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Centenas de pessoas, muitas delas haitianas, manifestaram-se contra o racismo na Times Square no dia de Martin Luther King (MLK), em 15 de janeiro de 2018, na cidade de Nova York. | SPENCER PLATT/
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Centenas de pessoas, muitas delas haitianas, manifestaram-se contra o racismo na Times Square no dia de Martin Luther King (MLK), em 15 de janeiro de 2018, na cidade de Nova York.| Foto: SPENCER PLATT/ AFP

O presidente não teve nenhum respeito pelo Haiti. Ele pôde ver nos noticiários tão bem quanto qualquer outra pessoa que o país era um caso perdido – torturado por turbulência política, incapaz de lidar com os seus próprios problemas.

Não havia dúvidas de que a sua opinião sobre a república negra foi formada pelo seu racismo descarado, que chegou a incluir elogios a membros da Ku Klux Klan. Ele havia criticado as guerras estrangeiras dos seus predecessores durante a campanha presidencial. Mas, na Casa Branca, ele percebeu que estava disposto a exercitar os músculos do país no exterior, desde que a missão servisse o seu lema: “América em primeiro lugar”.

Atingir o Haiti era uma prioridade dos EUA, ele decidiu. Os Estados Unidos iriam invadir. 

O presidente era Woodrow Wilson. O ano era 1915. E se esse foi o começo de uma história que se você nunca havia escutado, você não é o único. 

Desde que surgiram as notícias de que o herdeiro involuntário de Wilson, o presidente Donald Trump, chamou o Haiti – juntamente com El Salvador e aparentemente todos os 54 países da África – de “buracos de merda”, os defensores do presidente deixaram claro que eles não apenas desconhecem a história do Haiti, mas também desconhecem a sua própria história. Assim que escutaram os comentários de Trump, os seus aliados partiram para a sua defesa, alegando que, apesar de Trump ter sido grosseiro, ele estava certo. 

A colaboradora da Fox News, Tomi Lahren, tweetou: “Se eles não são buracos de merda, por que os seus cidadãos não permanecem lá?”. 

“Trump deveria ‘condenar veementemente’ o governo haitiano por liderar um país buraco de merda”, escreveu Will Chamberlain, um dos organizadores do baile “DeploraBall”, baile inaugural não oficial em celebração ao mandato de Trump, realizado no passado. 

Algumas pessoas da direita aplaudiram especificamente um segmento da CNN em que o editor do National Review, Rich Lowry, perguntou à comentadora política Joan Walsh se ela “preferiria morar na Noruega ou no Haiti”. Foi uma referência ao suposto desejo de Trump de que os Estados Unidos trouxessem mais imigrantes nórdicos do que africanos ou latino-americanos. Walsh se recusou a responder, destacando que ela nunca visitou nenhum dos dois países. Tucker Carlson acusou-a de desonestidade. “Aqueles lugares são perigosos, sujos, corruptos e pobres”, disse o âncora da Fox News, com uma indignação que Wilson teria admirado. “Por que você não consegue admitir isso?” 

Os apoiadores de Trump na TV a cabo aparecem acreditar que eles – e ele – são reveladores corajosos de verdades sinceras que os outros são muito tímidos ou politicamente corretos para falarem em voz alta. (Ignorando que Trump é um mentiroso notório, talvez patológico – ou que, horas depois, ele tentou recuar fracamente no comentário sobre “buracos de merda” após o seu programa de TV favorito ter falado para ele fazer isso.) 

Mas, na verdade, eles não conhecem muitas verdades. Atacar a pobreza em países como o Haiti e argumentar que isso é algo que acontece naturalmente, na realidade objetiva ignora por que a pobreza existe e qual o papel dos Estados Unidos na sua criação. E ignorar isso significa não apenas tomar decisões ruins e odiosas hoje, mas também arriscar repetir os erros do passado. 

País construído com sangue

O Haiti foi fundado em 1 de janeiro de 1804 por pessoas de descendência africana que estavam cansadas se serem escravizadas. Elas lutaram e venceram uma revolução contra a França, culminando na derrotada de uma força expedicionária do exército de Napoleão Bonaparte, então o mais poderoso do mundo. 

A França lutou tanto para manter a colônia porque era basicamente a Arábia Saudita do café e do açúcar naquela época, fornecendo a maior parte das duas commodities consumidas na Europa. O dinheiro que isso gerava abastecia todo o império francês. Mas havia sido construído com sangue. O regime escravagista necessário para produzir esses produtos foi tão mortal que um em cada dez africanos sequestrados e levados para a ilha morriam a cada ano.

Como o historiador Laurent Dubois apontou, os franceses decidiram que era mais barato importar novos escravos do que manter vivos os que eles já tinham

Assim que o Haiti se tornou livre, os impérios mais poderosos do mundo fizeram tudo o que puderam para destruí-lo. A França se recusou a reconhecer que o novo país existia. Nos Estados Unidos – até então o único outro país independente nas Américas – o presidente Thomas Jefferson, um senhor de escravos, não tinha nenhum interesse em ver uma nação negra livre ter sucesso perto deles.

As potências escravagistas se recusaram a estabelecer um comércio oficial com o Haiti, obrigando o país a se voltar a relações predatórias. A independência do Haiti permaneceu uma fábula que os senhores de escravos nos EUA usavam para rebater os abolicionistas até a Guerra Civil. 

Ameaça francesa

A França finalmente ofereceu o reconhecimento diplomático necessário em 1825, sob ameaça. O rei Carlos X exigiu que o governo haitiano pagasse uma restituição de 150 milhões de francos em ouro – bilhões de dólares, nos valores atuais – para os donos de terras franceses que ainda estavam nervosos com a perda das suas terras e dos corpos dos haitianos que eles haviam perdido na guerra. Se eles não pagassem, ele invadiria o país. 

Os líderes do Haiti concordaram. Eles passaram as décadas seguintes esvaziando seus cofres e redirecionando receitas aduaneiras para pagar a França pela independência que eles já haviam ganhado, destruindo a economia do país. Até a década de 1880, o Haiti havia pagado o que a França queria. Mas agora o país devia grandes quantias para bancos estrangeiros, dos quais havia emprestado muito dinheiro para cobrir as contas. No começo do século 20, grande parte da dívida pertencia aos Estados Unidos. Os americanos também haviam estabelecido grandes interesses comerciais no Haiti, explorando açúcar e outras commodities. 

Os Estados Unidos, enquanto isso, estavam buscando expansão. A partir de 1898, começamos a usar o nosso exército para conquistar novos territórios e mercados no exterior. Em 1914, havíamos anexado as Filipinas, Havaí, Guam e outras ilhas no Pacífico. No Caribe, tínhamos Porto Rico e uma base permanente em Cuba na Baía de Guantánamo. As forças navais também ajudaram a criar um novo país na América Central, o Panamá, em troca do direito de criar um canal oferecendo uma rota comercial para a Ásia – e os Estados Unidos invadiram a Nicarágua, Honduras e México, entre outros. 

O Haiti foi o próximo. A política do Haiti, atingida pela turbulência econômica causada pela dívida, estava em uma espiral. Os presidentes eram assassinados e os governos eram derrubados repetidamente. Os bancos exigiam pagamento; empresários dos EUA queriam mais segurança e controle. Os jornais começaram a lançar as bases da opinião pública nos EUA – uma matéria no New York Times em 1912 declarou que os “haitianos reconhecem o fracasso de uma ‘República Negra’ e desejam se juntar à União”. 

Invasão americana

No final de 1914, a força naval americana aportou em Porto Príncipe, marchou até a reserva nacional e pegou todo o ouro. Foi levado para o National City Bank em Nova York – conhecido hoje como Citibank. Meses depois, declarando a sua preocupação de que as potências europeias, principalmente a Alemanha, pudessem ganhar espaço no Caribe (mesmo que eles estivessem muito ocupados com a Primeira Guerra Mundial), Wilson ordenou uma invasão, e então uma ocupação. 

A bandeira dos EUA foi levantada nos prédios do governo do Haiti. O governo haitiano e as forças armadas foram dissolvidas. Pelos 19 anos seguintes, os EUA comandaram o Haiti. As forças navais americanas combateram uma campanha contrainsurgente sangrenta para acabar com a resistência. O governo haitiano, a constituição e o exército foram desmembrados e substituídos por outros mais favoráveis aos EUA.

Com a intenção de embarcar em um grande programa de obras públicas, a marinha estabeleceu um sistema, derivado do direito haitiano, chamado corvée, nos quais os camponeses eram basicamente reescravizados. Muitos dos líderes da ocupação eram supremacistas brancos explícitos que utilizaram as lições que eles aprenderam ao instituírem as leis de Jim Crow em casa para criar novas formas americanas de discriminação no Haiti. Um dos maiores agitadores era o coronel Littleton W. T. Waller, um filho da Vírgnia pré-guerra que garantiu ao seu amigo, o coronel John A. Lejeune, futuro comandante da marinha: “Eu conheço os crioulos e sei como lidar com eles”. 

Nem todos os americanos eram fãs do regime colonial no Haiti. Legisladores, jornalistas e organizações anti-imperialistas, incluindo a NAACP (Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor), protestaram, realizaram audiências públicas e fizeram faixas contra a ocupação. Mas a maioria dos americanos, assim como hoje, basicamente desconheciam a situação.

Conforme os relatos de massacres e outros abusos se acumularam, no entanto, a vergonha aumentou. Franklin D. Roosevelt, que havia servido na ocupação do Haiti como secretário assistente da marinha, entrou na presidência prometendo encerrar as políticas imperiais dos EUA nesse hemisfério. A ocupação chegou ao fim em 1934. O Haiti tinha algumas novas estradas e prédios, um legado de cicatrizes e abusos e um novo sistema político e econômico criado pelos EUA que continuaria causando destruição nas décadas seguintes

Em 1957, o médico treinado pelos EUA François Duvalier chegou ao poder. Conhecido como Papa Doc, ele era um nacionalista negro que se lançou em parte como um herdeiro da Revolução do Haiti e um oponente ao imperialismo dos EUA, mas ele também sabia lidar com uma potência próxima. Os presidentes dos EUA ofereceram a ele, e ao seu filho que o sucedeu, apoio em momentos chave (quando não estavam tentando financiar golpes contra ele), até o fim da ditadura em 1986. 

Desconhecimento

Então, frente a toda aquela história, para se convencer de que o Haiti é apenas um “buraco de merda” fracassado onde ninguém gostaria de viver, seria necessário desconhecer como os haitianos enxergam o seu país e a si mesmos.

Seria necessário desconhecer totalmente as políticas de comércio destrutivas dos EUA que permaneceram após o final da ditadura, destruindo as proteções comerciais e, com elas, as indústrias e a agricultura local. Seria necessário desconhecer o papel da CIA no golpe de 1991 que derrubou o presidente Jean-Bertrand Aristide, ou as invasões dos EUA em 1994 e 2004. Seria necessário desconhecer o porquê de os Estados Unidos terem financiado e liderado uma “missão de estabilização” da ONU que fez pouca coisa além de manter alguns presidentes, no geral impopulares, no poder e matar pelo menos dez mil pessoas com a introdução da cólera no Haiti pela primeira vez. E seria necessário não entender o papel dos EUA na resposta caótica ao terremoto em 12 de janeiro de 2010 – que foi uma confusão, mas provavelmente não do jeito que você imagina. 

O Haiti é mesmo um lugar difícil de viver para muitas pessoas que vivem lá. A pobreza é enorme. Não há um bom sistema de saneamento, em parte porque o mesmo sistema internacional que introduziu a cólera em 2010 se recusa firmemente a cumprir a sua promessa de pagar para resolver isso. (Antes da epidemia, os Estados Unidos retiveram fundos para pagar por infraestrutura de água e saneamento por mais de dez anos simplesmente por motivos políticos.) Após séculos de exploração e abuso, a maior esperança para muitos haitianos é sair do país – e, de repente, com infraestrutura e oportunidades, eles têm sucesso. Para muitos migrantes, o objetivo final é ganhar dinheiro suficiente para se aposentar, construir uma casa no Haiti e retornar. 

Em uma tentativa de retirar a sua ofensa na última sexta-feira, Trump insistiu que ele tem “um relacionamento maravilhoso com haitianos”. Não há evidências disso. Quando ele decidiu seguir em frente com a deportação forçada de dezenas de milhares de haitianos que haviam recebido permissão para se refugiarem após o terremoto de 2010, o maior jornal do Haiti o declarou como o “pior pesadelo” do país. No ano passado, ele supostamente disse que todos os haitianos têm AIDS – uma ofensa que atinge profundamente a psique dos haitiano-americanos. E agora isso. 

Eu vivi no Haiti por 3 anos e meio, por opção. Vi muitas pessoas passarem por dificuldades, muitas paisagens belas e terríveis, e vivi alguns dos dias mais difíceis da minha vida. Aprendi muito sobre a relação complicada entre o país deles e o nosso – os modos com que o nosso poder pode ser usado para o bem ou para fazer um mal inacreditável. Muitas pessoas destacaram nesta semana que os haitianos passaram por coisas muito piores do que um presidente racista chamar o seu país de “buraco de merda”. A questão é se, conhecendo a verdade, queremos fazer tudo isso de novo. 

Katz, jornalista freelancer, é autor de “The Big Truck That Went By: How the World Came to Save Haiti and Left Behind a Disaster” (“O grande caminhão que passou: Como o mundo tentou salvar o Haiti e deixou um desastre”, em tradução livre). É diretor da iniciativa de mídia e jornalismo no Instituto de Humanidades John Hope Franklin da Universidade Duke.

Tradução de Andressa Muniz
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