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Protesto de ativistas contrários ao consumo de carne em Hollywood, Califórnia, em outubro de 2017 | Mark Ralston/AFP
Protesto de ativistas contrários ao consumo de carne em Hollywood, Califórnia, em outubro de 2017| Foto: Mark Ralston/AFP

Um bilhão de animais são mortos a cada ano em matadouros do Reino Unido. São vacas, ovelhas, cabras, porcos e galinhas que servem como base da alimentação dos britânicos. O número foi compilado, a partir de dados oficiais do governo, pela organização Vegetarians International Voices for Animals (Viva), que luta contra o abate de animais e estima que pelo menos 50 bilhões de animais sejam mortos a cada ano no mundo por razões alimentares. Como comer carne é uma preferência global, a expansão do desenvolvimento econômico em países periféricos tende a ampliar ainda mais esse número no futuro. Assim, estaria o destino dos animais domésticos selado para servir cada vez mais apenas como alimento de seres humanos?

Em 1798, o clérigo e demógrafo T. R. Malthus fez uma previsão catastrófica de que a sociedade britânica iria colapsar de fome, uma vez que as melhores terras agricultáveis do país já haviam sido ocupadas e, assim, o crescimento da produção de alimentos, que se dava de forma linear, não conseguiria acompanhar o crescimento da população, que ocorria de forma geométrica. A lógica de Malthus parecia fazer sentido e já na época causou alarme em muita gente. Só que ele estava errado. A história demonstrou que as previsões malthusianas nunca se cumpriram, pois ele deixou de considerar um aspecto crucial: o desenvolvimento tecnológico. Ainda que a população crescesse, a tecnologia permitiu que a produtividade fosse sempre ampliada, possibilitando produzir mais em menos espaço e em condições menos favoráveis. Assim, ao longo do tempo, a tecnologia inverteu a lógica malthusiana e o crescimento da produção se mostrou, na realidade, maior que o crescimento populacional.

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Mesmo tendo se demonstrado equivocado, o pensamento malthusiano permanece vivo. Por exemplo, não são raros os casos de ambientalistas que profetizam, de forma alarmista, a ideia de que se o consumo de recursos naturais seguir a linha de tendência atual, em pouco tempo o planeta estará inabitável. Mas, assim como em Malthus, esse pensamento só olha a tendência de consumo, ignorando o fato de que a tecnologia vem permitindo, de forma exponencial, produzir cada vez mais com menos, a partir de soluções sustentáveis e utilizando energia limpa e renovável - alternativas cujo desenvolvimento se dá de maneira mais acentuada do que os índices de consumo.

De forma similar, a tecnologia pode ser também o ponto chave na defesa dos “direitos” dos animais - e se tornar a solução para o dilema ético sobre se é correto ou não criar e matar outros seres para satisfazer as necessidades nutricionais dos humanos. O filósofo Yuval Noah Harari, pensador contemporâneo autor do polêmico best seller global Sapiens – uma breve história da humanidade, chegou a afirmar que o tratamento dado aos animais pela agroindústria é um dos maiores crimes da história humana. Em seu segundo livro, Homo Deus - uma breve história do amanhã, Harari quer fazer acreditar que em pouco tempo a humanidade resolverá os principais problemas que acompanharam o homem desde o início de sua trajetória no planeta - as guerras, a fome e a pobreza - e que a tecnologia transformará o ser humano em um ser essencialmente imortal, cada vez mais híbrido com elementos artificiais. Para Harari, o próximo desafio do ser humano é justamente criar soluções que lhe permitam deixar de depender de outros seres para sobreviver. E a tecnologia é o caminho para isso.

A verdade é que esse futuro já é uma realidade. Um movimento relevante está sendo delineado, por exemplo, por um conjunto de financiadoras de startups nos EUA - inclusive com o suporte de nomes como Bill Gates, da Microsoft, e Eric Schmidt, do Google - que estão apostando em empresas como Cockscomb, Impossible Foods, Memphis Meats, Beyound Meat, Clara Foods e SuperMeat. Essas empresas têm um objetivo comum: produzir carne artificial. Atualmente, a estratégia mais pesquisada é a de criar carne em laboratório a partir de células-tronco retiradas de um animal vivo. De acordo com esses empreendedores, o processo é semelhante ao da retirada de medula óssea, sem qualquer sofrimento para o bicho original. Em outra frente, a Hampton Creek Foods investe em tentar produzir ovos artificiais a partir de 15 tipos diferentes de plantas.

O próximo passo para tornar essas alternativas viáveis é conseguir produzir em escala, a um custo menor, para se aproximar aos preços da indústria convencional e, assim, conseguir competir com ela. Considerando o número de empresas envolvidas e as tendências das pesquisas nos últimos anos, a possibilidade de haver carne de laboratório disponível em qualquer supermercado está muito próxima de se tornar realidade.

Quando o pragmatismo e as boas soluções são deixados de lado e a defesa de bandeiras se torna puramente ideológica, o resultado concreto passa a ser menos importante: não interessa o número efetivo de animais salvos, vale mais o julgamento moral questionável sobre as ações dos outros.

Quando as primeiras amostras de hambúrgueres artificiais foram apresentadas ao público, em 2013, a reação inicial - e até instintiva - dos adeptos do vegetarianismo foi de recusa. Numa enquete feita pelo site The Vegetarian Society, quatro em cada cinco participantes disseram que sequer iriam provar a novidade. “Por que enfrentar tantos problemas e custos para substituir um alimento que simplesmente não precisamos?” questionou à época Lynne Elliot, executiva chefe da Vegetarian Society. Outra entidade, a também britânica The Vegan Society, em 2013 avaliou que a carne artificial iria apenas “perpetuar um mito de que a carne é e será sempre intrinsecamente desejável”.

Hoje a visão das sociedades de vegetarianos é mais pragmática. Dominika Piasecka, porta-voz da Vegan Society, disse à Gazeta do Povo que nem todos desejam se tornar veganos e, por isso, a carne cultivada em laboratório pode fornecer uma alternativa que não envolva sofrimento animal. “Mais cedo ou mais tarde, a crescente população mundial será forçada a comer menos carne porque a agricultura industrial não é sustentável. Em vez de esperar que isso aconteça, é mais benéfico para os animais e para o planeta tentar encontrar uma alternativa para as pessoas que não estão prontas para serem veganas no momento”, ponderou.

Se no tema alimentar o pragmatismo lançou luz à discussão entre os vegetarianos, nos círculos do conservacionismo ambiental a intransigência dos ideólogos parece ser mais acentuada - e a resistência a soluções tecnológicas e de mercado mais fortes, mesmo quando se trata de resolver problemas concretos que causam impacto ao meio ambiente. Um exemplo é o da Pembient, startup de biotecnologia que, a partir de estudos genéticos, desenvolveu chifres artificiais idênticos aos naturais, retirados de rinocerontes e vendidos em vários países orientais como remédio ou mesmo como objeto de decoração.

A estratégia da empresa é tentar inundar o mercado com o produto, baixando o preço e, assim, extirpando do mercado, por meio da concorrência, os caçadores ilegais. Os chifres serão fabricados com impressoras 3D, com recursos levantados por meio de financiamento coletivo, ou crowdfunding: um conjunto de pequenas doações feitas pela internet por qualquer pessoa ao redor do mundo.

Trata-se de uma estratégia econômica clássica: diminuir os incentivos aos caçadores ilegais, a partir de uma maior oferta de produtos substitutos. Durante 20 anos, a África do Sul usou uma solução de mercado para combater o tráfico de chifres de rinoceronte. Permitiu que fazendeiros criassem e comercializassem legalmente chifres de rinocerontes que eram sedados e tinham seus chifres cortados. A estratégia fez com que a população de rinocerontes do país fosse quadruplicada no período.

Só que as imagens de rinocerontes sem chifres não agradaram os olhos do mundo ocidental. Assim, sob pressão de ambientalistas e defensores de animais, o governo sul-africano mudou de ideia e voltou a proibir a criação de rinocerontes em cativeiro. Resultado: a caça ilegal ressurgiu, o número de rinocerontes selvagens mortos se multiplicou e a espécie voltou a ficar ameaçada de extinção. Na prática, o purismo teórico dos defensores dos animais acabou prejudicando justamente aqueles que julgavam defender.

Em entrevista à ReasonTV, no ano passado, Masha Kalinina, especialista em políticas de comércio internacional da associação americana The Humane Society, argumentou contra a re-legalização da criação de rinocerontes e também contra o comércio de chifres artificiais. “Isso é absolutamente perigoso para os rinocerontes e para sua sobrevivência”, disse. Kalinina ressaltou que já houve uma experiência parcialmente legal de comércio de marfim de elefantes e, segundo ela, isso fez renascer a indústria de escultura desse material na China: “A demanda aumentou quando a oferta aumentou”, afirmou a ativista. “Nós realmente vamos domesticar todos os animais neste planeta para que possamos continuar saciando essa sede de sangue ao consumir produtos da vida selvagem?”, questionou. Para ela, o caminho para a preservação dos rinocerontes é o do convencimento. Assim, o foco da The Humane Society é de longo prazo: estabelecer parcerias com governos asiáticos para realizar campanhas de conscientização nesses países sobre a importância da preservação.

A mesma visão tem a organização PETA - People for the Ethical Treatment of Animals. “Como algumas pessoas ainda acreditam no mito de que o chifre de rinoceronte de alguma forma tem valor medicinal, compartilhamos a preocupação de outras organizações de que os chifres cultivados em laboratório não reduzirão a demanda pelo produto real e, em vez disso, levarão ao abate de mais rinocerontes”, disse a vice-presidente da organização, Colleen O’Brien. “A fim de salvar a vida desses animais, apoiamos focar em informar o público, defender contra caçadores ilegais e proteger o habitat”, completou.

Outras entidades têm posicionamentos mais flexíveis, pois entendem que talvez os animais não possam esperar os resultados (incertos) das estratégias de longo prazo. Para Juliet Gellatley, fundadora da organização britânica Viva!, é preciso encarar essas questões de forma pragmática. “Para mim seria mais fácil adotar uma posição politicamente correta e dizer que criar rinocerontes para retirar seu chifre é simplesmente algo errado. Mas temos que ser pragmáticos ao analisar esses casos. Se essa solução de fato significar salvar a vida de muitos rinocerontes, temos que entender como algo positivo”, ponderou Gellatley, em conversa com a reportagem.

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Quando o pragmatismo e as boas soluções são deixados de lado e a defesa de bandeiras se torna puramente ideológica, o resultado concreto passa a ser menos importante: não interessa o número efetivo de animais salvos, vale mais o julgamento moral questionável sobre as ações dos outros. Assim, fundamentados em princípios controversos e discutíveis, de caráter até emocional, perdem-se soluções baseadas em princípios mais razoáveis, nesse caso, protetivo para os animais. Em entrevista ao site italiano Il Foglio, o filósofo Leonardo Caffo reconhece que a discussão sobre a carne artificial é mais importante do ponto de vista simbólico. Para ele, o problema do consumo da carne in vitro é que, assim, “não se sai do simbolismo carnista”. Sob essa ótica, a discussão simbólica se aproxima de uma visão ideológica, quase religiosa.

No livro The Righteous Mind, o psicólogo americano Jonathan Haidt demonstra que o ser humano é inerentemente religioso. Por meio de estudos empíricos, ele diz ter constatado que direita e esquerda são igualmente religiosas, apenas tenderiam a tratar conceitos distintos como “puros” e “sagrados”. Enquanto a direita prefere “santificar” elementos como Deus, ícones religiosos, padres, pastores, santos, a nação ou a bandeira, a esquerda também “santifica” elementos como o meio ambiente, os animais, a comida orgânica, o bom selvagem ou até mesmo a pobreza.

Como escreveu G. K. Chesterton: “Quando se deixa de acreditar em Deus, passa-se a acreditar em qualquer coisa”. É uma ideia sutil, mas que se reverbera até mesmo na defesa purista por parte de ambientalistas. Tradições que sacralizam animais são exemplos desse fenômeno, como o caso das vacas na Índia (não por acaso meca de algumas vertentes hippies e new age), que vagam aos milhares pelas ruas - magras, famintas, fonte de doenças e de infeções, um verdadeiro problema de saúde pública. Sob o olhar religioso, as consequências reais são ignoradas - o que importa é que a vaca é sagrada e intocável por definição.

Mas se há um dilema ético em não usar os animais apenas para satisfazer as necessidades alimentares dos seres humanos, muito menos deveriam servir para satisfazer as necessidades emocionais ou afetivas das pessoas. Para os animais, o ideal mesmo seria sobreviver.

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