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Novo Código de Processo Civil (NCPC) trouxe a disposição de que o juiz pode determinar todas as “medidas necessárias” para assegurar o cumprimento de uma ordem judicial, inclusive nas ações que envolvam a cobrança de dívidas. Com a nova regra, muitos juízes têm deferido pedidos pela suspensão da Carteira Nacional de Habilitação (CNH) e do passaporte de devedores. Mas esse tipo de determinação não representaria uma afronta à Constituição Federal (CF)? 

Antes de tudo, é preciso salientar que a questão não está pacificada na jurisprudência nacional, pois a matéria não chegou às Cortes superiores – nesse caso específico, ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e ao Supremo Tribunal Federal (STF) –, principalmente porque a lei é bastante nova – o NCPC foi sancionado em 2015. O que se tem, até o momento, são decisões pontuais de primeira e segunda instância, tanto com acórdãos decidindo pela manutenção da retenção dos documentos quanto com vereditos derrubando a sentença. Na última semana, inclusive, a Gazeta do Povo noticiou o caso de uma juíza da 6ª Vara de Família e Sucessões de Goiânia (GO) que suspendeu a carteira de motorista de um homem que devia mais de R$ 25 mil em alimentos à filha. 

Também é importante frisar que o NCPC não prevê, expressamente, a possibilidade de o passaporte e a CNH serem confiscados, tratando-se de uma cláusula aberta. Especificamente, o artigo 139 do código dispõe que “o juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe: (...) IV – determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária”. 

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Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Sérgio Staut Júnior considera as medidas uma afronta ao direito de ir e vir da pessoa, “uma forma absolutamente equivocada de fazer uma cobrança de dívida civil”. Para o professor, enquanto no âmbito penal a liberdade dos indivíduos pode ser sacrificada, a tendência do direito privado é – ou deveria ser – de caminhar no sentido oposto.

“O mesmo juiz que defende a restrição da liberdade, a apreensão do passaporte, é aquele juiz que atendia com naturalidade a prisão do depositário infiel [considerada ilícita pelo STF em 2008]. Não é que as dívidas não devam ser pagas, mas há outros mecanismos para cobrá-las”, afirma, apontando medidas como o BacenJud e a busca e apreensão.

Sobre o tema, o advogado Adib Abdouni lembra que outros instrumentos têm sido requeridos nas ações com base no artigo 139, IV, como o bloqueio de cartões e de créditos de programas de resgate, como o Nota Fiscal Paulista. Nesse ponto, as medidas afrontariam a privacidade do cidadão. 

“Mesmo que o Código de Processo Civil permita ao magistrado agir de forma atípica, a determinação não pode afrontar a Constituição Federal, que é nossa lei maior”, explica, afirmando que o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) tem revogado decisões de primeira instância que deferem a suspensão do passaporte de devedores. 

A desembargadora Marcia Dalla Déa Barone, por exemplo, ao relatar o processo (número 2226472-64.2016.8.26.0000) da dona de um bar que devia o pagamento de danos morais a um cliente agredido por seguranças do estabelecimento, anotou que a Constituição Federal dispõe, em seu artigo 5°, acerca do direito de ir e vir. “Desta forma, o pleito para a cassação do passaporte da devedora não se mostra relevante no caso em testilha, tendo em vista que os direitos fundamentais da cidadã devem ser respeitados”, observou a juíza do TJ-SP. 

Análise caso a caso 

No Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR), em contrapartida, a desembargadora Themis Furquim, relatora do processo 0041463-42.2016.8.16.0000, entendeu de forma diferente. No caso analisado pela juíza, um homem comprara R$ 177 mil em bois de uma pecuarista, mas ela recebeu somente R$ 61,7 mil. Segundo os autos, foram feitas diversas outras tentativas para que o devedor honrasse o pagamento, inclusive um acordo de parcelamento da dívida, homologado na Justiça, mas o homem não cumpriu com a obrigação. Ela, então, determinou a suspensão do passaporte e CNH do executado, ao qual se referiu como “devedor profissional”. 

“Anote-se, aqui, que não se tratam de mecanismos destinados aos devedores que não têm mais condições para honrar qualquer compromisso financeiro ou os que passam por dificuldades financeiras momentâneas e podem atrasar alguns pagamentos, mas, sim, àqueles chamados ‘devedores profissionais’, que conseguem blindar seu patrimônio contra os credores com o objetivo de não serem obrigados a pagar os débitos”, ressaltou. 

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Compartilha do entendimento de Themis o advogado Renato Almada, especialista em direito processual civil, que diz acreditar que as medidas são válidas para devedores contumazes, que agem de má-fé. Deveria haver, portanto, uma análise bastante aprofundada do caso concreto. Almada lembra que o Código Civil de 1973 já previa a possibilidade de o juiz tomar atitudes consideradas atípicas, sendo que o NCPC só deixou a questão mais clara, ainda que de forma não explícita. 

“É uma medida que se mostra eficaz nos casos em que o devedor está contrariando uma ordem judicial, agindo de forma a prejudicar deliberadamente o credor”, afirma o advogado, falando dos casos em que o indivíduo tem condições de pagar a dívida e oculta seu patrimônio como forma de fraudar a obrigação. 

Sérgio Staut Júnior, contudo, pensa que mesmo nos casos extremos, em que os mecanismos poderiam ser justificados, é preciso tomar cuidado, ainda que algumas dívidas, como a de alimentos, sejam “lamentáveis”. “Quando a gente pensa no direito, temos que pensar na possibilidade de universalizar uma decisão. Se num caso extremo se relativiza um direito fundamental, abre-se uma porta de entrada para relativizá-lo em outras decisões”, diz o professor da UFPR. 

Perspectiva

Até que as Cortes superiores decidam sobre o assunto, o artigo 139 do NCPC continuará a gerar entendimentos – ou desentendimentos – diversos. Para Staut, levando em consideração que, atualmente, o STF tem um perfil mais ativo no processo de criação de direito, a tendência é que caiam medidas que, de alguma forma, restrinjam a liberdade. 

“É claro que não temos como adivinhar [futuros entendimentos], mas os ministros têm buscado adotar um direito civil muito calcado no respeito à dignidade humana, preocupado com os direitos da personalidade. Em um país em crise, em que se estimula o consumo desenfreado, em que há uma oferta gigantesca de produtos, onde as pessoas são bombardeadas com a ideia de que elas só ‘são’ se elas ‘têm’, ampliar as medidas protetivas ao crédito, por meio da restrição do passaporte, parece-me atentatório à dignidade”, opina.

Colaborou: Mariana Balan.

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