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Policiais fazem ronda perto de estação de trens em Paris: atentados terroristas deixaram o país em alerta | Geoffroy Van Der Hasselt/AFP
Policiais fazem ronda perto de estação de trens em Paris: atentados terroristas deixaram o país em alerta| Foto: Geoffroy Van Der Hasselt/AFP

Para alguns, a eleição presidencial francesa vai alterar o curso de uma nação problemática que enfrenta uma turbulência social e econômica. Para outros, vai alterar o curso de um continente problemático, desafiando a existência de uma unidade europeia.

Mas para a França, o que está em jogo é algo menos abstrato e bem mais íntimo. Em um país que continua sob estado de emergência depois de ter sido atingido por uma enxurrada de violência terrorista nos últimos dois anos, as eleições se tornaram um referendo sobre muçulmanos e o lugar deles no país que é possivelmente a sociedade multicultural mais ansiosa da Europa.

Antes do primeiro turno nesse domingo, cada um dos cinco primeiros candidatos - distribuídos pelo espectro ideológico - se sentiu pressionado a abordar a “questão muçulmana”, ou seja, sobre o que fazer com a maior minoria religiosa do país.

Marine Le Pen, líder da Frente Nacional, um partido de extrema direita, deixou sua posição muito clara. Em fevereiro, no mesmo discurso em que declarou que seria candidata a presidência, ela condenou a “globalização islâmica”, movimento que definiu como uma “ideologia que quer quebrar a França”.

Ainda que a variedade de oponentes de Le Pen não compartilhem do seu extremismo ou de suas convicções, todos parecem concordar que algo deve ser feito quanto aos muçulmanos. “Eu quero um controle administrativo estrito da fé islâmica”, anunciou durante sua campanha em janeiro o candidato conservador François Fillon, recém acusado de corrupção.

A opinião de Emmanuel Macron, candidato centrista independente bastante popular, diverge das outras. Ele busca uma solução mais diplomática para a questão e fala da necessidade urgente de “ajudar muçulmanos a reestruturar o Islã da França”.

O candidato de extrema esquerda Jean-Luc Mélenchon, que condena a Islamofobia, defende o fim de “todos os comunitarismos” e reiterou o que ele define como uma necessidade urgente de “acabar com a apropriação indevida de fundos públicos por sistemas privados de ensino confessional”.

Somente Benoît Hamon, o candidato socialista, defendeu regularmente os interesses da comunidade dos muçulmanos franceses, insistindo - no ano do escândalo do “burkini” - que a lei francesa deve proteger “tanto a menina de shorts como a menina com o lenço”.

Desconfiança

Mas com tantos atentados terroristas realizados por pessoas com passaportes franceses ou europeus que eram afiliados ou inspirados pelo estado islâmico, a opinião pública ficou cada vez mais desconfiada da população muçulmana que está presente no país há séculos.

Independentemente da diversidade inerente à população francesa, existe uma ansiedade amplamente espalhada que se Le Pen ou Fillon forem eleitos, as coisas podem ficar significativamente piores. Os dois candidatos provavelmente seriam rápidos para avançar com a repressão dos véus, mesquitas e organizações muçulmanas comunitárias em nome do secularismo.

Mas as alternativas também deixam um gosto amargo de conformação: poucos muçulmanos franceses enxergam algum candidato que mudaria um status quo visto por eles como insustentável.

“Nenhuma campanha é feita para a gente — ninguém compreende nossa situação”, diz Laorla Loub, de 45 anos, quinta geração de cidadãos franceses e professora de literatura árabe em Clichy, no subúrbio de Paris. Ela aguardava para entrar no encontro anual de muçulmanos franceses, um evento comunitário de larga escala realizado em galpões ao lado da pista do aeroporto de Paris-Le Bourget.

Abstenção

O resultado é o aumento da abstenção de eleitores entre os muçulmanos franceses, afirma Hakim El Karoui, autor que publicou em 2016 uma pesquisa sobre o islamismo na França pelo Instituto Montaigne.

A razão principal, segundo o pesquisador, é a postura antiterrorista adotada pela administração socialista do presidente François Hollande e especialmente seu primeiro ministro, Manuel Valls, que perseguiu os “burkinis” no último verão. As atitudes tomadas pelo governo anterior diminuem a vontade dos muçulmanos franceses a apoiarem a esquerda nas eleições de 2017.

“A direita sempre foi contrária a muçulmanos e imigrantes”, afirma El Karoui. “Mas Valls desistiu de ter uma posição neutra entre eles. Ficou tóxico”.

Estado de Emergência

A maior preocupação dos muçulmanos é o chamado estado de emergência, um regime de segurança imposto por Hollande no dia seguinte aos ataques de novembro de 2015 com um objetivo de acabar com o terrorismo. O período deve terminar com esse verão, mas ele já existiu por mais de 16 meses. Apenas um dos candidatos - Mélenchon - propôs o fim dele.

Desde de sua imposição, autoridades franceses foram autorizadas a conduzir até quatro mil buscas sem mandato em casas francesas e chegaram a condenar mais de 700 pessoas à prisão domiciliar.

Mas muitos muçulmanos alegam ilegalidades nesse processo. De acordo com o Coletivo Contra Islamofobia da França (CCIF, sigla em francês), uma organização de defesa dos direitos empenhada a lutar contra a discriminação, mais de 400 muçulmanos relataram que suas casas foram revistadas sem justificativa durante o ano de 2016. Desses, cerca de 100 também foram condenados à prisão domiciliar e quase 30 foram convidados a sair do país. Para alguns, as consequências foram terríveis.

Ilegalidades

Um exemplo aconteceu com Drissia (que não quis revelar seu sobrenome com medo de represálias) no dia 3 de dezembro de 2015. Muçulmana residente dos Alpes franceses, foi acordada às 4h30 da manhã enquanto 10 policiais franceses batiam na sua porta, sendo que três deles usavam máscaras. Ela afirma que eles revistaram o apartamento até às 6h, afirmando para ela e sua filha de sete anos que estava tudo bem. “Mas foi só o começo do pesadelo”, conta Drissia relembrando que seis dias depois ela foi demitida do seu trabalho de 15 anos como reguladora de tráfego. Ela depois descobriu por meio de seu advogado que o motivo veio do prefeito regional que, de acordo com Drissia, disse ter “uma informação confidencial que prova que alguns dos meus parentes próximos eram uma ameaça à segurança da equipe de trânsito de Mont Blanc”.

“Eu não tinha ideia de quem esses parentes próximos eram”, conta. Ela acabou ganhando em última instância nos tribunais, mas a justificativa legal fez pouco para virar a dura sentença que recebeu na corte da opinião pública.

“Ouvi coisas horríveis sobre mim na mídia”, afirma. “Um dos títulos era ‘A ATBM demite funcionária radical’”, que referencia até a empresa para qual trabalhava.

Desconhecimento

Mesmo se tornando uma parte central das campanhas presidenciais, os muçulmanos franceses raramente são incluídos nos debates entre os candidatos não-muçulmanos sobre como eles deveriam interpretar a fé e viver suas vidas. Eles são tópicos centrais do discurso público, mas estão ausentes da vista e são, por vezes, completamente desconhecidos.

Quando os candidatos à presidência lançam ideias como “programas de treinamento em faculdades sobre os valores da república” para imãs (líderes religiosos do islamismo) — como fez Emmanuel Macron recentemente — muitos levantam a hipótese de que esses são valores sobre os quais eles ainda não sabem.

Muçulmano e gay

Ludovic-Mohamed Zahed, de 40 anos, é um imã gay e fundador da primeira mesquita LGBT da Europa, que ele comanda semanalmente em uma sala alugada em Marselha, cidade da costa mediterrânea francesa.

“Se você pensa que não é possível ser essas duas coisas, então problema seu”, diz ele sobre a aparente separação entre as identidades “francesa” e “muçulmana”. “Mas eu nunca senti a necessidade de te convencer do contrário”.

Fé e República

O mesmo é válido quando se cruza o espectro ideológico. “Quando Marine Le Pen diz que os imãs devem pregar em francês, ela está certa — e isso é normal. Estamos na França”, opina Farid Aït-Ouarab, líder sênior dos Escoteiros Muçulmanos da França, uma organização que ensina jovens muçulmanos a reconciliar sua fé com os valores da república francesa.

“O islã é sobre fazer as coisas juntas — em um ciclo, com consenso”, afirma Aït-Ouarab. “Nós vemos isso na Assembléia Nacional, no Senado, onde deputados se juntam para decidir nossas leis, juntos. Para um muçulmano de fato, não há uma diferença entre ‘França’ e ‘Islã’.”

“As pessoas falam dos muçulmanos como se fossemos todos a mesma pessoa, ou uma pessoa só”, conta Asma Bougnaoui, de 31 anos, que foi demitida em 2009 por vestir um lenço na cabeça no seu trabalho como engenheira de design na Micropole, uma empresa de consultoria de TI. “Não há nenhum reconhecimento da diversidade”.

“Quem são os muçulmanos franceses?”, ela questionou recentemente, enquanto sentava em um café em Gare de Lyon, uma das estações ferroviárias de Paris. “O que somos?”

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