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‘Star Wars’:  Cadê  os jornalistas? | Divulgação
‘Star Wars’:  Cadê  os jornalistas?| Foto: Divulgação

Nunca foi visto um jornalista em “Guerra nas Estrelas”. Não em oito filmes. 

Fora isso, a galáxia é rica em profissões. Há barmen, caçadores de recompensas, geneticistas, uma bibliotecária, médicos, fazendeiros, músicos, senadores, soldados e uma senhora que vende sapos do esgoto. O personagem que chega mais perto da atividade de jornalismo, se formos generosos, é um alienígena de duas cabeças que comenta durante uma corrida de pods. Sua narração é quase toda formulaica, coisas como “É Skywalker!” e “A multidão vai à loucura!”. Pior ainda, ele não é muito imparcial; à vista do gangster Jabba, o Hutt, ambas as suas cabeças gargarejam em sinal de lealdade.

Se já houve uma galáxia muito, muito distante precisando de uma imprensa inteligente e independente, é essa. 

“Notícias falsas em ‘Guerra nas Estrelas’ são provavelmente o principal problema deles”, diz Ryan Britt, um editor especializado em ficção científica do site Inverse.

Britt, em seu livro de 2015 “Luke Skywalker não sabe ler”, faz uma afirmação provocativa: a maioria dos habitantes de “Guerra nas Estrelas” ou são analfabetos ou parecem fundamentalmente desinteressados em ler. 

“Há uma falta de leitura profunda e entendimento e compreensão”, diz Britt. “A transferência da memória cultural é muito, muito curta.” 

Embora Luke ocasionalmente use a palavra escrita para realizar tarefas, tais como navegar para um planeta distante, nunca o vemos ler por diversão ou instrução. Ninguém lê. Você estaria correto se argumentasse que a fuga de uma Estrela da Morte não é o melhor momento para virar as páginas da última edição de uma Vogue do Espaço. Mas mesmo durante a série prequel, no meio da calma e do luxo do planeta capital, não há um jornal ou livro holográfico à vista. E, portanto, a propaganda política reina. Fatos rapidamente se tornam mitos distorcidos. 

Essa falta de imprensa, do ponto de vista de Britt, enriquece o universo ficcional. “Não é uma acusação de que ‘Guerra nas Estrelas’ é mal escrito”, diz. “Isso explica a disfunção.” 

Notícias falsas são um sintoma mortal da cultura pobre em imprensa exibida em “Guerra nas Estrelas”. O Facebook, em um relatório lançado no fim de abril, definiu notícias falsas como uma frase “guarda-chuva” que pode incluir “boatos, rumores, memes, difamação virtual, e distorção de fatos por figuras públicas reportadas em peças noticiosas fidedignas”. E, em “Guerra nas Estrelas”, umas poucas e gritantes distorções de fatos por uma figura pública dão origem a um império do mal. 

Sem contestação

Próximo ao final da prequel “A Vingança dos Sith”, o líder eleito da República Galáctica dá um discurso. É um discurso inflamador, cheio de carnificina e conspiração. O chanceler supremo Palpatine desenvolve uma teoria ousada de que a poderosa elite, os Jedis, querem subverter o governo. É uma baboseira completa. 

Uma “rebelião Jedi” foi frustrada, diz Palpatine. (Isso é falso. Palpatine ordenou que seus troopers atirassem nos Jedis pelas costas, um massacre presumivelmente levado a cabo em milhares de planetas.) Os Jedis desfiguraram seu rosto em uma tentativa fracassada de assassinato, ele diz. (Novamente falso, embora difícil de investigar – Palpatine resistiu à prisão em seu escritório particular, depois matou todas as testemunhas em potencial.) 

Com isso, uma democracia milenar morre. Palpatine anuncia que a República é agora um império, prometendo “uma sociedade segura, que eu lhes garanto que durará por 10 mil anos”. 

Quase todos na plateia de Palpatine saúdam seu discurso com trovejantes aplausos. 

Há algumas poucas cabeças acenando em negação e palavras tristes murmuradas. Mas ninguém toma notas. Ninguém liga um gravador. Ninguém na câmara levanta um tentáculo e pergunta: “hm, com licença, senhor chanceler... ?” 

Enquanto isso, o que parecem ser drones equipados com câmeras de vídeo flutuam pela câmara do Senado. O filme nunca explica o propósito dos drones, mas é fácil imaginar que os robôs estão filmando o discurso do imperador. (Na verdade, o programa de televisão de “Guerra nas Estrelas” “Rebels” (rebeldes) mais tarde oferece um vislumbre da propaganda imperial gravada naquele mesmo local.) Se é isso, não há evidência de que a galáxia sintonizou em um feed de notícias robótico para ver um âncora jornalístico popular e revoltado com razão listar as leis democráticas quebradas e o contexto histórico ignorado. 

O imperador rapidamente consolida controle. Vai levar 19 anos para que bolsões isolados de revolta floresçam em uma rebelião completa contra o Império. 

“Quando você elimina a imprensa, quando legisla contra a mídia, o que resulta é algum tipo de estado totalitário”, diz Joseph Hurtgen, professor de inglês do Young Harris College, na Geórgia, e um especialista em teoria arquivística, a maneira como informações são mantidas e armazenadas. “Isso é sempre onde vai parar quando você mina a cultura impressa.” 

A coisa engraçada a respeito dos registros de fatos em “Guerra nas Estrelas”, diz Hurtgen, é que eles confessam uma obsessão por tecnologia. “O único arquivo que qualquer um se dá ao trabalho de manter em ‘Guerra nas Estrelas’ é sobre tecnologia”, diz. “Ninguém está escrevendo memorandos ou notícias. 

Sem contexto

Mesmo esses arquivos sobre tecnologia são desprovidos de contexto. A biblioteca Jedi contém volumes de mapas estelares, mas não abre espaço para que se questione sua fidedignidade. “A biblioteca é um lixo completo”, na avaliação de Britt. Quanto ao Império, como visto em “Rogue One”, seu arquivo mais precioso é uma torre de projetos balísticos. 

“Não há análise, correto?”, diz Hurtgen. “Não há conhecimento sobre probabilidades escatológicas quando se produzem Estrelas da Morte.” O que é o mesmo que dizer que o Império parece nunca aprender com seus erros. Os Jedis também têm sua culpa, diz Hurtgen: seu mantra é “examine seus sentimentos”, algo muito distante do discurso racional aplicado por filósofos políticos.

(“Examinar sentimentos nos dá Hamurabi extraindo dentes; o Império Austro-Húngaro declarando guerra contra a Sérvia em 1914; Trump tuitando qualquer coisa”, diz Hurtgen.) 

Em épicos ficcionais com mundos completos, usualmente há algum tipo de jornalismo, ainda que seja só uma TV ao fundo – porque se eventos que alteram o universo estão acontecendo, qualquer veículo de imprensa meio decente estará prestando atenção. 

Harry Potter lê o Profeta Diário. Quadrinhos de super-heróis estão repletos de repórteres. Na série de ficção científica em graphic novel “Saga”, aclamada como uma herdeira espiritual de “Guerra nas Estrelas”, um fotógrafo e um jornalista de tabloide desempenham papeis pequenos mas críticos. Repórteres aparecem em “Jornada nas Estrelas”. Na refilmagem de “Battlestar Galactica”, uma série de TV em que o total da população humana é reduzido a 50 mil refugiados, um dos primeiros episódios é gravado do ponto de vista de um jornalista. E, mesmo assim, em “Guerra nas Estrelas”? Nada. 

Nesse vácuo de imprensa, a história cai nas trevas de um pântano do planeta Dagobah. Durante “Uma Nova Esperança”, o filme de “Guerra nas Estrelas” ambientado apenas 19 anos após “A Vingança dos Sith”, os Jedis são descritos como membros de uma “religião antiga”. No recente filme “O Despertar da Força”, a jovem heroína Rey admite que acreditava que Luke Skywalker, talvez a figura histórica mais importante de somente 30 anos antes, era apenas um “mito”. 

Holonet

Frequentemente, fãs exasperáveis da série vão dizer a Britt que o universo expandido de “Guerra nas Estrelas” – livros, programas de TV, quadrinhos – mostram que ele está errado. (A ideia de Britt certamente irrita algumas pessoas. “Aquela estúpida teoria do analfabetismo”, vituperou um site de cultura pop ano passado.) O que é mais frequentemente invocado como defesa é HoloNet, o equivalente da internet em “Guerra nas Estrelas”. 

Mesmo assim, parece duvidoso que a HoloNet promovesse a livre circulação de ideias. O órgão de notícias HoloNet News, de acordo com sua descrição aprovada pela Lucasfilm, não era um bastião do jornalismo agressivo. A ostensivamente democrática República tomou controle dele antes. Então, sob o reinado de Palpatine, ele se tornou “a agência de notícias oficialmente aprovada pelo Estado do Império”. (Uma organização chamada “Ministério da Informação” assegurava que “as notícias fossem consistentes com as mensagens do governo.”) 

Faroeste galáctico

Os filmes de “Guerra nas Estrelas” são similares a filmes de faroeste, diz Hurtgen, porque ambos se dão em um “espaço livre de instituições normais. E uma dessas grandes instituições é o ensino. Tudo que resta são histórias passadas adiante, na forma de uma cultura oral.” 

Quando o primeiro filme de “Guerra nas Estrelas” foi lançado em 1977, ele argumenta, era o tempo perfeito para uma fantasia escapista sobre uma sociedade que não lê. A era econômica anterior, no qual a falta de ensino superior não era uma barreira para um emprego estável, tinha chegado ao fim. 

“Há um apelo em uma narrativa que aparece em um momento em que ensino superior e alfabetização são cada vez mais exigidos”, diz Hurtgen. “Os grandes heróis não têm que fazer isso. Eles se dão muito bem por conta própria.” 

Há uma linha de raciocínio que argumenta que as histórias que contamos refletem quem somos enquanto sociedade. “Uma coisa que eu imagino”, diz Hurtgen, “se estamos contando histórias nas quais não há um cultura de imprensa, não há palavra escrita, é o que significa para nós que ‘Guerra nas Estrelas’ tenha se tornado um dos contos mais populares?”

Tradução de Pedro de Castro
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