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Leandro Karnal é gaúcho e leciona história na Universidade Estadual de Campinas | Reprodução
Leandro Karnal é gaúcho e leciona história na Universidade Estadual de Campinas| Foto: Reprodução

Filosofia não precisa ser chata e rebuscada. Mas os gregos, quando a inventaram, estavam buscando conhecimento e crescimento – daí o nome Φιλοσοφία, que significa, literalmente “amor pela sabedoria”. Alguns de seus pensadores mais importantes, de Baruch de Spinoza a Georg Hegel, passando por Tomás de Aquino e Immanuel Kant, realizaram essa busca escrevendo textos densos. 

Não é o caso de Leandro Karnal, Mario Sergio Cortella e Clóvis de Barros Filho. Em seus livros e palestras, os professores apresentam conceitos sobre o sentido da vida, o trabalho, a ética, o amor, a religião, a morte, sempre com bom humor e linguagem acessível. 

Eles costumam inclusive se reunir para eventos conjuntos – caso da República dos Filósofos do Brasil, uma série de palestras a ser realizada em Itajaí (SC), no feriado da Proclamação da República, envolvendo Karnal, Barros Filho, o jornalista Marcelo Tas e o ex-senador Pedro Simon. Ou do livro Verdades e Mentiras – Ética e Democracia no Brasil, escrito em parceria entre Portella, Karnal e o filósofo Luiz Felipe Pondé. Karnal e Barros Filho escreveram também Felicidade ou Morte. Barros Filho já substituiu Cortella em um evento de que ele não participou por motivos de saúde.  

Clóvis de Barros Filho leciona ética na USPHugo Harada/Gazeta do Povo

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Karnal, Cortella e Barros Filho são professores universitários com formação intelectual no currículo. Leandro Karnal é gaúcho, tem 54 anos e leciona história na Universidade Estadual de Campinas. Paranaense de 63 anos, Mario Sergio Cortella é formado em filosofia. Em seu mestrado na área de pedagogia, foi orientado pelo educador Paulo Freire. Leciona teologia, ciências da religião e educação na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Já Clóvis de Barros Filho é o mais novo do trio – tem 50 anos. Nasceu em Ribeirão Preto, é bacharel em direito, com mestrado em ciências políticas e doutorado em ciências da comunicação. Leciona ética na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. 

Paranaense, Mario Sergio Cortella é formado em filosofiaPedro Serapio/Gazeta do Povo

Somados, os três publicaram perto de 50 livros. Quando falam em público, geralmente abrem mão de recursos como slides, luzes ou músicas – usam apenas o microfone. Divulgadas no Youtube, suas palestras costumam ultrapassar as 400 mil visualizações. Leandro Karnal tem um total de 1,2 milhão de seguidores no Twitter e no Facebook. Mario Sergio Cortella, 1,2 milhão no Facebook (ele não tem Twitter oficial). Já Clóvis de Barros Filho, 210 mil pessoas nas duas redes. 

Qual o segredo do sucesso? 

Em parte, é resultado da popularização da filosofia, um fenômeno que começou nos países de língua inglesa ainda nos anos 1990. Ajuda bastante a linguagem acessível que os autores usam. Mas será que isso não significa que eles se aproximam demais do ramo da auto-ajuda? Será que são mesmo filósofos? 

“A palavra ‘filósofo’ é usada em acepções muito diversas, às vezes mesmo pejorativas, conotando o sujeito que não trabalha ou não faz nada de útil”, explica o professor Edgar Lyra, coordenador da graduação de filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. “Seu sentido mais estrito aponta para a produção de conceitos, de sínteses e análises originais, identificadas por contemporâneos e descendentes como pontos de apoio ou partida para pensar os problemas mais relevantes, abrangentes e complexos de cada tempo.” 

Panfletos 

Os autores se encaixam nessa definição? “Nenhum dos três autores citados é, nesse sentido, propriamente um filósofo, o que não desqualifica o que pensam e fazem”, responde o professor Lyra. 

“Me parece que todos se valem, cada um a seu modo, de pensadores clássicos ¬– filósofos, poetas, pedagogos, psicanalistas, cientistas – para irrigar as opiniões correntes com questões que levem ao seu reexame e possível refinamento. Naturalmente, precisam fazer isso numa retórica adequada aos meios de comunicação de que se servem, o que limita suas possibilidades discursivas”. 

O professor continua: “Não creio que a eventual queda em tons mais assertivos, ou mesmo simplistas, aproxime Cortella, Karnal ou Barros Filho da ‘auto-ajuda”, sobretudo se pensarmos esse gênero como venda de soluções fáceis para problemas difíceis”. 

“Eles falam sobre tudo, por meio de muitas orientações, preconceitos e idiossincrasias bem pessoais”, diz Saulo Henrique Souza Silva, doutorando em Filosofia pela Universidade Federal da Bahia e professor do Colégio de Aplicação da Universidade Federal de Sergipe. “Esse tom eclético é coisa antiga no Brasil. E aparece envolto à ausência de uma tradição filosófica brasileira.” 

Nesse sentido, diz o professor, os três seguem uma tradição brasileira antiga. “É algo comum desde o século XIX, quando Tobias Barreto, o chamado primeiro filósofo brasileiro, escreveu obras e obras seguindo esse tom eclético de misturar várias tradições para compor uma espécie de mostrengo filosófico. No que diz respeito ao conteúdo específico daquilo que eles divulgam”, continua Souza Silva, “penso que o discurso público desses professores tem a qualidade de um panfleto e não se deve esperar algo muito melhor que isso.” 

Filosofia popular

Na trajetória pessoal e no conteúdo de suas aulas, os três têm muito em comum. Ateu com formação em filosofia dentro da Companhia de Jesus durante a juventude, Karnal trata de questões existenciais, como a busca pela felicidade e o poder que cada pessoa tem sobre seu próprio destino. Ele participou de episódios do programa Café Filosófico, da TV Cultura, é colunista do jornal O Estado de S.Paulo e apresenta a coluna Careca de Saber, na Band News FM. 

Cortella, que na infância em Londrina viveu por três anos num convento da Ordem dos Carmelitas Descalços, trata de ética na política e de estratégias que os pais devem usar em casa para educar os filhos. Um de seus livros, Felicidade foi-se embora?, foi escrito em conjunto com os religiosos Leonardo Boff e Frei Betto. Também é colunista de rádio – no caso, a CBN. Já foi secretário de educação da capital paulista e suas conferências já foram ouvidas por praticamente todos os maiores grupos empresariais do país. 

Barros Filho, que estudou em colégio jesuíta, costuma falar sobre motivação e liderança, especialmente no ambiente profissional. Participa de eventos e coordena o curso de marketing da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). Publica mensagens em vídeo para a Casa do Saber, um centro de debates e palestras criado em São Paulo em 2004 por um grupo de amigos que inclui a atriz Maria Fernanda Cândido, o cientista político Luiz Felipe D’Avila e o educador Gabriel Chalita. 

É possível produzir filosofia popular? Emrys Westacott, professor de filosofia da Universidade Alfred, em Nova York, diz que sim. “É possível produzir filosofia interessante, séria e original e ao mesmo tempo dialogar com leitores e ouvintes que não são filósofos profissionais. Aliás, muitos escritos acadêmicos nessa área são desnecessariamente áridos e desagradáveis de ler.” 

Sem ter tido contato com os três autores brasileiros, ele afirma: sempre existe um processo educativo nesse tipo de conteúdo em geral. “Autores que tratam de questões do dia-a-dia, ao invés de discutir temas teóricos árduos, fazem parte da tradição da filosofia. Em geral, filósofos populares são educadores, e pessoas educadas vivem melhor.” 

Canja para a alma

Essa não é a posição de Simon Blackburn, professor de filosofia aposentado pela Universidade de Cambridge, ele mesmo autor de livros de popularização da área, como Pense: Uma Introdução à Filosofia. “É possível ser um filósofo consistente e sério e também produzir filosofia popular de valor. Mas existem limites”, ele diz, também sem ter dito contato com os textos dos autores brasileiros específicos. 

“O pior tipo de texto é o do estilo de auto-ajuda, que produz canja de galinha para a alma, que é uma paródia de qualquer coisa que a filosofia deveria ser.” 

“Um filósofo pode sim oferecer contribuições que possam ser entendidas fora do ambiente universitário. Em debates sobre assuntos delicados, como o direito ao aborto ou ao casamento de pessoas do mesmo gênero, os filósofos têm muito a dizer. Mas, se você subestima a audiência e rebaixa o conteúdo, você está sendo inútil, ou pior do que inútil.”

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