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Em 1977, senador Nelson Carneiro recebe apoio a projeto sobre divórcio | Arquivo /
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Em 1977, senador Nelson Carneiro recebe apoio a projeto sobre divórcio| Foto: Arquivo / Senado Federal

No dia 26 de dezembro de 1977, exatos quarenta anos atrás, entrou em vigor no Brasil a Lei 6.515/1977, que regulamentou pela primeira vez o divórcio no país. O que pouca gente sabe é que a medida só foi possível como reflexo de uma manobra do regime militar que, meses antes, alterou a Constituição para garantir a viabilidade de seu projeto político. Até abril de 1977, eram necessários dois terços do Congresso Nacional para aprovar uma Emenda Constitucional (EC) – o texto da Constituição dizia que “o casamento é indissolúvel” e naufragavam todas as tentativas de emendá-lo, desde a Constituição de 1946. 

O cenário começou a mudar em 1974. Nas eleições de novembro daquele ano, a Arena, partido do regime militar, sofreu um forte abalo e perdeu a maioria de dois terços dos votos do Congresso Nacional. Uma pedra constante no sapato do regime, rememorada pelo jornalista Elio Gaspari no quarto volume de sua série “O Sacerdote e o Feiticeiro”. A preocupação da ditadura, a partir daí, passou a ser as eleições de novembro 1978, em que seriam eleitos diretamente todos os 22 governadores, as assembleias legislativas estaduais, toda a Câmara e dois terços do Senado – onde o MDB, partido de oposição, já tinha 20 parlamentares, bastando eleger mais 14 para ter a maioria dos 66 à época. 

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Como as eleições presidenciais estavam marcadas para janeiro de 1979, o resultado do pleito em novembro poderia comprometer o controle do regime sobre o Colégio Eleitoral, composto pelos membros do Congresso e por delegados das assembleias estaduais, que elegiam indiretamente o presidente da República. Quando, em março de 1977, o MDB impôs uma derrota ao governo na votação da emenda constitucional que tentava reformar o Poder Judiciário, o presidente Geisel fechou o Congresso Nacional e impôs ao país a EC 08/1977, uma série de reformas que ficou conhecida como o “Pacote de Abril”. 

O Pacote, entre outras coisas, tornou indireta a eleição dos governadores, tornou indireta a eleição de um dos dois terços de senadores – que ficariam conhecidos como “senadores biônicos” –, alterou a representação proporcional dos estados na Câmara e baixou o quórum de aprovação de emendas constitucionais para metade, e não mais dois terços, do Congresso. Não por acaso, já em junho de 1977, o parlamento aprovou a Emenda 09, que permitia o divórcio, de autoria do senador Nelson de Sousa Carneiro (RJ), que tentava emplacar a mudança  desde a década de 1950. Em 1975, um projeto de sua autoria havia recebido 222 votos e 194 contrários, resultado insuficiente para atingir o quórum de dois terços. 

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Com a mudança, o texto do artigo 175 da Constituição então em vigor passou a ser “O casamento somente poderá ser dissolvido, nos casos expressos em lei, desde que haja prévia separação judicial por mais de três anos”. Introduziu-se também a possibilidade de o divórcio ser precedido da separação de fato por cinco anos. No final do ano, o Congresso aprovou a Lei 6.515, apelidada “Lei Nelson Carneiro”, que regulamentou o procedimento da separação judicial e do divórcio. 

História 

As regras do regime matrimonial são cheias de idas e vindas no Ocidente. Segundo o advogado Caio Martins Cabeleira, diretor da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS), doutorando em Direito Civil pela USP e estudioso do tema, o direito romano previa o divórcio, cujo procedimento variava de acordo com o tipo de casamento que se celebrava. 

“De toda forma, os romanistas [estudiosos do direito romano] e historiadores apontam que o divórcio sempre foi muito mal visto socialmente pelos romanos, tendo se tornado mais comum com a decadência do império, que foi acompanhada pela decadência dos costumes”, afirma. 

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Durante a Idade Média, a Igreja Católica chamou para si a jurisdição sobre o tema e as legislações civis reconheciam a jurisdição da Igreja em matéria matrimonial. “A Igreja sempre proibiu o ‘divórcio-vínculo’, que rompe o vínculo matrimonial possibilitando que as partes contraiam novo matrimônio com terceiros, mas sempre reconheceu o divórcio ‘mensa et toro’ – de mesa e cama – , que é a simples separação do casal, por meio do rompimento da sociedade conjugal”, explica. Casos de violência conjugal eram uma hipótese clássica para a separação.

A reforma protestante, no século XVI, trouxe de volta a figura do divórcio. “Algumas denominações retiraram toda a sacralidade do casamento, reduzindo-o a um contrato civil. Essa visão foi depois reforçada e radicalizada pelo iluminismo enciclopedista que influenciou a revolução francesa. De qualquer maneira, em regra, era um divórcio limitado a causas graves que precisavam ser provadas em juízo”, explica. “Somente no século XX, nos anos 1950 e 1960, é que se introduz o divórcio direto”, diz. 

Cabeleira, porém, faz uma ressalva importante quanto ao regramento do casamento durante a Idade Média. “O casamento não era tão formalizado como atualmente”, afirma. “Somente depois do Concílio de Trento [1545 a 1563] é que a Igreja estabeleceu as formalidades de celebração como requisito de validade do matrimônio. Para estar casado, bastava a vontade das partes e a ‘fama de marido e mulher vivendo em casa teúda e manteúda’, como dispunham as Ordenações Manuelinas, por determinado período de tempo, que seria de sete anos em Portugal e no Brasil”, afirma. 

Segundo o advogado, essa forma não solene de casamento, conhecida como “casamento presumido”, foi vigente no Brasil até 1890, quando o governo provisório operou a separação entre Igreja e Estado no Brasil e editou o Decreto 181/1890, que regulamentou a obrigatoriedade e a exclusividade do casamento civil no país. Posteriormente, o matrimônio civil passou a ser regulado pelo primeiro Código Civil que o Brasil teve, promulgado em 1916. Nada disso, porém, alterou as linhas mestras do casamento e que eram correspondentes, em linhas gerais, às do direito canônico: a indissolubilidade, a disparidade de sexos e a vontade livre dos cônjuges. 

Tanto é assim que a Constituição de 1891, a primeira do Brasil republicano, nem se preocupou em afirmar a indissolubilidade do vínculo matrimonial em seu texto. “Na época da Constituição de 1891, não era costume tratar de casamento em sede constitucional”, diz Cabeleira. O advogado destaca, no entanto, que a maioria dos casamentos continuava a ser celebrada segundo a tradição religiosa, sem reconhecimento legal, o que levou o tema ao texto constitucional de 1934. “Em 1934 havia uma forte bancada católica e a indissolubilidade do casamento foi inscrita na Constituição, que também reconheceu o casamento religioso”, explica. 

A indissolubilidade do casamento foi mantida como preceito constitucional nos textos de 1946 e de 1969, apesar das tentativas de modificar isso, que só frutificaram com a Emenda 09/1977. Entre a promulgação da Lei de Divórcio, naquele ano, e a promulgação da Constituição de 1988, era comum os juízes ainda discutirem a culpa dos cônjuges na separação judicial e no posterior divórcio. O cônjuge declarado culpado perdia uma série de direitos: pensão, promessas do outro cônjuge no pacto antenupcial, guarda dos filhos. A partir do final dos anos 1980, e sobretudo com a nova Constituição, a jurisprudência e doutrina caminharam no sentido de não mais discutir a culpa em nenhum dos casos. 

A principal mudança trazida pela Constituição de 1988 foi ter permitido, em seu artigo 226, o divórcio depois de um ano de separação judicial ou dois anos de separação de fato, na qual nem se precisava discutir a questão da culpa, uma vez que bastava o mero fato de os cônjuges terem se separado para dar ensejo ao divórcio. O Novo Código Civil de 2002 alterou algumas regras sobre o assunto, mas a mudança recente de maior impacto foi a edição da EC 66/2010, que retirou da Constituição a exigência prévia da separação. Além disso, desde 2007, se houver acordo entre os cônjuges e não houver menores ou dependentes, o divórcio pode ser feito extrajudicialmente, em cartórios.

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