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| Foto: Albari Rosa/Agência Gazeta do Povo

Atualizado em 11/01/2018 às 19h40

Uma das polêmicas de fim de ano foram os fogos de artifício e os potenciais danos que podem causar aos animais. Donos de cachorros e ativistas dos direitos dos animais se opuseram àqueles que, por tradição, querem festejar o ano-novo com barulho e pirotecnia. A discussão foi tanta que “viralizou” nas redes sociais e em grupos de WhatsApp uma imagem informando que “é proibido [sic] fogos de artifício em todo o Brasil”, o que deixou muita gente em dúvidas sobre o fato. 

A norma, de fato, consta do parágrafo único do artigo 28 do Decreto-Lei 3.688/1941, a chamada Lei das Contravenções Penais, editada na época do Estado Novo, a ditadura de Getúlio Vargas: 

 Art. 28. Disparar arma de fogo em lugar habitado ou em suas adjacências, em via pública ou em direção a ela:

Pena – prisão simples, de um a seis meses, ou multa, de trezentos mil réis a três contos de réis [atualizável] 

Parágrafo único. Incorre na pena de prisão simples, de quinze dias a dois meses, ou multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis, quem, em lugar habitado ou em suas adjacências, em via pública ou em direção a ela, sem licença da autoridade, causa deflagração perigosa, queima fogo de artifício ou solta balão aceso

A Lei das Contravenções, que é objeto de muita controvérsia entre estudiosos do direito, foi criada para reprimir condutas menos graves que crimes, mas que pudessem perturbar a ordem pública, em um momento em que o país se urbanizava muito rápido – por isso, essas condutas eram chamadas de “infrações menores” ou “crimes anões”. Desde então, ela tem sido modificada, incorporada em leis mais recentes ou, depois Constituição de 1988, cada vez mais questionada na Justiça. De todo modo, o parágrafo único do artigo 28 da LCP não é a única proteção dos animais contra fogos de artifício.

“A Lei de Contravenções surge num contexto específico, porque no início dos anos 1940 há uma grande reforma do sistema penal brasileiro, com a edição do Código Penal, do Código de Processo e da Lei das Contravenções Penais”, afirma Alamiro Velludo, professor de direito penal da USP que editou um livro sobre o tema. “Ela tinha como finalidade a regulamentação da polícia em um momento em que a própria administração fazia a gestão da boa convivência nos centros urbanos, repetindo um fenômeno de diversos países europeus”, explica. 

Velludo destaca que há contravenções mais conhecidas, que têm aplicação mais regular, como a proibição de jogos de azar e das “vias de fato” – quando há luta corporal ou violência física que não chega a constituir o crime de lesão corporal –, mas questiona a aplicação do parágrafo único do artigo 28. “O artigo fala em licença prévia, mas essa licença existe? Qualquer conduta limitada pela administração precisa de regulamentação pela administração pública”, diz. 

Aplicável

Para o advogado Jovacy Peter Filho, mestre em Direito Penal pela USP, a aplicação do artigo do decreto não precisaria de regulamentação. A lei teria pouca aplicação porque as pessoas muitas vezes não conhecem seus direitos e porque os poderes públicos não fazem esforço para informar os cidadãos. “Mas há outro problema [no caso dos fogos de artifício], que é a produção probatória, pois muitas vezes a pessoa não tem acesso direto ao fogueteiro”, diz. “Agora, se a pessoa tiver condição de identificar o fogueteiro, ela pode entrar em contato com a polícia”, explica. 

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Para Peter Filho, se a Justiça for chamada a decidir sobre a validade da restrição a fogos de artifício, ela terá de discutir algumas questões. “Algumas condutas inicialmente proibidas pela Lei das Contravenções ganharam adequação social, como o jogo do bicho ou mesmo soltar fogos”, diz. “Se ela ganhou adequação, então ela não lesiona um bem jurídico relevante, o que pode ter duas consequências: a não existência de tipicidade ou a declaração de inconstitucionalidade da norma”, explica. Em qualquer dos casos, na prática, a lei não sei aplicada.

“Talvez a autoridade pública pudesse deixar a regulamentação mais clara, como permitir apenas fogos de pouco barulho, por exemplo. Mas esse é o tipo de discussão que deveria ser feita pelo Legislativo, e não pelo Judiciário”, opina. 

Procurada, a Polícia Militar de São Paulo, informou por meio de nota, enviada após a publicação da reportagem, que “o autor que for identificado soltando fogos de artifício em lugar habitado ou em suas adjacências, em via pública, sem licença da autoridade será conduzido à Delegacia para que sejam tomadas as devidas providências de polícia judiciária”, mas que é “condição essencial a presença do chamado ‘perigo inerente ao fato’, ou seja, que a ação do indivíduo coloque outras pessoas em risco”. 

“O simples fato de soltar fogos de artifício, sem ocasionar perigo à incolumidade pública, não resulta em ilícito penal”, informa ainda.

Mudanças

A Lei das Contravenções já passou por várias mudanças. O juiz federal Anderson Furlan destaca várias condutas que foram descriminalizadas ou atualizadas em leis mais recentes, como dirigir sem habilitação, que agora é infração pelo Código de Trânsito Brasileiro (Lei 9.503/1997), e a condutas previstas no artigo 35 (“Entregar-se na prática da aviação, a acrobacias ou a voos baixos, fora da zona em que a lei o permite, ou fazer descer a aeronave fora dos lugares destinados a esse fim”), que agora são reguladas pelo Código de Aviação.

“O Supremo Tribunal Federal já reconheceu, no Recurso Extraordinário 583.523, que a LCP é anacrônica e com artigos claramente inconstitucionais, como o art. 25, que previa a punição para alguém que fosse condenado por furto e depois flagrado com gazua ou chave falsa”, diz Furlan.

O artigo 60 da LCP, que previa a contravenção de mendicância (“Mendigar, por ociosidade ou cupidez”) foi expressamente revogado em 2009. Já a conduta de vender bebida alcoólica para menor de idade, que era uma contravenção pelo inciso I do artigo 61, passou a ter uma punição mais severa depois que virou crime com a Edição do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A norma foi expressamente revogada em 2015, quando uma lei endureceu ainda mais a punição do ECA.

O que fazer 

Mesmo que a lei seja pouco aplicada, isso não quer dizer que animais domésticos estejam desprotegidos. “Se um animal vier a morrer em decorrência desses fogos, entendo que o proprietário poderá demandar a responsabilização civil por danos materiais e morais contra aquele que praticou o ato tecnicamente ilícito e que resultou em dano”, explica o juiz federal Anderson Furlan. “É o mesmo raciocínio que também levaria à condenação de alguém que disparasse os fogos em direção a outra pessoa ou a algum outro bem, danificando-o”, elucida. 

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“De forma preventiva, os proprietários de animais que estejam situados nas proximidades de locais que tradicionalmente utilizam fogos de artifício, como clubes, podem notificar extrajudicialmente estes estabelecimentos e também ajuizar ações pedindo tutela inibitória, ou seja, que o juiz determine, sob pena de multa, que esses locais não realizem a queima de fogos e explosões”, acrescenta.

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