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“The Ambulance Drivers: Hemingway, Dos Passos, and a Friendship Made and Lost in War”, de James McGrath Morris, Editora Da Capo. 312 páginas. US$ 27 | Da CapoDivulgação
“The Ambulance Drivers: Hemingway, Dos Passos, and a Friendship Made and Lost in War”, de James McGrath Morris, Editora Da Capo. 312 páginas. US$ 27| Foto: Da CapoDivulgação

Ser uma das principais figuras literárias de sua geração pode ser solitário. Basta perguntar para Ernest Hemingway. De acordo com Hadley Richardson, a primeira esposa do autor, Hemingway sempre teve problemas para encontrar amigos com os quais conseguisse se conectar, “que fossem do seu nível e com interesses similares”. Mas havia uma exceção: “John Dos Passos”, disse ela em uma entrevista, “era uma das poucas pessoas com quem Ernest realmente conseguia conversar”. 

É claro que os dois autores tinham algumas coisas em comum. Os dois nasceram em Chicago, os dois serviram como motoristas de ambulância na Europa durante a Primeira Guerra Mundial e transformaram essas experiências em romances que ajudaram a formar a consciência americana pós-guerra. E por várias décadas da segunda metade do século XX, os dois apareceram em quase todas as listas de melhores autores americanos do século. 

Mas as semelhanças terminam aí. Dos Passos nasceu fora de um casamento, cresceu em uma série de quartos de hotéis europeus e foi educado em Choate e Harvard. Doente e com uma postura estranha, ele tinha óculos grossos, gaguejava e não se dava bem com mulheres. Hemingway, um produto bem mais convencional da família do meio-oeste americano, nunca foi para a universidade mas sempre demonstrou uma confiança intelectual e um atletismo despreocupado, fazendo com que fosse um grande partido. Dos Passos era um ativista político, enquanto Hemingway ficava normalmente fora de movimentos e causas. Os livros de Dos Passos vendiam pouco e os de Hemingway vendiam muito. 

Amizade intensa

E como mostra James McGrath Morris em seu bem acabado lançamento, o livro "The Ambulance Drivers: Hemingway, Dos Passos, and a Friendship Made and Lost in War" (Os motoristas de ambulância: Hemingway, Dos Passos e uma amizade feita e desfeita na guerra, publicado nos EUA pela editora Da Capo e sem previsão de publicação no Brasil) os dois escritores conseguiram mesmo assim manter uma amizade intensa — por vezes até competitiva — durante muitos anos, até que um grande desacordo em 1930 fez com que se separassem. O amargor entre os dois durou até o suicídio de Hemingway em 1961. 

Foi Dos Passos, o mais velho dos dois por três anos, que saiu na frente na corrida por proeminência literária. Ainda que seu primeiro romance tenha caído na obscuridade, seu segundo romance — “Três Soldados”, publicado em 1921 e baseado em suas experiências durante a guerra — foi uma obra controversa e um sucesso de vendas. Muitos críticos condenaram o livro por uma visão muito niilista do conflito, mas a maioria confirmou que ele era belamente escrito e deram a ele uma cobertura midiática reservada para grandes acontecimentos editoriais. 

No momento em que Dos Passos e Hemingway ficaram amigos em Paris, em 1923 (eles já tinham se conhecido em 1918 enquanto dirigiam ambulâncias na Itália), um Hemingway um tanto invejoso ainda não tinha deixado uma marca literária no mundo. Ainda assim, ele via o outro autor mais como colega do que mentor. Os dois ficavam horas no café que mais gostavam (o La Closerie des Lilas, em Montparnasse), bebendo vermute com cassis e lendo trechos da Bíblia na edição do Rei James.

Dos Passos fez o que pode para ajudar o trabalho do amigo a ser notado, usando seus contatos para que Hemingway chegasse no mercado editorial de Nova York. Mas chegou um momento em que Hemingway não precisou mais de ajuda. Seu primeiro grande romance, “O sol também se levanta”, se tornou uma sensação internacional em 1926, alavancando o autor para o alto escalão dos escritores americanos.  

Finalmente iguais, os dois escritores se encontravam com frequência ao longo dos anos, viajando juntos para lugares como Key West ou resorts de ski nos Alpes. Eles tinham muitos amigos em comum e Dos Passos chegou a casar com uma paquera de Hemingway na época do ensino médio, Katy Smith.

E ainda que os estilos narrativos dos dois fossem drasticamente diferentes, eles procuravam os conselhos editoriais um do outro — o minimalismo espartano e maximalismo cinematográfico encontravam um meio termo crítico. Mas, mesmo que os dois tenham tido altos e baixos durante os anos, um padrão começou a se estabelecer. “Hemingway tinha fama e fortuna”, afirma Morris. “Dos Passos tinha enaltecimento literário não-remunerado”. 

Separação ideológica

O resultado causou um certo desconforto na amizade dos dois. Mas a amizade sobreviveu ao fim dos anos 20 e o começo dos anos 30. Durante esses anos, Dos Passos tentou envolver Hemingway em algumas das campanhas políticas de esquerda, mas não teve sucesso.  

Tudo mudou com o começo da Guerra Civil Espanhola em 1936. Hemingway, que parecia achar uma guerra sangrenta tão revigorante quanto uma tourada, aderiu com muita vontade a causa antifascista. Ao mesmo tempo, Dos Passos estava cada vez mais decepcionado com o comunismo e políticos de esquerda de uma maneira geral. Os dois foram para a Espanha para colaborar com um documentário, mas um incidente no qual uma brigada soviética executou um dos amigos de Dos Passos (com evidência duvidosa de espionagem) encaminhou os dois autores para o fim.

Dos Passos acreditava que a injustiça deveria ser exposta na mídia; Hemingway achava que isso seria propaganda contrária à causa antifascista. Eles se despediram como inimigos em uma plataforma de trem em maio de 1937. Numa carta posterior para Dos Passos, Hemingway insistiu que não queria mais ter contato com seu até então amigo. 

Se a história dessa amizade literária turbulenta vai interessar os leitores é debatível. Afinal de contas, a posteridade não foi gentil com Dos Passos. Muito mais do que uma nota de rodapé na história da literatura americana, ele não é mais amplamente lido fora das salas de aula das universidades enquanto o Hemingway é, bom, Hemingway. Mas os melhores trabalhos de Dos Passos transbordam energia verbal e atingem um âmbito filosófico de um jeito que Hemingway nunca conseguiu. Fica a esperança que o livro de Morris ajude a empatar o placar das reputações literárias póstumas dos dois.

Tradução de Gisele Eberspächer
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