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Porém, alguns jornalistas, incapazes de absorver ataques e ameaças diretas nas mídias sociais, passaram a se esquivar de tópicos controversos | Pixabay
Porém, alguns jornalistas, incapazes de absorver ataques e ameaças diretas nas mídias sociais, passaram a se esquivar de tópicos controversos| Foto: Pixabay

No começo dos anos 2000, o escritor de botas de couro foi atacado três vezes por skinheads antirracistas em Portland, estado do Oregon, nos Estados Unidos, por usar uma cruz de ferro – “comumente usada como símbolo de ódio”, de acordo com a Liga Antidifamação. Hoje, este escritor se vê altamente demandado tanto como colunista quanto como fonte para repórteres buscando entender o crescimento da supremacia branca na América do século 21 – ainda que Jim Goad não se enxergue ele próprio como um supremacista branco. 

Agora aos 50 anos, Goad, autor de “The Redneck Manifesto” (“O manifesto caipira”, em tradução livre), é chamado de “padrinho da nova direita”. Sua obra está canalizando as profundezas sombrias do ressentimento branco – e descobrindo o que ele chama, em entrevista, de “hipocrisia cruel e cega da igualdade forçada”. 

Goad diz que ele não se considera parte da autodescrita alt-right, uma coalizão que defende crenças nacionalistas brancas, antissemitas e misóginas. Ele se chama, simplesmente, de um “lobo solitário”, um pensador independente não ligado a nenhum grupo. 

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Desde a eleição de Donald Trump, Goad também é parte de um grupo de pensadores e ativistas americanos procurados por jornalistas pegos de surpresa pela onda de ressentimento branco e por nacionalistas brancos fortalecidos que ajudaram a colocar o presidente Trump na Casa Branca. Goad disse ao jornal semanal “Willamette Week”, de Portland, que jornalistas o procuram para explicar a “etiologia da doença” (o perfil de Goad no jornal vinha com um aviso de atenção a insultos raciais). 

“Metade das pessoas pensa que eu sou um idiota perigoso e a outra metade pensa que eu sou corajoso o suficiente para dizer coisas que elas seriam aterrorizadas de dizer em público”, disse o formado em jornalismo pela Universidade de Temple, em uma entrevista por telefone, em 12 de dezembro. 

Em uma coluna do ano passado, ele escreveu: “Nunca senti a necessidade de dizer que as pessoas brancas são as melhores do mundo, mas não é isso que me rotula de supremacista branco – é minha recusa em dizer que eles são o pior grupo do mundo”. 

Para deixar claro, a sagacidade de Goad já foi louvada além da alt-right, incluindo o comediante progressista Patton Oswalt. Mas como o tom dos Estados Unidos se tornou cada vez mais raivoso ao longo do primeiro ano de Trump no poder, ataques ao multiculturalismo – colecionados por Goad – também têm sido cada vez mais vistos por alguns americanos como uma defesa antidemocrática da nova interação da supremacia branca. Eles apontam para um crescimento nos crimes de ódio reportados ao FBI, um aumento no estresse e hostilidade em escolas e número maior de registros de conflitos de rua entre extremistas de direita e grupos antifascistas de esquerda. 

Agenda multicultural 

Quando a imprensa tenta entender Goad e os nacionalistas brancos, isso não acaba propagandeando, ainda que sem intenção, a supremacia branca? Ou ignorá-los é um pecado ainda maior, que confirmaria como verdade o que Goad e outros dizem: que a mídia – e seus pares acadêmicos e políticos – esboça seletivamente a realidade para que se adapte a uma agenda política multicultural? 

“A questão [de como cobrir a ascensão do nacionalismo branco nos EUA] é, realmente, um dilema existencial para o jornalismo”, diz Frank LoMonte, ex-chefe da sucursal de Atlanta da agência de notícias Morris.

“Você trata certas questões como sendo resolvidas além do processo de litígio? Será que o pleno respeito e reconhecimento aos direitos de minorias são realmente uma proposição tão estabelecida nos Estados Unidos? Parece que deveria ser, mas nós sabemos que há algum segmento da população que ainda está preparado para litigar essa questão”. 

Prover contexto para as vozes de separatismo e ódio se tornou ainda mais complicado enquanto novos consumidores de notícias americanos, tanto na direita quanto na esquerda, se tornam cada vez mais isolados e militantes, diz Clay Calvert, autor do livro “Voyeur Nation” (“Nação Voyeur”, em tradução livre) e professor de direito da Universidade da Flórida. 

Alguns jornalistas, incapazes de absorver ataques e ameaças diretas nas mídias sociais, passaram a se esquivar de tópicos controversos. De acordo com uma pesquisa informal, 15% dos jornalistas dizem que deixaram de produzir reportagens que possam fomentar reações adversas na internet. A questão está sendo debatida em redações de veículos de todo os Estados Unidos. 

Alguns estão suprimindo a reportagem, como uma emissora da Flórida que não usa os nomes de nacionalistas brancos quando cobre seus discursos. E outros, especialmente jovens americanos, estão indo longe a ponto de questionar se a Primeira Emenda da Constituição americana precisa ser reavaliada. Em novembro passado, um estudante escreveu no “Daily Nexus”, um jornal estudantil da Universidade da Califórnia – Santa Barbara: 

“Deveria haver uma linha tênue onde a liberdade de expressão deixa de ser um direito e começa a ser uma ameaça à própria noção do que são os Estados Unidos”. 

Contra essa ideia, a Vice News ganhou aplausos por colocar uma repórter ao lado de supremacistas brancos antes dos protestos que terminaram em morte em Charlottesville. A correspondente Elle Reeve exibiu uma reportagem bombástica que apresentou uma visão nua e crua dos manifestantes – e seus arsenais pessoais –, oferecendo um olhar de primeira fila de ideias que estão se transformando em reais “erosões nas proteções de direitos civis para grandes grupos de pessoas nos EUA”, diz Heidi Beirich, editora do Relatório de Inteligência do Southern Poverty Law Center, uma ONG de advocacia legal sem fins lucrativos nos Estados Unidos. 

“Muitos jornalistas estão enfrentando este grande dilema a respeito de como cobrir esse movimento nacionalista branco ressurgente sem normalizá-lo ou dar a ele uma audiência mais ampla”, diz Sophie Bjork-James, antropóloga da Universidade Vanderbilt que estuda nacionalismo branco nos EUA. 

“Jornalistas não querem ter sua própria ideologia moldando como eles retratam [assuntos], mas a maioria acredita que, em uma democracia, há valores com os quais temos que concordar”. 

O problema deste modo de pensar, completa ela, é que as “ideias [nacionalistas brancas] estão se espalhando muito mais do que pessoas de fato se definindo como ativistas e participando de manifestações”. O Programa de Extremismo da Universidade George Washington descobriu que o número de seguidores de supremacistas brancos na internet explodiu em 600% entre 2012 e 2016. “Análises nessas redes apontam para um crescimento significativo em usuários se identificando amplamente com nacionalismo branco e entre usuários que indicaram especificamente alguma forma de simpatia ao Nazismo”, escreveu o autor do estudo. 

Ao mesmo tempo, Bjork-James complementa: “Há um grande perigo de distorcer [nacionalistas brancos] como tendo mais poder do que realmente têm e números maiores do que realmente têm, e então normalizá-los, porque eles estão trabalhando duro, usando vários espaços online para normalizar suas ideias radicais”. 

Checagem 

A respeito disso, alguns jornalistas veteranos dizem que pode valer a pena olhar para dentro da patologia do ódio – e como ela se fortalece através de pensadores influentes e jornalistas. 

“Quando os jornalistas entram nesse caminho, tentando determinar o que faz nacionalistas brancos atraírem atenção, eles precisam necessariamente olhar para a cronologia da vida das pessoas”, diz Bill Molin, um repórter que cobre há quase quatro décadas crimes de extremistas, incluindo supremacistas brancos.

“E isso pode levá-lo a olhar para uma pessoa bem normal até como elas se envolvem neste tipo de extremismo”. O problema, completa ele, é que “algumas vezes, nós [jornalistas] deixamos pessoas envolvidas nos movimentos extremistas definir sobre o que eles estão falando sem checá-los”. 

Para jornalistas, especificamente, isso envolve todo mergulho profundo na defesa de reivindicações de superioridade branca. 

O “New York Times” defrontou-se com uma reação imensa de leitores ao perfil escrito pelo chefe da sucursal de Atlanta, Richard Fausset, de Tony Hovater, co-fundador do Partido dos Trabalhadores Tradicionalista, que é vagamente baseado na ideologia Nazista. Fausset escreveu: “Ele é o simpatizante Nazi ao seu lado, educado e discreto em um momento em que as antigas fronteiras da atividade política aceita podem parecer alarmantemente em fluxo. (...) Ele é um grande fã de ‘Seinfeld’”. 

“Caro New York Times: Por favor não normalize a supremacia branca”, gritou uma das reclamações em coro. 

Ao mesmo tempo, outros observadores argumentaram que a matéria de Fausset e a reação a ela ilustravam o que muitos americanos talvez não queiram escutar: que as visões da supremacia branca já foram normalizadas até alguma medida. “A natureza sensacional da identificação de Hovater com o Nazismo alemão obscurece a ordinariedade de seu racismo”, escreve Jamelle Bouie, da Slate. 

Em uma pesquisa respondendo à manifestação de Charlottesville “Unite the Right”, em agosto, o Washington Post descobriu que um de cada dez americanos acreditam que não há problemas em sustentar visões neonazistas, o que é sustentado por quase dois de cada dez apoiadores convictos de Trump. Ex-analista de contraterrorismo do Departamento de Segurança Interior dos EUA, Daryl Johnson estima o número real de supremacistas brancos nos Estados Unidos em “700 mil”. 

Enquanto isso, 71% dos americanos acreditam que o politicamente correto silenciou discussões importantes que o país deveria ter, de acordo com uma pesquisa de outubro promovida pelo libertário Instituto Cato. 

“É verdade que a maioria das pessoas nos Estados Unidos não gosta dessas visões. Elas as acham desagradáveis e ficam desconfortáveis em ouvi-las”, diz Heidi Beirich, do Southern Poverty Law Center. “Mas, lamento, elas importam agora”. 

O jornalista do “Guardian” Gary Younge publicou em outubro uma entrevista com o fundador do National Policy Institute Richard Spencer, na qual ele afirmou que negros americanos se beneficiaram da escravidão, uma vez que seus descendentes estão melhor agora do que estariam nas sociedades africanas das quais eles foram sequestrados, um ponto com o qual Goad concorda. Essa afirmação foi desmentida várias vezes por historiadores e também ignora as disparidades em níveis de economia, educação e encarceramento – assim como evidencia os efeitos persistentes do racismo na saúde de afro-americanos. Em um vídeo que se tornou viral, Spencer também sugere surpreendentemente que Younge não poderia ser britânico, porque ele é negro. 

Younge escreveu mais tarde que seu primeiro instinto não foi presentear Spencer com o alcance do Guardian. Mas, no fim, escreve ele, a influência de Spencer, ao contrário da Ku Klux Klan, parecia nova – e, portanto, notícia. 

“Parecia que essas ideias de extrema-direita haviam viajado bastante rapidamente das margens para o centro, e estavam infectando o corpo político dos EUA nos níveis mais altos”, escreve Younge. “Se essas pessoas estavam, como elas clamavam, fornecendo o suporte intelectual para a administração Trump, então parecia para mim que é mais perigoso ignorá-los do que entrar em contato e talvez expô-los”. 

Secessão pacífica 

Autodescrito como prole do “lixo urbano da Filadélfia e escória rural de Vermont”, Goad é mais conhecido por seu “Manifesto”, publicado pela editora Simon & Schuster em 1997. Naquele ano, ele escreveu que a ascensão da identidade branca se tornaria “desagradável e politizada de maneiras que fariam você se contorcer”. 

Sua defesa para o que ele chamou pejorativamente de “crioulos brancos” remete a “ser uma criança católica rebelde: Não tente jogar a culpa em mim por algo que eu não sou culpado”, diz. “Enquanto criança, eu sentia a malícia naquilo: [As freiras] não estavam fazendo aquilo pelo meu bem. Elas eram apenas malvadas”. 

De sua parte, Goad diz expressamente que ele não advoga, assim como Spencer, por um etno-estado branco, ainda que ele observe que “não vejo a humanidade com bons olhos, então em último caso um movimento de secessão pacífico seria provavelmente a melhor coisa para todos os envolvidos”. 

Ainda assim ele também diz que é impactado, algumas vezes com dor, pelos efeitos reais da sua prosa. As mortes por suicídio de três neonazistas britânicos em 1996 foram ligadas à publicação de uma edição sobre suicídio de seu fanzine “Answer Me!”. 

Um deles, uma jovem mulher, ligou para Goad antes de sua morte querendo saber se sua caixa postal era a mesma. 

“Ela era uma garota realmente depressiva, e na semana seguinte repórteres me perguntavam ‘O que você tem a dizer sobre os três jovens britânicos que se mataram?’ Eu estava chorando em segredo. Se soubesse que ela era suicida, eu teria dito ‘apareça, nós temos um sofá’”, ele diz. “Meu ponto [com a edição] era que pessoas que são suicidas ao menos têm um insight sobre a condição humana e não deveriam se matar”. 

Goad vive hoje em Stone Mountain, na Geórgia, o local de nascimento da Ku Klux Klan moderna – um lugar em que oito de cada dez residentes são afro-americanos. Ele é divorciado e divide a casa com Bam-Bam, seu pitbull mestiço. Em um encontro em 2016 com este repórter, ele sorriu enquanto mostrava fotos do filho em idade escolar. Goad também é um cantor de country que faz shows ao vivo ocasionais. 

Para ter uma ideia do estilo de discurso de Goad, ele defende uma coluna aviltante no webzine libertário “Taki’s Magazine” do começo de 2017 em que ele lista “nachos” como a invenção mexicana mais importante ao observar que a Wikipedia lista apenas sete inventores mexicanos, mas 374 britânicos. Se jornalistas progressistas podem escolher os fatos para influenciar a opinião pública, Goad sugere, então ele também pode. Mas críticos dizem que esse tipo de escolha de informação também encobre uma reivindicação mais insidiosa: de que os chamados “Dreamers”, pessoas trazidas para os EUA enquanto crianças, são geneticamente e culturalmente inferiores do que brancos, o que ele acredita significar que sua presença nos EUA pressagie um futuro nivelado por baixo. 

“As ideias complicadas de Goad sobre raça se mostram um perigo real porque seus próprios seguidores, assim como tantos na alt-right, dirão que não são racistas quando suas ações claramente lhe dirão o contrário”, disse o editor da revista de esquerda “Counter-Punch”, Joshua Frank, ao “Willamette Week” em novembro passado. 

Da parte de Goad, ele diz: 

“Eu não acredito que as pessoas sejam iguais, mas tudo depende do que você faz com essa crença. Por 25 anos eu tenho questionado a igualdade e isso nunca me fez querer machucar ninguém, exceto as pessoas que querem me colocar na cadeia por pensar desse jeito”.

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