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Deus pede a Noé que construa uma arca porque ele vai destruir o resto da humanidade com um grande dilúvio | Pixabay
Deus pede a Noé que construa uma arca porque ele vai destruir o resto da humanidade com um grande dilúvio| Foto: Pixabay

Podemos aprender alguma coisa com furacões, tempestades e inundações? 
As pessoas vêm se perguntando isso há milhares de anos e contando histórias que tentam dar sentido aos desastres naturais. Todos os mitos sobre inundações são incrivelmente parecidos.

O pesquisador John D. Morris coletou mais de 200 dessas histórias de culturas antigas da China, da Índia, dos nativos americanos e de outros povos. Ele calcula que em 88% delas há uma família favorecida. Em 70%, seus integrantes sobrevivem à inundação em um barco. Em 67%, os animais também são salvos na embarcação. Em 66%, a inundação acontece por causa da maldade humana, e, em 57%, o barco acaba parando no topo de uma montanha. 
 
Os autores desses mitos buscavam dar sentido a forças vastas e poderosas. Eles estavam tentando descobrir em que tipo de mundo viviam. Seria um mundo cheio de caprichos, onde cidades são destruídas sem qualquer motivo? Ou talvez fosse um mundo justo, mas implacável, onde civilizações são aniquiladas por sua iniquidade. 
 
A história mais famosa, claro, é o conto bíblico de Noé. No começo, a raça humana está vivendo sem lei, de maneira má e violenta. Mas existe um homem justo, Noé. Deus pede a Noé que construa uma arca porque ele vai destruir o resto da humanidade com um grande dilúvio. 
 
O que Noé diz quando ouve isso? Nada. Abraão protestou com Deus quando a cidade de Sodoma estava ameaçada de destruição. Moisés protestou quando Deus se preparou para prejudicar os hebreus. Mas Noé ficou quieto. Ele não tentou salvar seus vizinhos ou argumentar com seu Deus.

Com frequência, rabinos e eruditos questionam a atitude de Noé. "Ele não tem curiosidade, não sabe e não se importa com o que vai acontecer com os outros. Ele sofre de uma incapacidade de falar de forma significativa com Deus ou com seus semelhantes", escreve Avivah Gottlieb Zornberg.

"Noé era justo, mas não era um líder", observa o rabino Jonathan Sacks. Um líder assume a responsabilidade por aqueles à sua volta e pelo menos tenta salvar o mundo, mesmo que as pessoas sejam amorais para de fato ouvir o que ele tem a dizer. A integridade moral demanda ação positiva contra o mal. Em contraste, Noé opta por se retirar do mundo corrupto para se manter puro.
 
Noé e sua família entram na arca, e ele cuida gentilmente dos animais. Então, a chuva para, e é hora de sair e refazer a terra. 
 
O que Noé faz então? Mais uma vez, fica quieto. Ele não age. Ele se senta na arca por mais sete dias de braços cruzados. Está esperando a permissão de Deus para desembarcar. 
 
Mais uma vez, os rabinos criticam a passividade de Noé. Não é preciso permissão para construir o mundo. Você apenas vai lá e faz. "Se estivesse lá, eu teria arrebentado as portas da arca e me arrancado de lá", diz o rabino Judah bar Ilai, estudioso do segundo século. 
 
Então, Deus faz um pacto com Noé. Ele lhe transmite as leis morais e diz a Noé para sair e recriar. Noé parece fugir da responsabilidade. Talvez ele tenha a culpa do sobrevivente. Ele fica bêbado. Seus filhos o encontram nu e desmaiado. 
 
Noé é um homem bom, mas sua história é uma lição sobre os perigos da obediência cega. O Deus da Bíblia hebraica quer respeito pela autoridade e deferência à lei, mas não deseja uma rendição pacífica. 
 
Como escreve Sacks: "Uma das características mais estranhas do hebraico bíblico é que – apesar de a Torá conter 613 comandos – não há uma palavra para 'obedecer'. Em vez disso, o verbo que a Torá usa é shema/lishmoa, ou seja 'ouvir, participar, entender, internalizar, responder'. Essa palavra é tão característica que, na verdade, a Bíblia do rei James precisou inventar uma palavra equivalente, 'hearken' (dar ouvidos, prestar atenção)".  

Houston, no Texas, sob as águas durante a inundação provocada pelo furacão HarveyTHOMAS B. SHEA/AFP

Hoje, vivemos em meio a muitas tempestades. Algumas, como o Harvey e o Irma, são naturais. Outras são feitas pelo homem. 

As pessoas continuam boas em agir individualmente para enfrentar os problemas. Veja quantos moradores de Houston correram para ajudar seus vizinhos. Mas temos problemas com ações coletivas, com a construção de novas instituições, ou a revitalização de antigas, que são grandes o suficiente para lidar com os maiores desafios. 
 
Isso acontece porque temos dificuldade em pensar sobre a autoridade. Todo mundo parece ter uma mentalidade de não pertencer. A desconfiança social está atingindo recordes. Muitos parecem navegar entre o cinismo barato anti-establishment, de um lado, e uma obediência partidária cega de outro. 
 
A resposta é a mentalidade de "dar atenção" descrita por Sacks. É aí que Abraão tem sucesso e Noé falha. Abraão escuta profundamente Deus e espelha sua identidade na Dele, mas expande a ideia do pastor. 
 
Dar atenção é ser fiel, porém responsável, responder à autoridade justa, mas também à chamada da consciência individual, trabalhar dentro do sistema, mas como uma força corajosa e criativa. 
 
As tempestades são convites para recriar o mundo. Isso acontece com sucesso apenas quando indivíduos fortes estão dispostos a se entregar a instituições coletivas. 

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