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Hitler ao lado de Heinrich Himmler, chefe da Gestapo, durante desfile de soldados nazistas | ReutersReuters
Hitler ao lado de Heinrich Himmler, chefe da Gestapo, durante desfile de soldados nazistas| Foto: ReutersReuters

No ápice da Segunda Guerra Mundial, a Associated Press fez arranjos secretos com um oficial da SS para obter fotografias tiradas por nazistas que foram distribuídas a jornais americanos — um acordo autorizado por servidores americanos do alto escalão. 

O arranjo extraordinário, que começou em 1941 e terminou com a queda de Hitler, é detalhado em um longo relatório interno que a AP planeja divulgar no começo da manhã de quarta-feira (17). Ele vem vários meses depois que Norman Domeier, um historiador alemão, descobriu uma carta descrevendo o acordo nos documentos do então chefe do escritório da AP. 

O relatório inclui documentos recentemente desclassificados mediante pedido da administração da AP, inclusive cartas de aprovação de um departamento de censura coordenado por um ex-editor da AP que respondia ao presidente Franklin D. Roosevelt. Como parte do arranjo, a AP compartilhava fotografias das operações de guerra americanas e de avanços dos aliados, que eram revisadas por Hitler e publicadas em periódicos nazistas. 

“Com uma exceção, as imagens da AP que apareceram em publicações alemãs por meio de arranjo não foram alteradas pelos alemães”, afirma o relatório, “mas legendas foram reescritas pelos alemães para estarem de acordo com o discurso nazista oficial.” 

Agentes de contrainteligência americanos que não estavam cientes da aprovação do arranjo encontraram “provas definitivas” de que a Associated Press estava “engajada em operações que caem dentro do escopo da Lei de Comércio com o Inimigo”, de acordo com um documento a que o relatório da AP faz referência. O caso não foi levado adiante. 

Propaganda

Em uma entrevista esta semana, representantes da AP defenderam fortemente o arranjo, dizendo que era conduzido em países neutros, e que havia um tremendo valor noticioso em oferecer aos leitores de seus jornais fotos de Hitler e das atividades militares alemãs — mesmo que as fotos tivessem sido tiradas pelos nazistas, que eram especialistas em propaganda. 

John Daniszewski, vice-presidente da AP para parâmetros e editor em geral, disse que os jornalistas da organização “estavam fazendo o melhor para disponibilizar informações das quais o mundo precisava.” Ele defendeu as fotos — elas ainda estão disponíveis para compra no site da AP — notando que peças de propaganda descaradamente forjadas eram excluídas e que as legendas da AP deixavam clara a origem nazista das imagens. 

Mas uma revisão das fotos publicadas em jornais americanos mostra que esse não era sempre o caso. 

Álbum de Hitler

A edição de 30 de junho de 1942 do Washington Post trouxe uma foto de Hitler apertando as mãos de ex-oficiais alemães, inclusive um usando um uniforme de marinha nazista. O crédito da foto é “Associated Press WIREPHOTO [técnica de transmissão de imagens por telégrafo, rádio ou telefone]”. A foto também foi publicada pela revista nazista “Berlin Rom Tokio”, creditando Helmut Laux, o oficial da Waffen SS que fez o acordo com a AP. 

Em 1944, jornais americanos publicaram uma foto da mesma revista nazista, dessa vez uma de Hitler apertando a mão de Mussolini pouco antes de sofrer um atentado perpetrado por líderes alemães. A legenda do New York Herald Tribune descreveu o aperto de mão como “de acordo com a legenda alemã que acompanha essa foto.” O crédito da foto é “Associated Press radiophoto”. 

Há centenas, provavelmente milhares, mais. 

No Chicago Tribune: Hitler desenhando em um mapa. A legenda diz que chegou “via Lisboa”. O crédito da foto é “Associated Pres wirephoto”. 

No New York Times: Hitler em uma conferência. A legenda diz: “Essa foto, enviada de Lisboa, é descrita como...” O crédito é “Associated Press”. 

Retratos

Daniszewski, o vice-presidente da AP, disse que dado o período histórico – uma guerra, com censura de ambos os lados – leitores saberiam que nazistas tinham tirado as fotos, mesmo que essas origens não tivessem sido especificadas. 

Questionado por que as legendas distribuídas com as fotos não incluíam referências a fotógrafos nazistas ou da SS, Daniszewski disse:

“É fácil questionar as decisões oito décadas depois, mas não acreditamos que havia e não encontramos em nossa pesquisa nenhum indício de que havia qualquer intenção de enganar qualquer pessoa a respeito das origens alemãs dessas fotos que retratavam cenas do lado alemão da linha de frente e de dentro da própria Alemanha.” 

Mas Nicholas O’Shaughnessy, um professor de comunicação da Universidade Queen Mary, em Londres, e o autor de um livro sobre propaganda nazista, disse que era expressamente claro que os alemães tinham tido sucesso em achar uma “rota direta para a consciência aliada por meio de sua propaganda”. 

“Foi extremamente cínico por parte da AP usar essas fotos”, ele acrescentou.

“Tenta-se justificar essas coisas dizendo que câmera não mente. Mas as câmeras nazistas sempre mentiram. Elas eram um conto de fadas colossal. Nenhuma dessas imagens era real. É assim que Hitler queria seria visto.” 

A história do acordo da AP para trocar fotos com os nazistas começou a emergir apenas recentemente, depois da visita de Domeier no começo deste ano à Sociedade Histórica de Wisconsin, onde os documentos de Louis P. Lochner, o chefe do escritório da AP em Berlin e ganhador do Pulitzer, estão armazenados. Domeier encontrou uma carta de 1946 para ele escrita por um ex-empregado alemão chamado Willy Brandt (não confundir com ex-primeiro ministro da Alemanha). 

“Tenho uma confissão a fazer, chefe”, escreveu Brandt, “mas não fique chocado.” 

Brandt descreve os momentos caóticos depois que Hitler declarou guerra contra os Estados Unidos em dezembro de 1941. Lochner e outros repórteres americanos foram presos e encarcerados por cinco meses pelos alemães. Brandt também foi detido por autoridades alemãs, muitas das quais estavam disputando para tomar controle do escritório da AP e especialmente sua divisão de fotografia. 

“Nazista violento”

Laux, descrito por documentos do exército americano como um “nazista violento”, tomou controle do que se tornou conhecido como o escritório Laux. Fotos eram trocadas em Lisboa por meio de malotes diplomáticos com a ajuda de outro correspondente da AP. Uma rota pela Suécia emergiu mais tarde. 

Pelo menos 10 mil fotos foram trocadas. Domeier ficou perplexo. 

“Eles lidavam com os nazistas todos os dias”, disse. “Isso é algo que precisa ser explicado.” 

Representantes da AP já tinham entregado evidências do arranjo depois que Harriet Scharnberg, outra pesquisadora alemã, publicou um artigo ano passado sobre o fato de uma subsidiária da AP ter empregado, antes de 1941, um fotógrafo com laços conhecidos com a SS. 

Conforme Domeier apresentava suas conclusões em março ao Instituto Histórico Alemão, a AP se preparava para lançar sua própria investigação. 

As conclusões da investigação entregaram detalhes que espantaram Domeier ainda mais. 

“Cooperação patriótica”

O que Brandt aparentemente não sabia quando escreveu sua carta é que Lochner, a mesma pessoa para quem ele estava descrevendo o acordo, tinha sido um personagem central dele o tempo todo. 

A investigação da AP descobriu ainda que Laux estava de alguma forma em um trem no qual Lochner viajou quando foi deportado da Alemanha. 

“Ele tinha uma proposta para fazer”, o relatório da AP disse a respeito da Laux. Lochner foi receptivo à ideia, orientando-o sobre quem contatar dentro da Associated Press. 

Representantes da AP notificaram o escritório de censura dos Estados Unidos a respeito do acordo em 13 de julho de 1942. O escritório era comandado por Byron Price, um ex-editor executivo da AP, recrutado pessoalmente por Roosevelt, de acordo com um relatório da AP. O relatório não detalha a motivação americana para aprovar o acordo, apenas indica que podia haver “valor informacional” nessas relações clandestinas. 

Depois da guerra, Price mandou uma carta para o gerente geral Kent Cooper elogiando o serviço de telégrafo e expressando “profunda apreciação” por sua “cooperação patriótica”. 

Nos anos depois da guerra, Lochner escreveu diversos livros sobre a Alemanha, inclusive sobre sua experiência na cobertura jornalística de Hitler, do país e da guerra. Uma coleção de 525 páginas de suas cartas para sua família foi publicada em 1961. 

Cooper também escreveu uma memória de seu tempo com a Associated Press, rotulada “uma história da maior agência de notícias do mundo e da estimulante carreira do homem que a fez o que é.” 

Nenhum deles mencionou o acordo com os nazistas.

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