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Levantamento pode ser acessado no Harvard Dataverse | Lula Marques/AGPT
Levantamento pode ser acessado no Harvard Dataverse| Foto: Lula Marques/AGPT

Ninguém duvida do crescimento do protagonismo do Supremo Tribunal Federal (STF) na esfera pública nos últimos anos. Ao ser chamado para “legislar” sobre temas polêmicos, o tribunal tem correspondido cada vez mais a esse convite ao proferir decisões controversas, como no caso de aborto de anencéfalos ou em recursos sobre a privatização de estatais. Esse comportamento não tem sido visto com bons olhos por alguns que consideram que a corte estaria ultrapassando as fronteiras entre os três poderes, passando por cima do Legislativo e do Executivo.

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O “ativismo judicial”, porém, não pode ser comprovado, de acordo com um levantamento que acaba de ser publicado pelo cientista político Jeferson Mariano Silva, pesquisador de pós-doutorado da Faculdade de Direito da FGV-SP, no Núcleo de Justiça e Constituição. Após analisar como votou cada ministro do STF desde a promulgação da Constituição de 1988 até o fim de 2016, o cientista político concorda que o STF está cada vez mais forte, mas que essas intervenções mais contundentes representam uma parcela pequena em relação ao conjunto do trabalho da corte. O banco de dados “Jurisdição Constitucional no Brasil (1988-2016)” pode ser acessado no Harvard Dataverse.

Em entrevista ao Justiça & Direto, Jeferson Mariano Silva explica como foi feito esse trabalho e por que, na sua visão, o Brasil não assiste hoje a um processo progressivo de “judicialização da política”.

Qual a importância do banco de dados montado a partir dessa pesquisa?

Esse banco constitui, hoje, a única fonte de dados de acesso irrestrito que reúne, de modo sistematizado, informações sobre como votaram os ministros do STF em todos os julgamentos de ADIns e ADPFs realizados desde a promulgação da Constituição de 1988 até o fim de 2016.

Trata-se de um material que pode ajudar outros pesquisadores e que interrompe uma prática comum na área: o hábito de que cada pesquisador produza seus próprios bancos, apresentando ao público apenas as análises que fazem dele. Isso não precisa mais ser assim. Uma parte do trabalho de estudar o controle abstrato de constitucionalidade está iniciada, não precisa ser refeita uma e outra vez e seus eventuais problemas podem ser publicamente apontados, discutidos e corrigidos.

Ao longo da tese, o senhor faz várias menções a duas hipóteses sobre a atuação do STF, a “judicialização da política” e a das “onze ilhas”. No entanto, o senhor enfraquece essas interpretações. Por quê? Quais seriam os indícios principais?

A “judicialização” da política me parece uma hipótese pouco promissora e mesmo contraproducente no estudo do controle abstrato. Grosso modo, ela aponta um fortalecimento de juízes e tribunais, que estariam decidindo, cada vez mais, sobre temas tradicionalmente decididos por instâncias representativas. Nessa perspectiva, o fortalecimento dos tribunais significa um avanço sobre os poderes do parlamento e da administração. Mas o que vemos no controle abstrato é que o STF invalida muito pouco da produção normativa do Congresso e do Executivo federal. E, apesar disso, o STF se fortalece dia após dia. A hipótese da judicialização parte de uma teoria normativa da separação de poderes antiquada e com muitas dificuldades para se ajustar ao material empírico hoje disponível sobre o controle abstrato.

Já a hipótese das “onze ilhas” é mais promissora. Mas mesmo ela precisa ser melhor qualificada. E, me parece, que há aí dois trabalhos a serem feitos. Primeiro, o de apontar, mais precisamente, em que condições os ministros se comportam de modo fragmentado, porque quando se olha para o conjunto das decisões tomadas no controle abstrato, o que se vê é, pelo contrário, um grande e crescente grau de consenso. E o segundo trabalho é conceitual. É preciso esclarecer melhor o que significa dizer que o Supremo se assemelha a “onze ilhas”. Se pretendemos designar a escassez ou a ausência de consensos compartilhados entre os ministros, creio que vamos mal. Mas, se por outro lado, pretendemos designar a incidência de uma série de restrições institucionais a uma ação concertada entre os ministros, penso que a hipótese é útil.

“O STF está forte, mas não significa que esteja invadindo a esfera de atuação do parlamento ou do Executivo. Entre outras coisas, a força do STF aparece na capacidade de construir, sem nenhum tipo de restrição externa, a sua própria agenda decisória. O STF decide hoje sobre o que ele quiser”.

Do meu ponto de vista, o que parece mais impactante no funcionamento do Supremo é a construção, por ele mesmo, de uma série de rotinas que vão moldando, de antemão, o comportamento dos ministros nos julgamentos. Resolvidos de antemão, não surpreende que os julgamentos sejam amplamente consensuais e usualmente deferentes aos demais poderes. Ação fragmentada dos ministros e, talvez, até algum ativismo podem estar justamente na construção dessas rotinas. E isso não se observa nos grandes julgamentos, mas nas minúcias cotidianas dos julgamentos sobre quem pode ter acesso às ações de inconstitucionalidade, sobre quais os atos normativos que o STF pode declarar inconstitucionais, sobre qual o procedimento correto para prolatar decisões liminares, além, é claro, das obscuras decisões referentes ao que o tribunal põe ou não põe em pauta. É nesse nível que os ministros moldam as condições em que os grandes julgamentos se realizam.

Em resumo, em sua opinião o STF está forte, mas não há judicialização.

Judicialização é um conceito que entende um fortalecimento com o enfraquecimento de outro poder. O STF está forte, mas não significa que esteja invadindo a esfera de atuação do parlamento ou do Executivo. Entre outras coisas, a força do STF aparece na capacidade de construir, sem nenhum tipo de restrição externa, a sua própria agenda decisória. O STF decide hoje sobre o que ele quiser.

Por que foi usado o método da análise descritiva?

De fato, na análise que fiz desses dados, privilegiei uma série de procedimentos de análise descritiva. Essa escolha tem, fundamentalmente, duas razões. A primeira tem a ver com as limitações que as hipóteses causais mais relevantes da área (os chamados “modelos” estratégicos [decisões dependem das preferências ideológicas dos juízes, mas constrangidos por forças políticas] e atitudinal [juízes determinam suas decisões de acordo com suas preferências políticas pessoais]) apresentam no estudo de contextos políticos diferentes dos presentes nos Estados Unidos. Desde que começaram a ser testados em pesquisas comparadas, essas hipóteses perderam muito de seu poder explicativo.

A segunda razão tem a ver com certa visão sobre a produção científica na área do direito e das ciências sociais, de modo geral. Embora meu trabalho tenha forte viés empírico e metodológico, ele, à diferença de outros trabalhos com mesmo perfil, não persegue hipóteses causais particulares, nem privilegia esse modo de explicação em detrimento de descrições e interpretações. Entendo que essa forma de produzir ciência ajuda a superar algumas clivagens do nosso campo que fazem cada vez menos sentido, como as divisões entre “quantitativistas” e “qualitativistas”, “empiristas” e “ensaístas”, “positivistas” e “normativistas”, etc. A pluralidade de métodos é suficiente para acolher todas essas diferenças e tudo o mais que não seja apenas conhecimento especulativo, dogma e doutrina.

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