioridade em relação à antiguidade clássica”. 

Assim, o verdadeiro “espírito” da Europa não é racial. Sua “excentricidade” ganha nitidez na convicção socrática de que a humanidade é a base comum mais profunda de quem somos. Esse humanismo é inseparável da tradição ocidental. 

A violência da ideologia alt-right 

Como a longa história do racismo americano, a manifestação em Charlottesville trai esse legado. Não obstante o que alegaram seus organizadores, nenhum diálogo sobre identidade poderia ter ocorrido ali, porque a ideologia “identitária” da direita alternativa não reconhece a própria humanidade como sendo relevante à questão. Para o próprio Richard Spencer, o homo sapiens como um todo não passa, na melhor das hipóteses, de uma coleção de “primatas aparentemente inteligentes”. 

Não surpreende que, em um estudo psicológico recente que mediu a “desumanização”, os participantes que se descreveram como sendo da alt-right voluntariamente classificaram 91% dos brancos, em média, como sendo humanos plenamente evoluídos, com 87% atribuídos aos europeus, 73% aos judeus e 65% aos negros (posição intermediária entre o homo erectus e os neandertais, na escala visual do teste). Para eles, não faz sentido nem é necessário interagir com esses outros sub-humanos. Esses intercâmbios não seriam apenas irrelevantes – seriam autodestrutivos. 

Aqui chegamos à violência. Para o identitarismo alt-right, quando a identidade de uma pessoa é contestada por outra ou quando as tendências demográficas ameaçam nossa “raça”, corremos o risco de perder o que existe de mais profundo em “quem eu sou”. Mas que resposta pode haver, se a humanidade compartilhada não passa de uma abstração irrelevante? Ela não pode justificar um diálogo com outros, diálogo esse que, de qualquer maneira, seria inútil para a descoberta e concretização de nossa própria identidade racial. Não resta outra alternativa senão rejeitar a ameaça existencial que a oposição do outro inevitavelmente implica. 

A violência sempre deve continuar a ser uma opção para a direita alternativa, uma extensão natural do imperativo de preservar “quem eu sou” por meio da existência e visibilidade de minha identidade racial. Quando Spencer reflete que o nascimento de um “etno-Estado” branco poderia ser “horrivelmente sangrento e terrível”, podemos captar como esse caminho é concebível dentro da ideologia que ele criou. 

Perto do final de seu vídeo, Spencer declara: “O que nossos ancestrais tinham como garantido e certo, nós precisamos descobrir e renovar”. Ele tem razão, apesar dele mesmo, pois, quando a questão de pelo que vivemos e morremos é reformulada de tal maneira que nossa humanidade comum passa a não ter relevância para nossas respostas, então já abrimos o caminho para o discurso humano ser sufocado pelo som de um automóvel colidindo com um corpo humano desumanizado. 

*Jordan Wales é professor assistente de teologia no Departamento de Filosofia e Religião do Hillsdale College. Ele recebeu seu Ph.D. em Teologia Histórica da Universidade de Notre Dame.

©2018 Public Discourse. Publicado com permissão. Original em inglês
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