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Manifestantes seguram cartaz onde se lê: “Islamofobia não é liberdade”, em frente à embaixada da França em Londres, em protesto contra a proibição dos burquínis em praias francesas | JUSTIN TALLIS/AFP
Manifestantes seguram cartaz onde se lê: “Islamofobia não é liberdade”, em frente à embaixada da França em Londres, em protesto contra a proibição dos burquínis em praias francesas| Foto: JUSTIN TALLIS/AFP

Os recentes ataques terroristas a Londres criaram uma nova onda da retórica "clash of civilizations" (conflito de civilizações, em um trocadilho com o jogo Clash of Clans) – esse tipo de linguagem política que caracteriza eventos como os de Londres como Oeste x Leste, Cristianismo x Islamismo. Segundo essa lógica, para acabar com os terroristas nós devemos "apagar esses selvagens da face da terra", como tuitou o ator conservador James Woods. Na luz dos ataques de Londres, algumas pessoas desejaram publicamente o fim do Islamismo, usando a hashtag #NoMoreRamadans (sem ramadã).

Frequentemente essas afirmações remontam às Cruzadas. Logo depois que as notícias do ataque de Londres se espalharam, um dos escritores do site nacionalista branco Breitbart tuitou que "as Cruzadas precisam voltar". Ele logo deletou o tweet, mas o colunista Kurt Schlichter do site conservador TownHall tuitou que ele também achava que "os Cristãos eram inequivocamente bons nas Cruzadas" e que ele "apoia" as Cruzadas. Então o Republicano Clay Higgins, representante de Louisiana, postou no Facebook que "toda a Cristandade está em guerra com o horror islâmico" e que a única solução é "matar todos". 

Não foi a primeira vez que isso acontece. Ano passado, durante seu discurso no Café da manhã Nacional da Oração, o presidente Barack Obama mencionou que vários grupos religiosos perpetraram atos violentos na história, citando as Cruzadas como evidência. Esse comentário levantou uma resposta vigorosa da direita, que defendia as Cruzadas medievais. Antes disso, o candidato republicano à presidência Rick Santorum disse a um grupo de crianças que "a esquerda" critica as Cruzadas porque "eles odeiam a cristandade". Santorum também defende que as Cruzadas foram puramente uma guerra defensiva contra a agressão islâmica. E existem muitas histórias similares. 

Versão simplificada e errônea

Explorar uma versão simplificada e errônea das Cruzadas (que elas foram uma resposta defensiva do oeste cristão contra uma invasão do oriente) não é um fenômeno contemporâneo. Ele começou na época do colonialismo e renasceu no começo do século XX. Nos dois casos – assim como no momento que vivemos hoje – o paralelo imaginário entre as Cruzadas e nossos próprios conflitos são usados para defender nossas próprias causas políticas, não para representar as Cruzadas com exatidão. 

Como estudiosos das Cruzadas de várias gerações já mostraram, não houve necessariamente um movimento evolutivo para a conquista cristã de Jerusalém em 1099. A conquista árabe de Jerusalém no século VII já tinha sido esquecida nesse momento, e a Europa Latina sentia pouca, ou até nenhuma, pressão dos turcos seljúcidas, divididos e lutando entre si e com os fatímidas do Egito. Mesmo durante a marcha para Jerusalém, as Cruzadas se mostraram interessadas em criar alianças com alguns líderes muçulmanos contra outros muçulmanos (e até outros cristãos). A situação só se complicou quando o Reino de Jerusalém foi fundado no século XII, quando o imperador Frederico II foi criticado por seus contemporâneos por ser amigo dos muçulmanos, mesmo depois de ele ter recuperado Jerusalém para os cristãos em 1229. Em outras palavras, a história não é tão simples como uma luta entre cristãos e muçulmanos por terras. 

A concepção das Cruzadas não vem da realidade história, mas de dois outros lugares. Primeiro de pesquisadores do século XIX e XX, que tiveram seus estudos relacionados a projetos coloniais nacionalistas na África e no Oriente Médio (pesquisadores como o francês Joseph-Francois Michaud, o alemão Heinrich von Sybel ou o americano George Lincoln Burr). Segundo, pela ressurreição dessas ideias pelos conservadores do século XXI, como Robert Spencer, Santorum e muitos outros envolvidos na presidência de George W. Bush. 

Anacronismo

De fato, o termo "cruzada" como é usado nos dias de hoje é anacrônico, uma ferramenta dos nossos políticos, não do período medieval. A palavra "cruzada" no latim (crucesignatus – "marcado pela cruz") teve sua primeira ocorrência apenas em 1200, mais de 100 anos depois que o fenômeno começou. Em inglês demora ainda mais: as palavras "crusade" e "crusader" só aparecem nos anos 1700. E mesmo então, as palavras apareciam para resolver uma questão contemporânea, não histórica: para descrever simultaneamente guerras do período medieval e caracterizar qualquer luta contra o "mal" e o "erro". Em outras palavras, para relacionar o passado e o presente numa era de descobrimento e expansão colonial. 

Historiadores modernos usaram o termo num contexto político várias vezes: quando Allenby conquistou Jerusalém dos Otomanos em 1917, a vitória foi relacionada com o fracasso de Ricardo I em 1189. René Grousset concluiu sua história das cruzadas da seguinte forma: "Os Templários só seguraram a ilhota de Arwad até 1303. Os francos só pisariam ali novamente em 1914". 

"Deus Vult"

Ainda que a pesquisa sobre as Cruzadas já tenha evoluído, muitas dessas ideias colonialistas persistem. Eu, Susanna Throop e David Perry começamos a monitorar o reaparecimento dessas ideias e a relacioná-lo com o crescimento (e normalização) da extrema direita. Existe um histórico longo de nacionalistas brancos e supremacistas brancos usando erroneamente conceitos da Idade Média para justificar suas ideias, e as Cruzadas não são exceção. Recentemente, o meme chamado templário chorando – a imagem de um homem em vestimentas medievais com lágrimas saindo de um de seus olhos – foi uma resposta xenófoba popular à entrada de refugiados sírios na Europa no verão de 2016. Alguns manifestantes apareceram fantasiados de templários em mobilizações, e "Deus Vult" ("Deus quer" em latim, grito de guerra atribuído às Cruzadas) se tornou um grito de guerra para nacionalistas brancos na Europa e nos EUA. 

Mas a culpa não é só da extrema direita. Desde que Bush usou o termo "cruzada" para descrever a resposta americana à al-Qaida, muitos conservadores ficaram confortáveis em posicionar os EUA como a Europa Latina Medieval, impondo ordem a um Oriente Médio desobediente como uma resposta defensiva a uma agressão. Ainda que a nostalgia errônea pela Idade Média seja mais frequente na extrema direita, já é também uma característica da centro-direita, e a resposta aos ataques de Londres sugerem que essa tendência não vai desaparecer tão rápido. 

Debater o significado das Cruzadas é debater o significado de ser moderno: se os conservadores estiverem certos, o mundo sempre foi semi-apocalíptico e nunca vai mudar; se os historiadores estão certos, épocas diferentes têm características diferentes e não precisamos cometer os mesmos erros para sempre. "Cruzada" sempre disse, e sempre vai dizer, mais sobre como vemos o nosso mundo do que sobre a Idade Média. É uma palavra moderna imposta a uma palavra medieval, uma tentativa de conexão pelas pontas de um arco-íris. E um arco-íris se dissipa no ar quando se muda de perspectiva.

*Matthew Gabriele é professor de Estudos Medievais no Departamento de Religião e Cultura da Virginia Tech e tem várias publicações sobre religião e violência na Idade Média.

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