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Enquanto a Venezuela arde, Maduro tenta dar ares de normalidade ao caos | Marcelo Garcia/AFP
Enquanto a Venezuela arde, Maduro tenta dar ares de normalidade ao caos| Foto: Marcelo Garcia/AFP

Em 31 de março, a Procuradora Geral da Venezuela, Luisa Ortega, ofereceu uma opinião perturbadora e inesperada à primeira vista. Pela primeira vez em quase dez anos como administradora da perseguição penal na Venezuela de Hugo Chávez e seus sucessores, ela deixou o roteiro e qualificou as decisões 155 e 156 do TSJ (Tribunal Superior de Justiça) que suprimem imunidade parlamentar e as faculdades do Parlamento, como uma “ruptura da ordem constitucional.”

Sua declaração reafirmou o grito de autogolpe que a oposição e o secretário-geral da OEA tinham feito, mas também ofereceu a Nicolás Maduro e seus aliados a chance de considerar tudo como uma discrepância de visões, um mero “impasse” entre dois ramos do governo, que um Conselho presidido e mediado por ele resolveria. O Conselho prosseguiu —sem a presença da Ortega —, e as sentenças foram “examinadas” e “modificadas”, mas algumas dúvidas permanecem nas mentes de muitos: houve um autogolpe de Estado na Venezuela? Com que objetivo? Ortega é a nova aliada da causa democrática opositora, ou suas declarações foram parte da estratégia?

Sem limites

O conflito atual começou com a última derrota eleitoral do partido no poder: a maioria parlamentar da oposição obtida em dezembro de 2015. Durante a era Chávez, o Estado venezuelano constitucionalmente dividido em cinco ramos independentes — dos quais apenas dois são eleitos pelo voto popular (Presidência e Parlamento) — foi moldado em um bloco único com lealdade ao Chávez, quase sem nenhuma dissidência, com discurso e narrativa uniforme.

Isso levou à governança sem obstáculos nem limites, e ao uso de acusação criminal como uma forma de perseguição política. Os acusados de “traição” e os prisioneiros políticos se converteram em algo normal. Juízes e críticos foram detidos por ordens televisionadas de Chávez, cumpridas em coordenação de esforços entre o Judiciário e o Ministério Público. A eleição de um parlamento com maioria opositora mudou o equilíbrio de poder, e desencadeou a luta do Judicial para minar ao Legislativo.

A decisão de sete juízes de declarar o Parlamento em “desacato” e todos seus atos inválidos, de remover a imunidade dos deputados para persegui-los, de “ordenar” a Maduro “rever a legislação” e assumir os poderes do Legislativo, obedecem à maneira natural de agir do governo venezuelano. Com o que ninguém contava era a intervenção da Ortega.

Diferentes leituras

De pronto se tornaram virais as diferentes leituras do que aconteceu. Para uma opinião pública desconfiada e suspeita, a declaração só ajudou a reforçar a afirmação discursiva do Maduro de que na Venezuela sim há democracia, pluralismo e separação de poderes, tanto assim que a Procuradora Geral se atreveu a discordar publicamente: isto foi afirmado pelo ombudsman Tarek William Saab.

Para vários líderes da oposição, a postura de Ortega é histórica e deve ser bem acolhida e apoiada, porque é o tipo de movimento capaz de “fazer quebrar uma ditadura”, como expressou o deputado Freddy Guevara em um VoiceNote circulado massivamente por WhatsApp; embora o líder do seu partido, Leopoldo López, tenha sido preso injustamente por ação da Procuradora Geral.

Na realidade, a convocação de um Conselho pelo Presidente, o instar público ao Judiciário para “revisar” as decisões, e as respectivas alterações — ilegais, porque as leis não permitem revisão de decisões pelo mesmo tribunal — são evidências claras da não-separação de poderes, bem como se caracteriza golpe suprimir um parlamento eleito por quatorze milhões de venezuelanos.

A “ruptura da ordem constitucional” implica prática de crimes, e a encarregada de investigar e perseguir crimes é precisamente a Procuradora Geral. De momento, a sua opinião é apenas isso, um critério expressado publicamente junto aos meios de comunicação, em um discurso que incluiu o anúncio (pela segunda vez em dez anos) de um número modesto de assassinatos violentos em 2016. Já os deputados fizeram para ela um chamado à ação, e os cidadãos estão se preparando para exigir o cumprimento das suas competências.

*Valentina Issa Castrillo é jornalista venezuelana

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