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Detalhe da capa da edição de 2008 do livro “Elza, a Garota”, de Sérgio Rodrigues | Divulgação
Detalhe da capa da edição de 2008 do livro “Elza, a Garota”, de Sérgio Rodrigues| Foto: Divulgação

Elza foi assassinada aos 18 anos logo após preparar um café para aqueles que acreditava serem seus amigos, numa casa do Rio de Janeiro. Era militante do Partido Comunista. Elza Fernandes era seu codinome, e Elvira Cupello Calônio seu nome verdadeiro. 

É bem provável que você nunca tenha ouvido falar dela. “A esquerda apagou a história de Elza de forma deliberada e consciente, para ocultar um crime que a deixava mal”, afirma Sérgio Rodrigues, autor do livro “Elza, a Garota”, lançado em 2008 e relançado neste ano pela editora Companhia das Letras. Com uma narrativa investigativa com elementos de ficção, Sérgio Rodrigues discorre em 216 páginas sobre a vida interrompida muito cedo de uma personagem real esquecida pelos brasileiros. 

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Ainda adolescente, Elza entrou para o Partido Comunista não graças às suas convicções políticas, mas movida pelo coração. Elvira acompanhava as reuniões de seu irmão, Luiz, com seus amigos em Sorocaba, no interior de São Paulo. Admirava o linguajar rebuscado e as colocações dos jovens amigos de seu irmão, em especial de Antonio Maciel Bonfim, que se tornaria o Secretário-Geral do Partido Comunista no Brasil, sob o codinome Miranda.

Jovem e apaixonada, aos 16 anos Elza assumiu nova identidade e foi ao Rio de Janeiro morar com seu “crush”, onde passou a militar para o Partido de Luiz Carlos Prestes, num período que o país ainda vivia sob a Ditadura do Estado Novo, comandado com mão de ferro por Getúlio Vargas. 

Diferentemente de outros membros do Partido, Elza não era letrada. Analfabeta, acabou se envolvendo com os comunistas pela paixão que aqueles discursos causavam nela. Conhecia o posicionamento da esquerda pelo que lhe contavam. Naquela época, a educação formal não era acessível como hoje, e o índice de analfabetismo atingia 52%. Não fazia muito tempo que as mulheres nem votar podiam: elas conquistaram esse direito apenas em 1932. 

Elza Fernandes foi morar com o namorado no Rio de Janeiro em 1934. Trabalhava com afinco no Partidão seguindo Miranda. Com o recrudescimento da perseguição do governo Vargas aos membros do partido que participaram da Intentona Comunista — movimento que tentou promover um golpe para destituir Vargas da presidência — as coisas mudaram para a jovem. Entre os perseguidos estavam as pessoas próximas à Prestes, incluindo Elza. Nessa época, as comunicações entre os membros da esquerda eram feitas por meio de cartas. Elza, por muitas vezes, era usada para entregar as comunicações pela cidade. Porém, com suas limitações de leitura, ela sabia apenas o que lhe era repassado oralmente. 

O assassinato

O grupo permaneceu em clandestinidade até que em 1936 houve uma delação indicando onde o grupo de escondia e como se comunicava. Os membros foram levados à prisão para depor; alguns apanharam. Elza também foi presa, mas a polícia notou que pouco sabia, e apenas entregava as cartas, desconhecendo o conteúdo. Foi liberada e ainda pôde visitar Miranda, que estava preso, por duas vezes. 

A cúpula do partido, incluindo Prestes, passou a suspeitar de Elza, pois a garota entregava os recados e era quieta. Em sua segunda visita à Miranda, este lhe entregou um bilhete em que pedia que os amigos cuidassem de Elza. O bilhete levantou ainda mais a suspeita de que Elza fosse a delatora infiltrada, e que o bilhete teria sido escrito pela polícia para entregar o resto do grupo. Acreditavam que a sua ingenuidade seria estratégia, e teria sido presa apenas como disfarce.

Com a desculpa de que era para sua própria proteção, Elza foi levada para um esconderijo na Zona Oeste do Rio de Janeiro, em uma casa de um dos membros do Partido. Na casa, passou pelo infame “Tribunal Vermelho”, após ser investigada por membros do Partido Comunista e da Komintern (Internacional Comunista, organização internacional formada pelos partidos comunistas, e que na época estava sob o comando de Stalin). Nos interrogatórios, Elza sempre negou ter entregado os amigos, e mesmo gerando dúvidas entre seus interrogadores, a ordem que veio de Prestes foi expressa: execução. 

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Elza ficou alguns dias no esconderijo, até que uma reunião foi convocada no local e disseram para ela que tudo não passara de mal entendido. Pediram que fizesse um café. Quando Elza retornou para servi-los, foi prontamente sufocada e morta. Seu corpo foi escondido no quintal da casa.

No livro de Sérgio Rodrigues, a história de Elza Fernandes é apresentada de modo a conhecer a garota e o contexto de sua morte pela visão do personagem fictício Molina, o jornalista e narrador, o qual não apenas apresenta o Brasil da Era Vargas, como também indaga sobre a história da garota assassinada. “O romance tenta iluminar desvãos e reentrâncias não alcançadas pelo olhar da não ficção. Acredito mesmo nesse poder da literatura inventiva, a capacidade de dizer certas coisas que nenhuma outra linguagem alcança” diz Rodrigues. “Mas dentro dele existe uma pesquisa histórica rigorosa, acompanhada de um ensaio histórico que imagino revelador de certos aspectos mal contados do passado político brasileiro.”

Esquecida

Em 1940, Prestes foi formalmente acusado e julgado pela morte de Elza. O corpo foi exumado, e uma ampla investigação foi feita pela justiça. Prestes foi julgado culpado e condenado à 30 anos de prisão, mas anistiado em 1946, perpetuando a injustiça. Talvez por esta razão, a história da jovem inocente morta após um inquérito interno do Partido Comunista, a mando de Luiz Carlos Prestes, sob falsas alegações, acabou esquecida na história do Brasil diante de outras figuras da época.

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Num mesmo período de Elza, Olga Benário (esposa de Prestes, judia alemã, deportada para a Alemanha nazista, sendo morta na câmara de gás) também viveu injustiças. Em ambos os casos, a política pautou o destino destas mulheres. Mas enquanto Olga ganhou atenção mundial, Elza continua esquecida. Nem a imprensa, nem mesmo militantes (de direita ou de esquerda) comentam sua história. A sua aparente inexistência atraiu a atenção de poucos, dentre eles de Sérgio Rodrigues, que recupera o triste destino que essa jovem de 18 anos acabou encontrando, graças ao fanatismo político de uma ideologia assassina. 

Entrevista

Sérgio Rodrigues conversou com a Gazeta do Povo sobre o livro, que, dez anos depois de ter sido lançado, volta às livrarias em um ambiente político totalmente diferente. “O livro foi recebido em 2008 em clima de grande civilidade. Vejamos como este Brasil mais crispado e polarizado de hoje vai reagir a ele”, afirma o escritor. Confira abaixo a entrevista:

Gazeta do Povo — O seu livro Elza, a Garota, acaba de ser relançado pela editora Companhia das Letras. O senhor acredita que da época do lançamento da primeira edição em 2008 para agora, dez anos depois, escrever e publicar uma história investigativa em vez de ficção continua sendo complicado? Ainda mais sobre questões que envolvem política? 

Sérgio Rodrigues — Elza é antes de mais nada um romance, ou seja, um livro de ficção. É verdade que tem dentro dele uma pesquisa histórica rigorosa, acompanhada de um ensaio histórico que imagino revelador de certos aspectos mal contados do passado político brasileiro. Mas tudo isso se enquadra na moldura de um romance que tenta iluminar desvãos e reentrâncias não alcançadas pelo olhar da não ficção. Acredito mesmo nesse poder da literatura inventiva, a capacidade de dizer certas coisas que nenhuma outra linguagem alcança. Ao escrever Elza, recebi inúmeros apoios e encontrei algumas portas fechadas, o que é normal. Nenhum contato da família de Elza. O livro foi recebido em 2008 em clima de grande civilidade. Vejamos como este Brasil mais crispado e polarizado de hoje vai reagir a ele.

A história de Elza Fernandes (Elvira Cupello Calônio) ainda permanece desconhecida por muitas pessoas. Foi abolida pela esquerda e pela direita, até mesmo poucos historiadores falam sobre o fato. Acredita que há alguma outra razão além da motivação equivocada de sua morte? Acha que esta história acaba sendo sublimada por outra história, a de Olga Benário, envolvida no caso? 

A esquerda apagou a história de Elza de forma deliberada e consciente, para ocultar um crime que a deixava mal. A direita contribuiu para isso com sua incompetência, ao inventar tanta mentira sobre a Intentona que o assassinato daquela menina foi parar na mesma geleia geral de descrédito onde mora o personagem do comunista que come criancinha. O sucesso incomparavelmente maior da história de Olga Benário, que tem semelhanças perturbadoras com a da Elza, se deve à competência maior da esquerda na conquista de corações e mentes. Postas lado a lado, as duas tragédias ganham novos sentidos, como reflexos do grande conflito mundial do século 20: se em última análise Olga foi vítima de Hitler, Elza foi morta por Stalin. 

Nos últimos dez anos, o Brasil passou por uma grande alteração no debate sobre as questões feministas. Acredita que essa amplitude da visão trará à tona mais histórias como esta? O relançamento do livro poderia, de certo modo, ampliar o debate sobre histórias de personagens esquecidos ou “apagados” do legado brasileiro? 

Não sei se o livro terá esse poder, mas dar voz a quem nunca teve voz é o grande imperativo político e moral que vem mobilizando o Ocidente neste século. O ponto de vista feminista é interessante neste caso, porque não resta a menor dúvida de que Elza foi escolhida como bode expiatório de uma imensa trapalhada política por ser mulher. Não só por isso: também por ser analfabeta, muito jovem, de família pobre, ou seja, uma representante perfeita daquela fatia da população que a sociedade brasileira sempre tratou — e trata até hoje — como praticamente desprovida de direitos, inclusive à vida. 

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