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Precisamos falar sobre o aborto. Quem ouve esta frase já sabe o que vem pela frente: não um diálogo, mas um monólogo em que os mesmos argumentos, quando não os mesmos chavões, serão repetidos. Tudo isso para fazer crer que, se precisamos falar sobre o aborto, é porque ele precisa ser legalizado. Nas últimas sete semanas, o Justiça & Direito falou mesmo sobre o aborto na série Análise da ADPF 442. A ação pede a descriminalização do aborto até a 12ª semana gestação no Supremo Tribunal Federal (STF). Levamos a sério o convite a falar sobre o tema, buscando estabelecer um diálogo, e não um monólogo e, neste texto que encerra nossa cobertura opinativa sobre o tema, resumimos o percurso argumentativo da série.

Não só a convicção de que vida deve ser protegida desde a concepção motivou essa série, mas também nossa crença no poder da razão e do diálogo. O filósofo Christopher Kaczor, que se posiciona a favor da proteção da vida desde a concepção, faz um agradecimento especial, no primeiro parágrafo de seu livro, ao também filósofo David Boonin, que defende a posição contrária: “David Boonin, autor de Uma Defesa do Aborto, merece especial reconhecimento e gratidão. David leu meu manuscrito inteiro duas vezes e, na segunda vez, me mandou 23 páginas, em espaçamento simples, de comentários, questões, objeções e desafios. Estou especialmente em débito para com ele por este trabalho”.

Foi com esse espírito que o Justiça & Direito, como esta Gazeta do Povo, procurou entrar neste debate sem esconder suas convicções e tratando os argumentos contrários com seriedade e civilidade. 

Pessoa Constitucional

Esta série não teve a pretensão de visitar todos os argumentos desse debate. Ela partiu sempre da petição inicial da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442. No primeiro e no segundo textos, analisamos a posição de que os seres humanos não nascidos não seriam “pessoas constitucionais”, mas simples “criaturas humanas intraútero”. 

De acordo com essa posição, as leis até poderiam proteger os nascituros, mas eles não teriam direitos fundamentais e, portanto, não estariam protegidos pelo direito à vida, inscrito no artigo 5º da Constituição Federal. Nossos textos mostraram duas coisas. Primeiro, que essa distinção não encontra sustentação na tradição jurídica brasileira, exceto pelas inovações mais recentes, e bastante heterodoxas, do ativismo do STF. Segundo, que essa posição é extremante discutível e controversa entre filósofos morais e juristas; ela pode parecer neutra e laica, mas não é. 

Proporcionalidade

Os três textos seguintes analisaram a descriminalização do aborto sob o prisma do método da proporcionalidade. A ADPF 442 argumenta que, mesmo se os seres humanos não nascidos tiverem direitos fundamentais, nem sempre o direito à vida deveria prevalecer em caso de colisão com uma série de direitos fundamentais das mulheres, como a autonomia, a liberdade, a dignidade, o direito ao planejamento familiar, entre outros. O método da proporcionalidade, enquanto técnica de decisão judicial fartamente adotada pelos tribunais brasileiros, tem três passos: a adequação, a necessidade, e a proporcionalidade em sentido estrito. Se uma ação estatal – como, por exemplo, a criminalização do aborto – reprovar em qualquer um dos passos, ela deve ser considerada inconstitucional. 

Adequação

A ADPF 442 argumenta que criminalização do aborto é inadequada porque “a lei penal não impede que abortos sejam feitos e, injustamente, força as mulheres comuns à ilegalidade e aos riscos da clandestinidade”. Esse argumento, porém, coloca o sarrafo da exigência alto demais: nenhuma previsão penal, por si só, impede que crimes existam. Enfrentamos essa questão no terceiro texto da série. Basta ver que houve quase 60 mil assassinatos no Brasil em 2015. De acordo com Virgílio Afonso da Silva, um dos mais destacados estudiosos do método da proporcionalidade no Brasil, em texto publicado em 2002, “uma medida somente pode ser considerada inadequada se sua utilização não contribuir em nada para fomentar a realização do objetivo pretendido” [destaque nosso]. Não considerando os abortos que deixam de ser realizados em razão da criminalização – um número naturalmente difícil de ser mensurado –, fica fácil dizer que a criminalização é inadequada. 

Necessidade

Esse tema é enfrentado de esguelha, quando a petição inicial visita o segundo passo do método: a necessidade. Uma medida que tenha como objetivo proteger direitos fundamentais, mas que restringe outros direitos fundamentais, só pode ser necessária se não houver outra medida menos restritiva disponível para o legislador. A estratégia da APDF 442, neste ponto, é dizer que a descriminalização, além de não ser tão restritiva aos direitos das mulheres, é mais eficaz, porque reduz o número de abortos. Mas só o caso da França é citado na ação. 

Como mostramos no quarto texto da série, a correlação descriminalização-redução do número de abortos-maior proteção às mulheres é extremamente controversa. Cuba e Rússia descriminalizaram o aborto há décadas e têm taxas altas de realização de abortos. Polônia e Chile têm legislações bastante restritivas e reduziram a mortalidade materna. A África do Sul legalizou o aborto, mas a mortalidade materna saltou. 

Proporcionalidade

O quinto texto da série discutiu a proporcionalidade em sentido estrito. De acordo com Afonso da Silva, no mesmo texto de 2002, “o exame da proporcionalidade em sentido estrito [...] consiste em um sopesamento entre a intensidade da restrição ao direito fundamental atingido e a importância da realização do direito fundamental que com ele colide e que fundamenta a adoção da medida restritiva”. Como poderia, pergunta-se a ADPF 442, o direito à vida de um feto ou de um embrião se sobrepor a tantos direitos das mulheres? Não poderia, responde. Mas a primeira coisa que a onipresente retórica da “gravidez compulsória” escamoteia é que toda gravidez, exceto nos casos de estupro, resulta de um ato livremente escolhido de ter uma relação sexual. 

O cerne da questão, no entanto, é o seguinte: por mais que uma gravidez indesejada possa restringir em algum grau os direitos da mãe – isso se aceitarmos o argumento da ADPF 442–, a importância da realização do direito à vida terá mais peso que essa restrição, pela singela razão de que tudo o mais depende do direito à vida: não só os demais direitos que o ser humano não nascido têm e venha a ter, mas sua própria existência. Neste passo do argumento, o quinto texto da série reencontra os dois primeiros, ao defender a inviolabilidade da vida como melhor solução do problema moral e a melhor leitura da tradição jurídica brasileira.  

Alternativas

Nada do que foi escrito até aqui pretende negar o drama concreto que muitas mulheres enfrentam em gravidezes de crise. Nem se pode fechar os olhos para os fardos mais pesados que mulheres pobres e abandonadas pelos parceiros têm de enfrentar nesses casos. Por isso, neste texto da série, mostramos que existem alternativas ao aborto: a proteção ampla da vida, para além da gestação, no marco da saúde integral, e com garantias para toda a família. Não é preciso relativizar o direito à vida para defender a vida das mulheres. Trata-se de rejeitar a concepção funcionalista da personalidade, que só reconhece valor moral e jurídico a quem possa desempenhar alguma função exterior à própria vida, e, ao mesmo tempo, criar políticas públicas de acolhimento de famílias em situação de crise e investir em saúde pública. 

Precedentes

A ADPF 442 também faz crer que há precedentes para a legalização do aborto no Brasil em decisões anteriores do STF. Este texto da série lida com esta questão: é verdade que o Supremo ensaiou inovar a ordem jurídica brasileira e extrapolar suas funções no julgamento da ADI 3.510, quando liberou pesquisas com células tronco que destroem embriões congelados, mas legalizar o aborto seria mais uma das invencionices do STF – e em um contexto muito diferente. Na ADI 3.510, se discutiam embriões congelados que nunca seriam implantados no útero materno. Na ADPF 54, também citada como precedente, o tribunal reconheceu a possibilidade do aborto de fetos anencefálicos com base no argumento de que não teriam potencialidade de vida. Nada mais longe do caso de embriões saudáveis no curso natural da gravidez. 

Essas decisões do STF, na ADPF 442, são lidas sob o viés de quem quer tornar a legalização do aborto o destino inexorável do direito brasileiro. Mas o aborto não é, não precisa e nem deve ser legalizado no Brasil.

Confira a série completa: Análise da ADPF 442

1. Bebê na barriga é gente? Para defensores do aborto, é “criatura” com menos direito 

2. Há diferença entre os direitos do ser humano que nasceu e os do que não nasceu? 

3. É proporcional descriminalizar o aborto? 

4. Números sobre aborto mostram pontos fracos da legalização como alternativa 

5. Aborto: a liberdade da mulher deve mesmo ser o direito mais relevante? 

6. Decisões anteriores do STF não servem como base para descriminalizar o aborto

7. Não pode abortar? Há alternativas para a defesa da vida, com dignidade para a mulher

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