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Semana passada, o noticiário político brasileiro outra vez mais confirmou a máxima que o Brasil não é para amadores. Presos em flagrante delito por ordem da Justiça Federal, parlamentares do Rio de Janeiro foram - ato contínuo - soltos por deliberação da respectiva Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). A decisão vai na esteira do julgado do Supremo Tribunal Federal (STF), que decidiu que medidas cautelares de natureza criminal que implicam no afastamento de congressista de suas funções deve ser objeto de deliberação pelo Congresso Nacional. Naquela ocasião, depois do voto de Minerva da Ministra Cármen Lúcia, decidiu-se que o afastamento do parlamentar do exercício de seu mandato depende da chancela do Legislativo. Foi o que bastou para os deputados estaduais arvorarem-se em revisores da ordem emanada do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2). 

Até o presente instante, deu-se de barato que a Assembleia pode determinar a soltura dos parlamentares. A Constituição do estado do Rio de Janeiro (art. 102, parágrafo 1°) repete preceito da Constituição Federal (art. 53, parágrafo 2º ) relativo ao tema. A regra federal estipula que: “Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão”. A Constituição do estado tem disposição similar. 

Contudo, há um evidente problema aqui. E ele diz respeito ao nosso modelo federativo. O imbróglio reside no fato de a Constituição do estado do Rio de Janeiro não poder condicionar o cumprimento de ordens expedidas pela Justiça Federal, cujas competências decorrem diretamente da Constituição. Na melhor das hipóteses, apenas ordens emanadas do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) poderiam se submeter a essa atuação da Assembleia. No presente caso, parece que o modelo foi subvertido e o rabo está abanando o cachorro. Entra em cena aqui o intrincado problema do modelo federativo brasileiro que muitas vezes traz desafios às nossas instituições. 

Em primeiro lugar, no plano federal há um elemento de simetria que torna a aplicação da regra de aprovação legislativa fácil de ser implementada. Parlamentares têm prerrogativa de foro junto ao STF (art. 102, I, b da CF), competindo à Corte processá-los. Aqui, portanto, em havendo prisão, o STF se articula com o Congresso Nacional. Ou seja, os Poderes da República interagem segundo desenho que lhes deu a Constituição Federal, sem maiores problemas. 

Todavia, o modelo da Constituição vale apenas para o plano federal. No âmbito dos estados, tais regras devem ser instituídas pelas Constituições Estaduais, que estão vinculadas a seguir o modelo da Carta Magna, repetindo-o. São os chamados princípios constitucionais extensíveis pelos quais certas regras relativas à organização Federal são transladas ao plano estadual por meio do Poder Constituinte dos estados. Todavia, esse poder constituinte dos estados é derivado da Constituição Federal e deve respeitar a sua integridade, pena de inconstitucionalidade. 

Daí que a fonte da competência da Alerj não é à Constituição Federal, mas sim a estadual. E aqui é que surge o problema. 

A Constituição do estado não pode criar regras que vinculam a atuação da Justiça Federal, cujas competências são dadas diretamente pela Constituição Federal e que não poderiam ser restringidas por um poder constituinte derivado. É o art. 109 da Carta Magna que define a competência da JF. Este artigo, em seu inciso IV, diz que compete aos juízes federais processar ações penais em que há interesse da União. Ou seja, o interesse da União atrai a competência da Justiça Federal e, por conseguinte, de um sistema jurisdicional autônomo à luz da Constituição Federal. Logo, uma vez presente o interesse da União não há qualquer deliberação em nível estadual que possa afastá-lo, seja em nível Judicial, seja em nível Legislativo. 

A presença de interesse da União cria um elemento especial, que afeta as deliberações à Justiça Federal. Logo, nenhuma competência que não se funde diretamente na Constituição Federal pode restringir a atuação plena da Justiça Federal. Somente a Constituição Federal poderia impor requisito dessa ordem. E ela não o fez. O modelo nela instituído diz respeito apenas ao plano Federal, e não alcança os estados. Por sua vez, os estados embora possam repetir o modelo federal no que se refere à análise da prisão de parlamentares não podem embaraçar o funcionamento pleno da Justiça Federal. 

Diante deste quadro, conclusão possível é apenas uma: não poderia, em circunstância alguma, Assembleia Legislativa Estadual deliberar sobre ordem de prisão expedida pela Justiça Federal. Isso seria evidente quebra do pacto federativo, pois restringiria a competência de um órgão federal constitucionalmente autônomo por meio de decisão legislativa que não tem fundamento de validade diretamente na Constituição Federal. A competência criada pela Constituição do estado não pode superpor-se à competência que se funda diretamente na Carta Magna, como é a da Justiça Federal. 

Nessa linha, a natureza de princípio extensível que se reconhece usualmente ao preceito do art. 53, parágrafo 2º não alcança os crimes em que se verifica o interesse da União. Nesses casos, a norma de competência constitucional assume natureza especial e impede que o Poder Legislativo local delibere sobre o tema. 

Em suma e para concluir, a ordem da Alerj, a par de ser um escárnio político, é usurpação de competência da Justiça Federal. No limite, cuida-se de caso que autoriza a União a intervir no estado para restaurar o pacto federativo e assegurar o cumprimento das normas federais, nos termos do artigo 34, incisos IV e VI.

* Bernardo Strobel Guimarães é advogado, doutor em Direito do Estado pela USP e professor da PUCPR. Camilla Barriunuevo é acadêmica de Direito da PUCPR.

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