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Brueghel, Torre de Babel, 1563. O exercício da razão pública no liberalismo deveria ser mais amigável a vozes, razões, argumentos e deliberações religiosas. | Wikimedia Commons
Brueghel, Torre de Babel, 1563. O exercício da razão pública no liberalismo deveria ser mais amigável a vozes, razões, argumentos e deliberações religiosas.| Foto: Wikimedia Commons

Considere duas formas de liberalismo. Uma, que remete a John Stuart Mill, toma o princípio do dano como o garantidor da liberdade: a liberdade deve ser protegida exceto quando uma pessoa ameaça causar dano à outra. Essa forma de liberalismo deixa os cidadãos com muito a ser discutido: o que é dano? Quais são os limites dos seres que devem ser protegidos pelo princípio do dano? No segundo capítulo de Ensaio sobre a Liberdade, Mill argumenta que os limites de discussão para essas e muitas outras questões devem ser de fato muito amplos. Assim, opositores do aborto podem se pensar liberais millianos: o aborto, conforme argumentam, lesiona seres humanos inocentes, a classe de seres que o Estado deve proteger acima de todos os outros. Logo, o aborto deveria ser proibido. 

Não apenas podem argumentar isso como podem também votar a favor da vida não-nascida, como cidadãos e legisladores. E um juiz poderia, de forma consistente com os princípios constitucionais de muitas nações, incluindo a nossa, julgar que o não-nascido existe na categoria de “pessoas” e que estaria, assim, protegido constitucionalmente. 

Tudo isso para dizer que Mill realmente nos dá um princípio que governa os objetivos do Estado: qualquer restrição do Estado à liberdade deveria ser em favor da paz e da justiça – evitando o dano – compreendidas como uma questão interpessoal. A consequência é clara: um Estado age fora de sua autoridade se age para restringir a liberdade em favor de propósitos que não são propriamente seus, como a supressão de vícios privados e a determinação de uma única religião. 

Nos últimos cinquenta anos, no entanto, uma outra forma de liberalismo ofuscou a de Mill: o liberalismo da neutralidade. De acordo com essa concepção de liberalismo, a liberdade e o valor das pessoas são mais bem protegidos quando cidadãos, legisladores e juízes abstraem suas concepções substantivas do bem (e, por consequência, do mal) e lutam por considerações neutras que possam justificar a coerção estatal sobre todos. As considerações apropriadas que justificam a coerção devem estar disponíveis a todos os cidadãos, e deve-se esperar racionalmente que todos concordem com essas considerações se elas devem servir de fundamentos adequados para a coerção estatal. 

Em seu livro Liberal Politics and Public Faith: Beyond Separation (Política Liberal e Fé Pública: Além da Separação, sem edição em português), Kevin Vallier chama isso de “liberalismo da razão pública”. Essa forma de liberalismo pressupõe que a justificação pública é necessária caso a coerção deva ser justificada, e que a justificação pública somente é atingida se “cada membro [...] do público P tem razões R suficientes para endossar L”. 

Religião e razão pública 

O liberalismo da razão pública não tem sido bom nem para os cidadãos religiosos nem para a causa pró-vida, por motivos similares. Cidadãos religiosos pensam que estão seriamente prejudicados por um ideal de cidadania e de processo legislativo que requer que as justificações para as leis coercitivas sejam tais que se poderia, razoavelmente, esperar que todos os cidadãos concordassem com elas, e que requer que discussões e deliberações promovidas em favor de tais leis sigam o mesmo padrão. Isso porque razões religiosas pareceriam obscuras para muitos, não razões com as quais os outros poderiam simplesmente concordar. Elas não atendem ao padrão da razão pública. 

De forma similar, as concepções de pessoa e de ética do ato de matar que são usadas para defender vidas humanas não-nascidas podem falhar no teste da razão pública. Alguns cidadãos não concordarão que todos os seres humanos têm direito a um completo respeito moral, ou que todas as mortes intencionais de seres humanos inocentes são uma violação do completo respeito moral. Assim, argumentos como esses são considerados por alguns liberais da razão pública simplesmente cartas fora do baralho. Na ausência de tais argumentos, um regime permissivo do aborto é claramente o padrão. 

O propósito de Vallier nesse livro é mostrar que, na verdade, o liberalismo da razão pública é – ou deveria ser – muito mais amigável a vozes, razões, argumentos e deliberações religiosas. Vallier move a ideia de razões públicas para longe de exigir razões inteligíveis, acessíveis e compartilháveis para e por todos os cidadãos, exigindo apenas que sejam inteligíveis. E a inteligibilidade é obtida se o cidadão B pode ver que a razão R é justificada para o cidadão A a partir do ponto de vista do cidadão A. 

O complexo argumento de Vallier para isso é baseado em afirmações características do liberalismo da razão pública. Vallier afirma que a visão modificada de razões públicas respeita melhor os “valores fundadores” liberais, como o respeito pelo pluralismo e o respeito pela integridade, do que a visão mais rígida o faz. De fato, por razões já mencionadas, formas mais excludentes de liberalismo da razão pública podem ser especialmente perigosas para a integridade de pessoas religiosas, de quem se espera que abandonem suas razões religiosas antes de adentrar o espaço público. Essas pessoas são assim divididas, de forma não natural, entre seres públicos e privados. 

Há, ao que me parece, quatro resultados importantes a partir da posição de Vallier. O primeiro é que cidadãos religiosos podem se juntar a deliberações políticas precisamente da mesma forma que outros cidadãos podem fazê-lo, trazendo todo seu conjunto de razões para reforçar suas posições políticas. Quase não há limites impostos a cidadãos religiosos, a suas posições e a sua ação política, desde que suas razões sejam minimamente inteligíveis: justificadas a partir de seus pontos de vista e não infectadas com erros grosseiros de fatos ou raciocínio. 

O segundo é que a justificação para a coerção estatal pode ser alcançada de forma um pouco mais flexível do que no modelo rawlsiano [referente ao filósofo político John Rawls]. Lembre que cada cidadão deve ter razão suficiente para endossar L – uma lei coercitiva – se L for justificada. Mas a versão valleriana de liberalismo da razão pública não requer que as razões justificantes sejam compartilhadas e sejam mutualmente acessíveis; assim, ela não requer que haja um consenso na justificação subjacente para uma lei coercitiva, mas apenas que haja uma convergência. Esse é um limite que pode ser mais facilmente atingido. 

Terceiro, a visão da convergência permite um papel muito maior para o que Vallier chama de “derrotadores inteligíveis”. Lembre que o requisito da neutralidade exclui muitas razões da deliberação pública e do processo legislativo, como aquelas originárias de crenças religiosas. Essas razões não só não estão disponíveis para criar as leis, como também estão aparentemente indisponíveis para justificar um ajuste às leis que afetam essas crenças religiosas. Assim, uma oposição ao mandato do (Departamento de Saúde dos Estados Unidos) que requer que instituições católicas, como hospitais e universidades, forneçam contraceptivos sem custo aos seus empregados [revogado por Donaldo Trump em outubro de 2017] pode parecer, para os liberais do consenso da razão pública, fora dos limites. Na medida que isso surge de uma perspectiva sectária, não fornece nenhuma razão para o ajuste das leis gerais. 

Em contraste, para Vallier, se um cidadão tem um derrotador inteligível para uma lei, é inadmissível que ele seja coagido por aquela lei; ela deve ser revogada ou reformulada. Assim, parece que Vallier favoreceria amplas acomodações para cidadãos religiosos. 

Quarto, Vallier argumenta, ao longo do capítulo final do livro, que o nosso atual sistema educacional público é simplesmente incompatível com a forma de liberalismo da razão pública que ele tem defendido. Muitos cidadãos têm razões derrotadoras inteligíveis contra a extensa coerção que o sistema atual aplica. Vallier segue Mill ao defender uma abordagem de escolha escolar em que os pais utilizem incentivos fiscais ou vouchers para enviar seus filhos para escolas que aprovem. 

A negação da verdade 

Sou simpatizante da discussão de Vallier nesse capítulo, principalmente do seu argumento de que a abordagem baseada em consenso “simplesmente ignora considerações religiosas” em sua busca por “transformar, sem piedade, crianças em cidadãos liberais do consenso”. Esse objetivo do liberalismo contemporâneo já me parece, há muito tempo, nocivamente estatista, e aplaudo Vallier por criar um argumento para a escolha escolar dentro dos parâmetros do liberalismo da razão pública. 

Também aplaudo seus esforços em abrir um espaço deliberativo para religiosos contrários às demandas por neutralidade criadas pelo liberalismo do consenso da razão pública. Vallier combina dois dos mais importantes argumentos feitos em nome de cidadãos religiosos contra a neutralidade. Um deles, o qual já mencionei, é o argumento da integridade: cidadãos religiosos que se sentem ligados por seus princípios religiosos a argumentarem com base nesses princípios são forçados pelo liberalismo do consenso da razão pública a “dividirem suas identidades”, algo contrário aos seus mais profundos princípios de formação de identidade. O segundo argumento é o argumento da justiça: como Vallier coloca, religiosos podem ter apenas uma segunda categoria de cidadania se deles, mas não de outros, se requer que deixem de lado suas razões. 

Vallier também discute uma terceira objeção, que é a de que não se mostrou, de modo adequado, que a oferta de razões religiosas seja tão seriamente desagregadora em uma ordem democrática liberal a ponto de justificar restrições a elas. Ele menciona brevemente uma quarta objeção, a “Objeção da Negação da Verdade”, que “desafia a razão pública com base na ideia de que parece errado requerer que os cidadãos evitem fazer declarações de verdade como verdade”. Vallier passa um tanto rapidamente por essa objeção, porque ele pensa que “a sua força normativa é inteiramente derivada da objeção de integridade”. Isso não é implausível: as conexões entre dizer a verdade e a integridade são profundas, como já argumentei anteriormente. 

Mas acredito que haja mais nessa objeção do que Vallier reconhece. Ele escreve: 

A objeção da negação da verdade aponta tipicamente para o liberalismo político rawlsiano, que muitos acreditam requerer que os cidadãos não recorram a suas afirmações de verdades na vida pública. Mas Rawls permite afirmações de verdade desde que o fato de tais afirmações serem verdadeiras não seja utilizado como uma justificativa para a coerção [...] A sua visão é de que as afirmações de verdade dos cidadãos não fundamentam a autoridade política sobre os outros, mesmo que elas sejam corretas. 

Esse pensamento parece, para mim, estar se aproximando do centro do liberalismo da razão pública: não é a verdade como tal que está no cerne de um processo legislativo aceitável, da governança e da cidadania responsável, mas uma noção de justificação parcialmente afastada da verdade. Em contraste, acho que nossos julgamentos políticos, nosso processo legislativo e nossas deliberações sobre as questões mais importantes deveriam ser precisamente voltados à verdade e guiados por ela. 

O que, afinal de contas, pode ser mais relevante na discussão sobre o aborto do que as verdades sobre os seres humanos e os direitos humanos que são ignoradas por um regime permissível ao aborto? Porém, onde o foco esteja inteiramente na justificação, nós podemos esperar que haja “derrotadores inteligíveis” – razões de objeção que são justificadas a partir do ponto de vista de alguns agentes – que impeçam leis mais restritivas sobre o aborto. 

Vallier sugere esta linha de argumentação, dizendo que, embora os cidadãos possam defender restrições ao aborto, “mesmo que essas restrições sejam derrotadas [...] legisladores talvez não possam defendê-las”. Em nota de rodapé, ele afirma acreditar que “restrições ao aborto não podem ser publicamente justificadas apenas pela argumentação” e direciona o leitor a outra nota de rodapé na qual escreve que, se fetos são pessoas, então eles terão derrotadores de leis que os coloquem em perigo; logo, a controvérsia sobre fetos serem pessoas ou não deve ser resolvida. 

Mas, de acordo com a concepção de Vallier a respeito da justificação, alguns cidadãos certamente terão derrotadores contra as afirmações de que fetos são pessoas. Então, como leis restritivas do aborto podem legitimamente coagi-las? A questão não pode ser simplesmente resolvida perguntando quem tem derrotadores, mas perguntando quem está certo, qual concepção é verdadeira. Creio que algo parecido ocorre quando se trata de acomodações religiosas: são as afirmações verdadeiras sobre o bem da religião que justificam tais acomodações, não derrotadores inteligíveis oferecidos a partir do ponto de vista de cidadãos religiosos. 

De todo modo, embora a versão de Vallier do liberalismo do consenso da razão pública seja insuficientemente ajustada e atenta às raízes profundas da “Objeção da Negação da Verdade”, seu livro representa a tentativa mais rica e mais gratificante que eu conheço de conciliar pessoas de fé com o liberalismo da razão pública. 

Christopher O. Tollefsen é Professor Emérito de Filosofia na Universidade da Carolina do Sul e membro sênior do Instituto Witherspoon. Ele é autor de Lying and Christian Ethics (Cambridge, 2014).

Publicado em português com permissão. Original em Public Discourse: Ethics, Law and the Common Good.

Tradução: Maíra Santos
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