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Manifestantes contrários e favoráveis a Judith Butler, em São Paulo, na manhã desta terça-feira (07) | Renan Barbos/Gazeta do Povo
Manifestantes contrários e favoráveis a Judith Butler, em São Paulo, na manhã desta terça-feira (07)| Foto: Renan Barbos/Gazeta do Povo

Um espectro ronda o Brasil — ele veste preto e caminha levemente arqueado. Quando a filósofa americana Judith Butler entrou do Sesc Pompeia, em São Paulo, nesta terça-feira (7), um grupo de cerca de 50 manifestantes contrários à sua presença no Brasil já gritava palavras de ordens do lado de fora fazia quase duas horas. Eles representavam fisicamente os 360 mil que assinaram a petição online pedindo o cancelamento de sua participação no seminário Os Fins da Democracia.  “Obrigado por não cancelarem minha participação”, foi tudo que Butler disse sobre o episódio, durante a abertura do evento. 

Aqueles que se manifestavam contra Butler, muitos deles envoltos na bandeira do Brasil, carregavam cartazes alertando sobre os perigos da ideologia de gênero e dividiam a rua com outro grupo, mais numeroso, que manifestava apoio à presença de Butler. Era onde se viam bandeiras do arco-íris. 

“Fora, Butler!”, gritavam em coro. “Dentro, Butler!”, respondia o outro lado do cordão de isolamento montado pela Polícia Militar. “Fascismo!”, ouvia-se. “A ideologia de gênero é o verdadeiro fascismo”, respondiam. Por volta do meio dia, quase quatro horas depois do início dos protestos, depois que Butler já tinha falado no auditório do SESC, os manifestantes atearam fogo a seu boneco e resolveram ir embora. “Arregaram! Arregaram!”, gritava os militantes de esquerda, reunidos pelo movimento Ocupe a Democracia

Gazeta do Povo perguntou a Celene de Carvalho – que chegou à porta do Sesc com o carro cheio de cartazes, um aparelho de som para amplificar a voz dos manifestantes e o boneco de Judith Butler – sobre o número de participantes do protesto. “Falta de conhecimento, falta de responsabilidade, falta de cidadania e, pior, falta de amor pelos próprios filhos para ir investigar o que está sendo feito nas escolas. Está mais do que provado de que existe ideologia de gênero nas escolas”, afirmou.

“Menina nasce menina” diz o cartaz em protesto contra a presença de Judith Butler

“Os 220 milhões de brasileiros deveriam estar preocupados e não estão”, disse. A manifestação foi chamada pela página Direita São Paulo, que tem cerca de 200 mil seguidores no Facebook. 

Celene afirma que a ideologia de gênero é uma tática “maligna”, planejada e financiada pela ONU, pelo Instituto Andrew W. Mellow, que financia o simpósio coordenado por Butler, e pela Fundação George Soros

“O Brasil é 85% cristão. Nós somos conservadores e a ideologia dessa mulher [Judith Butler] não pode entrar no Brasil. A ideologia de gênero é aborto, zoofilia e pedofilia”, resumiu. “Ela não é bem vinda ao Brasil, porque 85% da população brasileira disse ‘não’ à ideologia de gênero nas câmaras de vereadores e mesmo assim eles estão enfiando goela abaixa”, afirmou. 

Dentro do Sesc, o filósofo Vladimir Safatle, professor da USP, pedia desculpas por fazer uma fala militante em um evento acadêmico. “Da maneira como nosso colóquio foi recebido, seria o que eu poderia acrescentar de mais significativo nesta abertura”, disse. “Uma das mais violentas estratégias [de silêncio] foi usada agora, quando grupos organizados, com apoio de estruturas internacionais (...), se voltaram contra uma atividade de debate como a nossa”, afirmou. 

Gazeta do Povo perguntou a Safatle se, do ponto de vista democrático, não seria positivo os grupos estarem se manifestando sem violência. “Sim, mas o fato é que esse grupo não veio só protestar, eles pediram o cancelamento, e isso é completamente inaceitável”, disse. Mais de um membro do alto escalão do SESC confirmou as pressões, citadas por Safatle, de associados e diretores regionais contra a presença de Butler na entidade. “De uma certa maneira, eles têm razão: a gente representa tudo contra o qual eles lutam, tudo que eles detestam, nossa forma de vida para eles é uma afronta”, disse o professor da USP à reportagem. 

“Dentro, Butler!”, gritavam os manifestantes favoráveis à sua presença

Do lado de fora, mesmo sem saber, um manifestante respondia a Safatle: “Nós apostamos no livre arbítrio. Cada um, atingindo a idade adulta, pode escolher [seu gênero]. O que nós não vamos aceitar é mexer com nossas crianças”, declarava. “Nós temos mais de 60 mil mortes violentas por ano no Brasil, mais do que qualquer guerra. Nesse montante, estão mulheres, gays, homens brancos e negros, jovens e velhos. Essa deveria ser a nossa preocupação”. 

“E crime de ódio? E crime de ódio?”, alguém perguntou. “Nós temos de proteger todos da mesma maneira”, afirmou o manifestante. 

Embora Butler não tenha se referido diretamente à manifestação, sua fala de abertura no evento dialogou com o lado de fora. “Que tempo é este? Como entender a ressurgência do fascismo, do suprematismo branco, do antifeminismo?”, questionou. “Pensávamos que eles estavam derrotados. Na verdade, alguns alertam que eles nunca foram derrotados”, disse. 

O tom de urgência manifestado por Butler para repensar a “teoria crítica”, campo de estudos interdisciplinar que reúne pesquisadores de várias áreas, muitos dos quais presentes no simpósio, apareceu também nas reflexões de Safatle, para quem é hora de pensar o “populismo de direita”. A esquerda está atenta às vozes que surgiram no debate público e procura reagir a elas à sua maneira. 

“Contra esse país há um outro, um Brasil que sempre lutou para emergir. Para quem não sabe onde está esse país, que se lembrem dos gritos de revolta de Zumbi, da tenacidade de Pagu, do espírito inquebrantável de Luis Carlos Prestes, dos cabanos, dos que lutaram, de todas as formas, contra a ditadura militar, dos camponeses mortos em lutas por terra, dos estudantes que ocupam escolas contra seu fechamento”, disse Safatle.

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