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Repressão argentina foi uma das mais cruéis entre as ditaduras latino-americanas da segunda metade do século 20. | Daniel Garcia/AFP
Repressão argentina foi uma das mais cruéis entre as ditaduras latino-americanas da segunda metade do século 20.| Foto: Daniel Garcia/AFP

Ele integrou uma das guerrilhas mais atuantes durante a última ditadura argentina (1976-1983) e tem em sua família casos que representam as principais violações dos direitos humanos cometidas pelos militares: mãe vítima da Operação Condor (plano de ação conjunta entre os governos militares do Cone Sul), irmã desaparecida e sobrinho roubado ao nascer. A destruição ao seu redor é grande, mas ele garante que jamais, apesar do treinamento realizado nos anos em que integrou os Montoneros – o braço armado da esquerda peronista –, pensou em fazer justiça com as próprias mãos.

Sua arma, garante o fotógrafo Gustavo Molfino, é uma câmera, com a qual já conseguiu que um ex-militar acusado de crimes de lesa-humanidade na província de Tucumán perdesse o benefício da prisão domiciliar. Hoje Gustavo tem outro ex-repressor na mira e está muito perto de reunir o material necessário para denunciá-lo por ter excedido os limites impostos pela Justiça. Estima-se que atualmente cerca de 518 ex-militares estejam presos em suas casas, e a missão de Gustavo, junto com outros colegas, é garantir que cumpram as regras estabelecidas pelos tribunais.

A recente decisão da Corte Suprema de Justiça que favoreceu um ex-repressor com a aplicação da chamada “Lei do 2x1” (que permite a redução de condenações) levou a sociedade argentina a organizar marchas e deixar claro que não admite, de forma alguma, conviver com militares que cometeram crimes contra a humanidade. Nesse contexto, o trabalho de Gustavo, que é fotógrafo no Congresso Nacional, ganhou ainda mais relevância. “Não suportaremos viver rodeados de pessoas que mataram, torturaram, sequestraram crianças e estupraram mulheres. Essas pessoas não têm o direito de sair na rua”, afirmou o fotógrafo.

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Gustavo fala sobre seu presente e passado com uma tranquilidade que assombra, ainda mais quando a conversa chega a detalhes cinematográficos de uma vida marcada pela clandestinidade e a morte. “Para nós, familiares das vítimas, ver um repressor caminhando com total impunidade é um tapa na cara”, disse Gustavo, que uniu-se aos Montoneros em 1978, quando já estava exilado em Paris junto com a mãe e alguns de seus irmãos. Sua função era falsificar passaportes e transportar dinheiro e outros recursos escondidos, por exemplo, em jogos como tabuleiros de xadrez.

Prisão domiciliar

Sua primeira vitória na cruzada contra ex-militares foi há três anos, quando, depois de seis meses de intensa e silenciosa vigilância, conseguiu várias fotografias mostrando que o ex-repressor Jorge Gerónimo Capitán, ainda em processo de julgamento em Tucumán, caminhava mais de dez quarteirões no Bairro Norte portenho. O limite era apenas rodear o quarteirão onde morava. “Não é fácil, porque temos de ter muitas fotos, em diferentes momentos. Se for uma só, eles inventam qualquer desculpa, como ir ao médico”, contou o fotógrafo, que há um mês está seguindo outro ex-militar, cuja identidade preferiu não informar.

Gustavo está cumprindo uma função que deveria ser exercida pelo Estado, apontou o advogado Pablo Llonto, encarregado de 260 processos sobre crimes de lesa-humanidade. Ele, junto com outros 150 advogados argentinos à frente de casos envolvendo a última ditadura, acaba de apresentar uma denúncia à Corte Inter-Americana de Direitos Humanos (CIDH) pela “lentidão da Justiça argentina”. “Todos os meses morrem genocidas, assim como pais e mães de desaparecidos”, lamentou Llonto.

O advogado lembrou que, apesar da realização de dezenas de julgamentos nos últimos anos, desde que foram anuladas as leis de Obediência Devida e Ponto Final (em 2006), calcula-se que foram julgados entre 15% e 20% dos casos. Llonto lembrou, ainda, que existem 70 ex-militares foragidos.

“O que Gustavo faz é impressionante, ele tem fotografias que são documentos históricos”, destaca Llonto. Nos últimos anos, o fotógrafo fez retratos inéditos de ex-militares até há pouco tempo desconhecidos, e sua meta é criar um registro nacional de repressores. “Sempre fotografam os familiares e esquecem dos rostos das pessoas que se sentiram, e foram, donas da vida e da morte durante muitos anos”, disse Gustavo, que até hoje conserva manias e aprendizados de seus anos de guerrilha. Se vai a um bar, por exemplo, nunca se senta de costas para a porta. Durante a entrevista, num pequeno café ao lado do Congresso, percebeu quando “um ex-agente do batalhão 601 de inteligência do Exército” entrou no lugar.

Operação Condor

Quando é perguntado por seu compromisso com os processos judiciais, ele lembra da última conversa telefônica que teve com sua mãe, Noemi Ester Gianetti, minutos antes que ela, que também uniu-se aos Montoneros no exílio, fosse sequestrada em Lima. “Salve-se você, que ainda tem toda a vida pela frente”, disse Noemi ao filho, em 12 de junho de 1980. Ambos estavam participando de uma operação secreta num país que caminhava para sair da ditadura. Uma companheira de Gustavo foi presa e ele sabia que terminaria revelando o endereço das casas alugadas em Lima (o combinado era suportar entre duas e três horas de torturas antes de dar informações). Quando estava chegando ao lugar, o fotógrafo viu carros e homens armados e telefonou de um orelhão para sua mãe, que estava na casa. Foi o último contato entre ambos.

Gustavo conseguiu escapar, mas Noemi, segundo reconstruiu a família anos depois, foi presa, levada primeiro para a Bolívia e posteriormente envenenada num hotel em Madri. “A ditadura argentina contou com a colaboração dos militares peruanos e, quando a situação ficou fora de controle, foi orientada pelo governo americano a bolar uma operação para que o corpo de minha mãe aparecesse sem vida, num lugar neutro, onde existissem muitos exilados argentinos. Por isso Madri”, explica Gustavo. O caso ajudou a condenar o ex-ditador chileno Augusto Pinochet (que governou entre 1973 e 1990), considerado um dos mentores intelectuais da Operação Condor, na Espanha.

Já no fim da entrevista, seu celular toca. O vizinho do ex-repressor que ele vem seguindo queria saber se já foram reunidas as provas necessárias para fazer a denúncia. “Estamos perto, estamos perto”, respondeu o fotógrafo, que ainda deverá passar algumas horas escondido em seu carro antes de comemorar um novo triunfo.

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