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Tenda para escrever uma carta para Lula | Paulo Polzonoff
Tenda para escrever uma carta para Lula| Foto: Paulo Polzonoff

Subir a rua Dr. Barreto Coutinho, no Santa Cândida, em Curitiba, é como entrar num portal cósmico que, no tempo, leva à Rússia pré-revolucionária de 1917 e, no espaço, à Venezuela de ontem mesmo. Ali no entorno da sede da Polícia Federal, onde está preso o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, cerca de mil pessoas parecem viver o sonho bolchevique. 

Os manifestantes acampados num terreno baldio à margem da via rápida são hostilizados o tempo todo pelos motoristas. Os xingamentos são respondidos com insultos que parecem não ter a ver com o ambiente de correção política que impera no Acampamento Livre. 

Subo a ladeira e, no cruzamento com a rua Guilherme Matter, reconheço de longe a voz grave da deputada Maria do Rosário (PT-RS). Ao redor dela, militantes profissionais agitam bandeira. Alguém atrás de mim manda “juntar mais para parecer que tem muita gente na televisão”. Ouço o discurso extremamente radicalizado, que fala da ligação do juiz Sérgio Moro com o PSDB, do golpe dado por Aécio (que não soube perder as eleições de 2014), de Lula como defensor dos fracos e oprimidos contra a elite burguesa que quer ver o extermínio das minorias. Ou coisa assim. 

Ao meu lado, uma senhora chora. Maria tem um sobrenome irreproduzível porque, por questões de segurança, não me atrevi a fazer anotações durante a visita ao acampamento. “Choro de emoção, de raiva, de revolta. A gente tinha que invadir lá e tirar ele”, me diz a velhinha que tenta se proteger do sol forte com uma bandeira do MTST na cabeça. 

A deputada Maria do Rosário termina sua fala, passa pelo cordão de isolamento protegido por seguranças do MST e vai dar entrevista para a mídia que havia pouco ela considerava golpista e indigna de crédito. Os manifestantes se dispersam e guardam as bandeiras que agitavam só para, novamente, aparecer na televisão. 

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Um capitalismo peculiar

A toda hora, carros param nas ruas fechadas pelo policiamento para entregar donativos. Há tanta água, papel higiênico e arroz que os sacos alcançavam o teto da tenda da alimentação. É ali que pego meu pratinho plástico para me servir da comida que está sendo oferecida: arroz, feijão preto, um tutu de aparência estranha e repolho cozido. Enquanto tento engolir, observo os militantes equilibrarem quantidades inacreditáveis de comida nos frágeis pratinhos plásticos. 

Apesar de anticapitalista, o acampamento prospera com uma economia muito particular. A militante do PCO (Partido da Causa Operária) vende camisetas a trinta reais – o que me faz calcular mentalmente a mais-valia envolvida no negócio. Camisetas com o rosto de Lula e uma frase com erro de português nas costas são mais baratas e custam R$25. Peço para pagar R$20, mas não há espaço para pechincha: “R$25 ou nada feito”, me diz a moça, segurando um maço razoável de recursos. 

De repente, um princípio de tumulto. A Secretaria Executiva do acampamento determina que não haja ambulantes na área do acampamento. Um senhor que vendia cachorros-quentes tem de retirar toda a sua aparelhagem, sob ordens não exatamente educadas da tal “Disciplina MST”. A moça que vende um apetitoso X-Pernil reclama que é apoiadora da causa. “Até quando teve bombardeio a gente pôde trabalhar e agora não pode?”, reclama ela para ninguém em específico. 

“Ainda bem que o Lula tem ar-condicionado” 

Ao meio-dia, o termômetro do meu celular marca 27 graus, mas parece bem mais. As sombras são escassas e os militantes se amontoam sob as tendas. O único lugar vago que encontro é na esquina das ruas Franco Giglio e dr. Barreto Coutinho. Logo entendo por que os manifestantes não aproveitam as sombras das árvores na rua sem saída. É que os banheiros químicos ali instalados exalam um odor que é uma mistura de dejetos humanos com noites dormidas em barracas, sem banho no horizonte próximo. 

Ao meu lado, duas senhoras negras conversam sobre racismo. As discussões que se ouvem em todo o acampamento, aliás, são extremamente politizadas e marcadas por uma notável dissociação dos fatos reais (“Lula lutou contra o capitalismo financeiro”) – quando não por uma incrível associação distorcida dos mesmos fatos reais (“Joaquim Barbosa condenou José Dirceu no Mensalão só para virar presidente”). 

As senhoras, usando camisetas da APEOESP (Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo), perguntam quem sou eu e qual minha “entidade”. Quando o proselitismo dá lugar ao cansaço, uma das senhoras tira o tênis e reclama do calor. Acho que é uma boa hora para perguntar sobre a remuneração que os militantes recebem para demonstrar tanto carinho pelo ex-presidente. Ela desconversa, saindo-se com um revelador “ninguém faz nada de graça”. 

É a vez de um homem cuja presença eu não tinha notado perguntar de onde eu sou e o que faço ali. O tom é de alguma hostilidade. Ele olha demoradamente para meu celular (estou sendo paranoico?) e me pergunta se sou de Curitiba. Alheio à minha afirmativa, ele comenta: “Não existe cidade mais coxinha do que Curitiba. Parece que escolheram a dedo o lugar da Lava-jato”. 

Eu rio e falo do frio prometido para os próximos dias e dessas outras coisas triviais que sempre aproximam dois desconhecidos. “Passei frio essa noite. Mas a firma não pagou e a gente teve que dormir no ônibus”, me confidencia ele. “Firma?!”, pergunto, ao que ele esclarece: “O sindicato, né?”. Despeço-me de Mário (sem sobrenome, pelos motivos já expostos) reclamando do calor, só para ouvir de volta: “Ainda bem que o Lula tem ar-condicionado lá”.  

O choro sincero da cebola 

Dou uma última volta por todo o acampamento, anotando mentalmente as impressões. Onde havia uma fila de esfomeados, a turma da limpeza se reúne na sarjeta para lavar os utensílios e panelas. Ali perto, uma turma de militantes jovens montou uma biblioteca coletiva (não muito procurada). Os títulos disponíveis vão de Nitzsche até O Poder Cósmico da Mente e O Pequeno Príncipe. Mais adiante, um grupo do Levante de São Paulo continua a pintar uma faixa com os dizeres “Todo Poder ao Povo”. Passei três horas no acampamento e, quando fui embora, eles ainda não tinham terminado a faixa. 

Algumas barracas (a maioria delas instaladas sobre as calçadas, para o desespero dos moradores da região) exibem poesias contra o que eles chamam de golpe. A tenda que oferece papel e envelope para que os militantes escrevam cartas para o ex-presidente Lula estava às moscas. 

Já na saída, reencontro a entusiasmada deputada Maria do Rosário. Ela está diante de uma cozinha comunitária, vestindo uma touquinha de pano para ajudar no preparo dos alimentos. Ao meu redor, todos admiram a política que, aparentemente, vai pôr a mão na massa pela causa. Estou cercado por pessoas usando camisetas com suas lutas – tem espaço até para uma tal “Democracia Corinthiana Contra o Golpe”. Lá de dentro da cozinha improvisada, ouço risadas. É Maria do Rosário, fazendo piada com uma militante, uma senhora negra, a quem coube a ingrata tarefa de cortar cebolas. 

“Esse choro é pelo Lula, não pela cebola”, diz a deputada.

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