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‘Vingadores: Guerra infinita’ está em cartaz nos cinemas | Chuck ZlotnickDivulgação/Marvel
‘Vingadores: Guerra infinita’ está em cartaz nos cinemas| Foto: Chuck ZlotnickDivulgação/Marvel

Longe de mim ser adepto de teorias da conspiração. A tal revolução gramsciana é, para mim, tão real quanto os Protocolos dos Sábios de Sião ou o plano globalista de George Soros. O que não quer dizer, em absoluto, que eu não acredite num mundo em transformação. Só creio (e uso esse verbo aqui porque talvez se trate de uma questão de fé mesmo) que essa transformação, não necessariamente para melhor, tem mais a ver com pequenas escolhas individuais que, na soma, às vezes se transformam em trevas e, vá lá!, apocalipse. Algo que está além do nosso controle. 

Tudo isso para dizer que saí do cinema depois de assistir ao aguardado (por meu filho, não por mim) Guerra Infinita com um ninho de pulgas atrás da orelha. Por um lado, me perguntava se tinha virado um desses senhorezinhos que escrevem em caixa alta nas redes sociais para dizer que somos todos marionetes controlados por meia-dúzia de poderosos reunidos numa fortaleza construída sob uma ilha vulcânica num ponto remoto do planeta.

Por outro, eu parecia evocar absolutamente tudo o que aprendi na vida (o que não é pouca coisa, modéstia à parte) para chegar à assustadora conclusão de que Guerra Infinita, muito mais do que um simples filme de super-herói para crianças hiperativas e adultos meio abobados, é uma imensa peça de propaganda e ao mesmo tempo um retrato (fidelíssimo em sua esterilidade estética) na nossa época. 

A começar pelo niilismo quase insuportável do filme. Em Guerra Infinita não há nenhuma possibilidade de Deus. O conceito de uma divindade mais complexa é algo que escapa completamente ao roteirista e, por consequência, ao espectador. Há, sim, Thor, mas de elevado o personagem só tem mesmo o nível de testosterona a arrancar suspiros da restrita plateia feminina no cinema.

Na ausência de Deus (ou um deus, qualquer deus), as muitas nuances das grandes questões morais também desaparecem, dando lugar a uma superficialidade que se traduz no mais infantil dos maniqueísmos: o bem contra o mal. É algo que satisfaz o gosto de uma criança de nove anos, mas que deveria provocar somente risadas constrangidas no público adulto.

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Aliás, tenho a impressão de que Guerra Infinita e tudo o que o cinema de super-herói representa no futuro servirão de marcador histórico para o fim deste conceito que vem sendo desbastado há algum tempo: a idade adulta, a maturidade, o auge do ser humano como tal. Além de crianças empolgadas e um pai (eu) preocupado com o que via na tela, a plateia deste tipo filme é composta essencialmente por homens barbados que acreditam estar vendo na telona uma reinvenção dos épicos gregos, quando não de todas as narrativas que compõe o que convencionamos chamar de “cultura ocidental”.

O problema, mais uma vez, é que essa versão condensada de Homero, Bíblia, Gilgamesh e sei lá mais o que acaba também por condensar (no sentido de esmagar que, se não existe, estou inventando agora) o espírito humano. O resultado são adultos idiotizados que, a despeito da experiência em contrário, seguem acreditando que a vida é o tal preto no branco. E fazem escolhas na vida real com base nesse maniqueísmo.

Voltando ao niilismo, em Guerra Infinita não há absolutamente nenhum sinal de espiritualidade. Tudo parece ter sido substituído pela ciência, ou melhor, pela matéria e as sabidas leis que a governam. Os personagens agem, pois, movidos pela matéria. Daí tanta atenção aos superpoderes que, de uma forma ou de outra, enfatizam... as propriedades da matéria. Não há, em nenhum segundo das longas duas horas e meia de projeção, nenhum sinal de humanidade nos personagens. O que parece inconcebível num filme com tanto conflito, mas não é. Porque os conflitos são, novamente, regidos pela matéria, não pelo que é etéreo. É como ver dois lutadores de MMA no octógono: é perda de tempo procurar por uma alma ali.

Visão de mundo infantilóide

Com uma casca de pipoca entre os dentes, fiquei débil e silenciosamente fazendo um paralelo que, tenho certeza, acabará me colocando num hospício. Sei que deveria guardar isso para mim mesmo, mas me recuso.

Então vamos lá: super-heróis são o equivalente contemporâneo dos santos. Só que, veja só, os santos venciam o mal usando de poderes morais, por assim dizer. Honestidade, compaixão, humildade, aquelas coisas que a gente aprende na aula de catequese, até mesmo os que, como eu, nunca fizeram catequese. Enquanto os super-heróis combatem o mal com força, tecnologia e intelecto. Isto é, aquelas coisas que por algum motivo aprendemos a admirar sempre à custa de Deus. Assim, eu diria, num arroubo dramático, que Guerra Infinita representa o auge (ou será que ainda estamos na fase da escalada?) dessa cisão entre homem e divindade, entre o intelecto (e sua filha mais querida, a ciência) e espírito.

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O mais interessante (e assustador, eu diria, mas vai parecer que tenho medo de Bicho-Papão) é o apelo dessa mensagem entre meus contemporâneos. Eles se sentem extremamente à vontade num Universo surgido do puro acaso e governado por deuses amorais e demônios idem, onde a vida é um detalhe que se explica usando termos vagos como “dissipação de energia” e onde a perpetuação da espécie se resume a uma questão genética.

Vale a pena notar ainda que, neste tipo de história, o Universo é algo desprovido de qualquer fascinação e mistério. E até mesmo questões profundamente filosóficas como a existência ou não de vida em outros planetas é um dado que reforça a premissa do acaso e sua amoralidade tão onipresente quanto a matéria escura entre os corpos celestes. Por que e como a imensa maioria dos meus semelhantes consegue encontrar consolo neste tipo de cenário é algo que me escapa. 

Mas repito o que disse no primeiro parágrafo: não sou adepto de teorias da conspiração. Não acredito (não mesmo!) que Stan Lee seja assim um ser poderosíssimo a ponto de impor sua visão de mundo infantilóide a uma plateia igualmente infantil.

Guerra Infinita, assim como todos os filmes do tipo, anteriores ou posteriores, me parece mais consequência de uma mentalidade que vem sendo gestada há décadas (séculos?).

Uma mentalidade apoiada no materialismo e cientificismo, uma espécie de antropocentrismo extremado, a vitória final do intelecto sobre o espírito. Isto é, das coisas que conseguimos compreender e controlar, mesmo que para isso tenhamos de recorrer a homens vestindo carapuças justinhas de nanotecnologia, sobre aquilo cuja compreensão e controle nos são inacessíveis. Neste sentido, Guerra Infinita talvez seja a concretização de um edifício cuja pedra fundamental foi lançada há muito tempo e cujos andares basilares incluem nomes como Darwin, Nietzsche, Marx e Freud. 

Não, não adianta espernear, chorar ou se desesperar. Nem sair nu pelo calçadão da rua XV denunciando a decadência da Humanidade ou coisa assim. Pelo contrário, talvez seja hora de se sentar no lugar mais alto da arquibancada e observar com maravilhamento a incrível marcha dos lêmures. Porque assistir a Guerra Infinita com olhos de quem percebe uma mudança profunda no modo como nós, seres humanos, vemos, entendemos e sentimos o mundo (e, em última análise, a vida) é um privilégio de poucos. Entre eles, eu e você que teve paciência de chegar até aqui.

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