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 | Hugo Harada /Arquivo Gazeta do Povo
| Foto: Hugo Harada /Arquivo Gazeta do Povo

A primeira vez que ouvi a expressão “cirurgia de troca de sexo” foi nos anos 1970, quando fiquei sabendo que o respeitado autor James Morris tinha passado por essa operação e seria conhecido daquele momento em diante como Jan Morris. Mais tarde, Morris escreveu uma autobiografia, que começa com a sentença: “Eu devia ter 3 ou talvez 4 anos quando me dei conta de que tinha nascido no corpo errado e deveria na realidade ser menina”. Ele tinha mais de 40 anos quando se submeteu à cirurgia para converter-se na mulher que já tinha certeza ser.

Mas será que Jan Morris (que hoje tem mais de 90 anos) foi mulher, realmente, em algum momento da vida? E foi sequer possível que James Morris tivesse “nascido no corpo errado”? Hoje, quando o número de pessoas como Jan Morris se multiplica e um movimento ideológico transgênero começa a impor mudanças nas leis e políticas públicas, mais e mais pessoas dizem “sim, é claro” em resposta a essas duas perguntas. Na realidade, a resposta às duas perguntas foi, é e sempre será “não”. Mas, por mais que seja dito com gentileza e compaixão, esse “não” não é apenas rejeitado hoje em dia, como pode ser uma coisa perigosa de se dizer.

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Ryan T. Anderson sabe bem como pode ser perigoso. Ocupante da cadeira William E. Simon de Pesquisador Sênior na Fundação Heritage e editor do “Public Discourse”, Anderson, escrevendo com ou sem coautores, há anos ocupa a vanguarda da discussão intensa sobre o casamento homossexual. Ele também tem sido um participante relevante no debate sobre a identidade de gênero e a ideologia transgênero, tendo publicado muitos ensaios sobre o tópico nos últimos anos. E, como a questão do casamento homossexual, a discussão sobre transgêneros suscita opiniões acaloradas sobre moralidade e justiça, sobre dignidade e identidade, sobre o sentido das leis e o significado da própria realidade.

Também como a discussão sobre o casamento homossexual – e, de certo modo, em função dela –, o debate sobre transgêneros avança rapidamente no rumo de mudanças importantes nas leis e políticas públicas, algumas delas suscitadas por interpretações jurídicas dúbias da Constituição e dos estatutos federais existentes, algumas delas por meio da captura ideológica de setores do funcionalismo de instituições governamentais e educacionais. Houve época em que um caso como o de James/Jan Morris era suficientemente raro para que a maioria das pessoas não lhe desse maior importância. Mas dar de ombros não é o bastante hoje, no “momento transgênero” que estamos vivendo. As consequências da aceitação ampla da ideologia transgênero são grandes demais. As leis, as políticas públicas e a prática da medicina estão mudando muito rapidamente, e a saúde e felicidade de crianças pequenas muitas vezes são o foco de nossa preocupação.

O momento atual pede um olhar profundo sobre nosso momento transgênero, em todas suas dimensões. O que se faz necessário é um livro que descreva com imparcialidade o que a ciência nos diz, que faça questão de dar o tratamento correto às leis, políticas públicas e normas culturais, com bom senso e decência prevalecendo de todos os lados, e que trate com compaixão as pessoas que sofrem de disforia de gênero (e frequentemente sofrem devido ao mau tratamento recebido de outros). A obra mais recente de Anderson, When Harry Became Sally, é esse livro.

Anderson se debruça sobre os argumentos dos ativistas transgênero. Permite que eles falem por si sós na maior parte do tempo, fazendo interjeições ocasionais apenas para levantar perguntas ou chamar a atenção para contradições e incoerências. E há incoerências em abundância.

Ciência imparcial

Após algumas vinhetas iniciais de acontecimentos recentes, mostrando as dimensões cada vez mais ideológicas e políticas da questão transgênero, Anderson se debruça sobre os argumentos dos ativistas transgênero. Permite que eles falem por si sós na maior parte do tempo, fazendo interjeições ocasionais apenas para levantar perguntas ou chamar a atenção para contradições e incoerências. E há incoerências em abundância. Eles parecem ter a certeza de que “o verdadeiro eu é algo distinto do corpo físico”. Mas o que esse “eu verdadeiro” pode saber de como é “se sentir” do sexo oposto? Ninguém que não seja uma mulher pode saber como é sentir-se mulher, e a mesma coisa se aplica ao sexo oposto. “Para os ativistas, o desafio é propor uma definição plausível de gênero e identidade de gênero que independa do sexo corporal”, observa Anderson, com razão. Eles não conseguem fazê-lo. Assim, alternam-se entre afirmações impossíveis de ser fundamentadas e que são incompatíveis entre elas:

Por um lado, os ativistas transgênero desejam a autoridade dada pela ciência quando fazem alegações metafísicas, dizendo que a ciência revela que a identidade de gênero é inata e imutável. Por outro lado, negam que a biologia seja um destino, insistindo que as pessoas devem ser livres para ser quem quiserem.

Não obstante suas contradições, as afirmações do movimento vêm ganhando muito terreno. No final de outubro de 2017, em um processo judicial envolvendo membros transgênero das forças armadas, a juíza Colleen Kollar-Kotelly, do tribunal distrital federal de Washington, opinou: “Os indivíduos transgênero possuem características imutáveis e singulares que os convertem em uma classe discernível”, de modo que podem se enquadrar no princípio constitucional de proteção igual. Quando políticas das forças armadas são reescritas com base em uma falsidade desse tipo é porque ocorreu uma contaminação grave das leis pela ideologia.

Uma das muitas qualidades do livro de Anderson é a habilidade com que ele nos mostra não apenas a incoerência dos ativistas do movimento transgênero, mas também os argumentos científicos sólidos relativos ao que sabemos sobre diferenciação sexual, sobre a condição conhecida como disforia de gênero em adultos e crianças, e sobre os efeitos das diversas intervenções médicas empregadas no chamado “processo de transição”. Anderson é especialmente hábil quando descreve o escândalo da redefinição de disforia de gênero feita pela American Psychiatric Association (APA) – na edição mais recente de seu Manual Diagnóstico e Estatístico –, que, de um transtorno inerente à incongruência entre sexo biológico e identidade de gênero sentida, passou a ser definido como um transtorno que só é considerado manifesto quando a incongruência é acompanhada por “sofrimento ou incapacitação significativa” nas atividades de vida do paciente. Nenhuma evidência nova levou a essa revisão – ela foi fruto puramente de uma mudança nas posições políticas dos membros da APA.

A consequência dessa mudança vem sendo um aumento enorme nos “tratamentos” que serão vistos com horror por uma geração futura. Apesar da escassez de ensaios clínicos, os médicos vêm realizando “redesignações sexuais” que envolvem condicionamento social e comportamental, tratamentos hormonais e a alteração cirúrgica de características sexuais secundárias. Todas essas interferências extraordinárias vêm sendo cometidas sobre o corpo em nome de uma disforia que tem sua sede inteiramente na mente. E os resultados positivos que podem apresentar comprovadamente têm sido poucos: “o maior e mais rigoroso estudo acadêmico sobre os resultados da transição hormonal e cirúrgica constatou fortes evidências de resultados psicológicos negativos”.

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O aumento recente nas intervenções médicas em crianças muito pequenas é motivo de preocupação intensa. As melhores evidências disponíveis mostram que, nas palavras dos médicos Paul McHugh, Paul Hruz e Lawrence Mayer, citadas por Anderson, “entre 80% e 95% das crianças que se dizem transgênero acabam aceitando seu sexo naturalmente” e crescendo normalmente como homens e mulheres jovens. No entanto, estão sendo abertas clínicas em todo o país com médicos dispostos a sustar a puberdade de crianças, receitá-las hormônios característicos do sexo oposto e encaminhá-las para a cirurgia assim que isso for legalmente permissível. Os médicos que rejeitam essa abordagem clínica automática a pacientes menores de idade, como é o caso do Dr. Kenneth Zucker, de Toronto (que não se opõe à transição no caso de pacientes adultos), estão sendo perseguidos a ponto de terem que desistir de praticar sua especialidade médica. Alguns deles estão resistindo, como é o caso do American College of Pediatricians, associação profissional formada por médicos que discordam da loucura que está se generalizando rapidamente. Mas é um esforço que vai na contramão da maioria. Anderson diz corretamente:

As crianças precisam de nossa proteção e orientação enquanto buscam seu caminho em meio aos desafios de alcançar a idade adulta. Precisamos de profissionais médicos dispostos a ajudá-las a amadurecer em harmonia com seu corpo, em vez de empreender tratamentos experimentais para refazer seu corpo.

Paixão pela justiça e a decência

Como sabe todo americano que acompanha as notícias, a ideologia transgênero ganhou a adesão dos criadores de políticas públicas da administração Obama. Os Departamentos de Saúde e Serviços Humanos, Defesa, Habitação e Desenvolvimento Urbano, Educação e Justiça, todos, no segundo mandato do presidente Obama, trabalharam para redefinir a “discriminação sexual” de modo a incluir a “discriminação por identidade de gênero”, apesar de que nem o texto nem a história de nenhuma lei federal justificam tal reinterpretação. No caso que mencionei acima envolvendo transgêneros nas forças armadas, uma juíza federal já tomou medidas para conferir status constitucional protegido à “identidade de gênero”.

Mais quais podem ser (e, em alguns lugares, já foram) as consequências dessas manobras legais? Primeiro, como observa Anderson: “As políticas de identidade de gênero não apenas pretendem permitir que cidadãos que se identificam como transgêneros vivam como quiserem – elas também visam coagir o resto de nós a concordar com uma ideologia radical.” Em algumas escolas que aderiram plenamente a esse projeto ideológico, os pais são mantidos intencionalmente sem informações sobre o que está acontecendo, mesmo sobre o que está acontecendo com seus próprios filhos.

Além disso, os ideólogos impuseram ao povo americano uma discussão que ele nunca imaginou que teria sobre quem usa qual banheiro público. Preocupações sérias de privacidade, especialmente envolvendo meninas e mulheres jovens, são ignoradas pelos ativistas do movimento transgênero e os burocratas e políticos aliados a eles. Mesmo a segurança básica contra voyeurismo e agressão sexual está em risco com as políticas públicas defendidas pelos ativistas. O tratamento justo às mulheres é sacrificado com ideias sem pé nem cabeça como a de permitir que rapazes que estão “fazendo a transição” para uma identidade feminina compitam contra mulheres em eventos esportivos.

Anderson exorta o Congresso a posicionar-se com firmeza contra o avanço da ideologia transgênero em nosso sistema legal. Nossos legisladores nacionais e estaduais têm o poder de devolver o bom senso às políticas públicas. E agora é o momento propício para eles agirem.

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Compaixão pelos que sofrem

O capítulo mais comovente de When Harry Became Sally é dedicado às histórias pessoais de indivíduos que “destransicionaram”, ou seja, voltaram a identificar-se com seu sexo biológico, depois de terem previamente se identificado com o sexo oposto. A resposta do movimento transgênero a esses casos é ou fazer de conta que não existem ou insistir que esses homens e mulheres nunca foram transgêneros de verdade, para começar. É claro que, como os médicos acreditaram neles quando disseram que eram e então agiram com base nisso, esses pacientes “não realmente transgêneros” teriam ótimos argumentos para acusar seus médicos de erro médico. E, como sentimentos declarados de ter “nascido no corpo errado” constituem a única base de um diagnóstico que pode levar a desde uma troca de guarda-roupa até a excisão cirúrgica de órgãos sexuais saudáveis, nenhum médico poderá ter certeza de que seu paciente não vá querer “destransicionar” algum dia. E então, o que o médico pode fazer para corrigir a situação?

São relatos verdadeiramente terríveis de sofrimento intenso. São as histórias pessoais de homens e mulheres, meninos e meninas, que procuraram profissionais médicos sentindo confusão e sofrimento intenso e, em lugar da ajuda que buscavam, foram prejudicados. Agora, quando contam a verdade sobre o que lhes aconteceu, eles atraem a rejeição e as invectivas dos ideólogos do movimento transgênero. Alguns, compreensivelmente, preferem contar suas histórias de modo anônimo. Todos devem ser aplaudidos por sua coragem e franqueza e agradecidos pela contribuição que fazem ao entendimento público.

Em sua conclusão, Anderson escreve que foram esses relatos, mais que qualquer outra coisa, que o levaram a escrever When Harry Became Sally. “Não consegui tirar da cabeça os relatos das pessoas que ‘destransicionaram’. São de partir o coração. Fiz o que eu precisava fazer para ajudar a impedir que mais pessoas passem pelo mesmo sofrimento.”

Não sei como esse trabalho poderia ter sido feito melhor, nem por quem. Ryan Anderson escreveu o livro definitivo sobre o fenômeno transgênero, abarcando medicina, psicologia, cultura, sociologia, direito e políticas públicas. Com isso, ele pode ter salvado mentes e corpos – de fato, a própria vida – de pessoas que nunca vai conhecer. Este “momento transgênero”, esta calamidade de erros de diagnóstico, tratamento errado e injustiça, precisa acabar o quanto antes. Se alguma vez houve um livro capaz de sustar uma catástrofe, o livro é este. Que ele seja lido por muitos.

*Matthew J. Franck é diretor do Centro William E. e Carol G. Simon Center de Religião e Constituição, do Instituto Witherspoon.

©2018. The Public Discourse. Publicado com permissão. Original em inglês.

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