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Gazeta do Povo/Arquivo
| Foto: Albari Rosa/ Gazeta do Povo/Arquivo

A polarização política e a intolerância sistematizada à diferença se tornaram um discurso oficial adotado pelo Estado desde o início de 2017. Este é o caso das políticas sociais de Curitiba, em franco processo de desmonte, e das políticas sobre drogas, em nível nacional, que sofrem do mesmo problema. Essa desestruturação do sistema é defendida pelo o ex-presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), o psiquiatra Antonio Geraldo, aqui neste espaço na Gazeta do Povo .

Construída a partir de um conjunto de experiências municipais e estaduais bem-sucedidas e referenciada em experiências internacionais igualmente eficazes, a política em vigência foi implementada em 2002 e tornou possível a abertura de centenas de Centros de Atenção Psicossocial especializados de caráter comunitário, alguns com capacidade de atenção 24 horas com internação nas situações de crise. 

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A evolução da Política de Drogas tem sido pautada no equilíbrio entre ações preventivas, de cuidado, tratamento efetivo, promoção de abstinência e também de redução de danos. A partir de uma resolução do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad), o cuidado e a inserção na rede de saúde destes usuários estarão cada vez mais condicionados à decisão de cada pessoa de estar em abstinência. Há evidências clínicas e na literatura que a dificuldade de sustentar, de forma contínua, uma decisão de abstinência, o que consiste num dos maiores desafios a ser enfrentado junto aos usuários. 

O uso de drogas tem complexidade e heterogeneidade que tornam os protocolos de atendimento muito diferentes de doenças como hipertensão, diabetes ou obesidade. E por tal particularidade não se pode reduzi-lo exclusivamente a um fenômeno médico. A categoria psiquiátrica mais associada ao uso de drogas - a dependência química - é insuficiente e limitada para entender fenômenos como o surgimento da “cracolândia”, o tráfico, as relações de poder entre usuários e traficantes. 

A insistência nessa simplificação perversa tem justificado políticas de reclusão de usuários de drogas em instituições totais e fechadas, e impedido que se desenvolvam efetivamente práticas complexas e intersetoriais de cuidados necessários à reabilitação clínica e psicossocial dos usuários. 

Esse modelo identifica, em especial, a figura do usuário como a do doente, sujeito a ser submetido exclusivamente a intervenções psiquiátricas, frequentemente involuntárias e de baixíssima eficácia a longo prazo quando desenvolvidas isoladamente, especialmente junto às populações mais vulneráveis. 

A posição adotada pela psiquiatria é restrita e considera evidências relacionadas a procedimentos medicamentosos, eficácia de abordagens, em sua maioria num recorte limitado de tempo. Várias áreas de conhecimento abordam o fenômeno do uso de drogas, constituindo diversas experiências de ampliação de acesso e promoção de cuidado a usuários. Acolhimento, escuta, vínculo e cuidado são fundamentais para a construção de estratégias que podem culminar em abstinência a longo prazo. 

O Sistema Único de Saúde (SUS), onde tais práticas médicas estariam inseridas, tem como um de seus princípios a universalidade. Ao contrário do que o ex-presidente da Associação de Psiquiatria afirma, a grande maioria das políticas e práticas voltadas aos usuários de drogas desenvolvidas no país têm como finalidade a promoção da abstinência, ou, conforme a expressão do ex-presidente, de “acabar com o vício”. 

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Ainda que exista um conjunto de diretrizes voltadas para que a rede de saúde mental realize acolhimentos e abordagens sem que a abstinência seja exigida, acolhendo os mais necessitados, a prática de redução de danos, tentativa de resgatá-los para o sistema de cuidados, está longe de ser uma prática universal em todo o sistema. Isso tem provocado, há anos, barreiras de acesso dos usuários de drogas à rede de saúde, causando aumento de mortalidade desta população, da prevalência de doenças associadas ao uso de entorpecentes, diminuição da expectativa de vida e, consequentemente, custos individuais, sociais e ao sistema de saúde como um todo. 

A estratégia de redução de danos vem se mostrando uma importante ferramenta de ampliação de acesso a usuários de drogas e sua vinculação ao sistema de saúde. Um exemplo foi a inserção de dezenas usuários de crack em situação de rua inseridos nos Centros de Atenção Psicossocial através do Projeto Intervidas, desenvolvido entre 2015 e 2017 pela Prefeitura de Curitiba. 

Ao SUS, em seu cotidiano, a legalização ou não das drogas tem aspecto secundário, uma vez que o cuidado deve ser universal. Entretanto, à medida em que o discurso da abstinência como oferta única pelo sistema é incorporado, afastam-se os usuários que se vinculam aos serviços e que, numa dinâmica característica do uso de drogas, abandonam e retomam o tratamento com frequência. Diminuem também as iniciativas municipais de ampliação de acesso através de ações de redução de danos, que deixam também de serem financiadas. 

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Nada indica que a determinação intransigente do sistema em promover abstinência tenha qualquer efeito positivo. Porque o mesmo sistema faz isso há décadas, sem eficiência. Essa perspectiva de trazer para a saúde “a guerra contra as drogas” tende apenas a afastar o usuário dos serviços, uma vez que estes estarão condicionando o tratamento à interrupção do uso de drogas e os que não conseguem se afastam. 

Isso era o que ocorria em Curitiba, antes da modificação do processo de trabalho dos CAPS Álcool e Drogas. Na rede instalada, isso irá trazer uma “seleção” de usuários. Ou seja, só permanecem aqueles que se adequam à oferta de abstinência, em sua maioria alcoolistas leves e moderados, ficando a sociedade para se tornar um cidadão de fato e de direito. 

Marcelo Kimati é psiquiatra, professor da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) e ex-diretor do Departamento de Política Drogas de Curitiba. Ana Pitta é psiquiatra, professora Faculdade Medicina Universidade de São Paulo (USP), vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), membro da Comissão de Saúde Mental CNS. Leonardo Pinho é diretor da Abrasme e do Conselho Nacional de Direitos Humanos.

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