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Sessão solene de Abertura do Ano Judiciário em 2018 | Marcos CorrêaPR
Sessão solene de Abertura do Ano Judiciário em 2018| Foto: Marcos CorrêaPR

Nota do Editor: Há entre os leigos a percepção difusa de que “todos têm direitos, mas ninguém tem obrigações”. Há também uma preocupação entre especialistas de que, no Judiciário, a ponderação de direitos acabou se tornando uma “farra dos princípios” em que cada juiz ou tribunal tem o poder de decidir como quer, gerando enorme insegurança jurídica e até injustiças. 

Parte dessa confusão pode ser explicada por um conjunto de ideias – articuladas mais ou menos conscientemente – que vão desde um liberalismo extremado, que é cético com a ideia de que existe um bem a ser buscado na existência humana para além dos interesses atomizados dos indivíduos, até o ceticismo quanto à própria ideia de direitos, em que todo o discurso de direitos seria mera projeção de relações de poder.

No texto “Dano, neutralidade ou verdade: qual é a base do liberalismo?”, que discute uma alternativa ao liberalismo da neutralidade extremada, o Justiça iniciou a série Fundamentos do Direito para fomentar no debate público soluções para esse impasse.

Neste texto, apresentamos em português a concepção “perfeccionista” do liberalismo, aplicada ao direito, e como ela pode fornecer, na visão de Adam MacLeod, uma alternativa tanto ao positivismo quanto à vulgarização do discurso dos direitos – que, em última análise, entregam poderes demais ao Estado e desvalorizam direitos genuínos e imprescindíveis dos seres humanos. 

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Os direitos perderam o seu significado. Isso levanta um obstáculo formidável para o discurso normativo do Ocidente porque, como a pesquisadora de Direito de Harvard Mary Ann Glendon observou há mais de duas décadas, os direitos constituem a lingua franca do discurso normativo do Ocidente. 

A desvalorização dos direitos revela uma decadência que não tem uma origem recente e que se enraíza até sua fundação – até a base do que os direitos são, fundamentalmente, e de quais autoridades eles emanam. 

Isso foi ilustrado vividamente em um debate televisivo em 2015 entre o Chefe de Justiça do Alabama, Roy Moore, e a personalidade de televisão da CNN, Chris Cuomo. Quando Moore expressou a sua abordagem americana ortodoxa dos direitos que estão articulados na Declaração de Independência, Cuomo contestou enfaticamente: “Nossos direitos não vêm de Deus”. Cuomo explicou: “Existe a sua fé, existe a minha fé, mas isso não é o nosso país. As nossas leis vêm de um acordo e um compromisso coletivos”. 

O problema do positivismo 

Cuomo estava expressando uma versão simplista da concepção de direito predominante nas faculdades, redações e salões americanos e, como parece pela sua recente jurisprudência sobre casamento, na Suprema Corte dos Estados Unidos. A falácia positivista pressupõe erroneamente que um direito pode emanar da vontade de um legislador humano soberano. 

Se o legislador soberano é a fonte dos direitos, então esses direitos não vinculam o legislador soberano. Se os direitos não são autorizados e especificados em sua natureza, motivo ou em alguma fonte de autoridade além do poder soberano, então os direitos não impõem qualquer obrigação sobre o soberano. 

Os primeiros positivistas não eram tão atrapalhados a ponto de cair nessa falácia. Bentham e Austin deixaram muito claro que ser um positivista implica renunciar a direitos adquiridos. 

Bentham observou que os direitos que um poder soberano cria também podem ser destruídos por ele. Ele acreditava que os direitos são mais apropriados quando considerados “concessões de privilégios”, os quais vinculam o soberano apenas na medida em que um soberano pode ser limitado como “alguém que tem toda a força da sanção política ao seu dispor”. Resumindo, na perspectiva do soberano, “eles não são leis”. 

Austin também era sofisticado demais para cair na falácia hoje dominante. Ele notou que a alegação de que um indivíduo tem direitos adquiridos é, na verdade, uma declaração de que esses direitos são invioláveis perante uma soberania legislativa, uma alegação que Austin considerava demonstravelmente falsa. A soberania legislativa tem o poder irrestrito de determinar quais direitos devem ser anulados a serviço da utilidade geral. 

Essa é a origem do que o pesquisador Jeremy Paul chamou de “o problema do positivismo”. Escrevendo especificamente sobre direitos de propriedade, Paul delimita o problema desse modo: “Como um governo pode simultaneamente ser responsável por estabelecer os direitos de propriedade da cidadania e também ser responsável por seus constituintes desamparados, quando as condições que definem os direitos de propriedade podem beneficiar o poder público?” 

O liberalismo deveria resolver o problema do positivismo ao garantir liberdade contra as ambições e poderes totalizantes do Estado. Mas, nessa questão, o liberalismo falhou drasticamente. O liberalismo contemporâneo foi construído sobre uma arquitetura de direitos radicalmente defeituosa. Em uma confusão, essa arquitetura costuma ser combinada, de modo equivocado, com o liberalismo e chamada de concepção liberal de direitos. Chamo-a de abordagem da “massividade” de direitos. 

A abordagem equivocada da “massividade” 

Na abordagem da massividade, os direitos chegam ao tribunal ou a uma agência administrativa – nunca a uma legislatura – como bens personalizados que são colocados em um dos lados de uma balança. No outro lado da balança são colocadas várias massas padronizadas à escolha do tribunal, que podem ser chamadas de interesses do Estado, ou de regras, ou de bens públicos, ou de bens coletivos, ou, algumas vezes – confusamente –, também de direitos. Elas nunca são, sob quaisquer circunstâncias, chamadas de deveres ou erros, porque, como todas as pessoas educadas já sabem há mais de um século, deveres e erros não existem. 

Disso se segue um jogo de soma-zero em que a balança é sobrecarregada com pesos e medidas adicionais. Na disputa, os competidores colocam outras massas e commodities nos lados da balança, trazendo à deliberação todos os motivos secundários concebíveis para uma decisão a seu favor, seja deontológico ou consequencialista, legal ou cultural ou – o mais influente de todos – científico.

Curiosamente, na confusão, outros jogadores entram em campo e jogam os seus pesos em um dos lados da balança, usando um artifício curioso conhecido como manifestação do amicus curiae. O tribunal ou agência então reúne todas as massas e bens, e todo mundo observa com a respiração presa enquanto a balança se move. 

Esses são momentos de ansiedade, pois tudo está em jogo. Se a balança pender para o lado das massas padronizadas, então se diz que o direito é infringido de modo justificado e o requerente é destituído do seu bem sem compensação, como aconteceu recentemente com as Little Sisters of the Poor, no circuito de cortes [caso em que governos estaduais tentam obrigar uma associação católica a fornecer procedimentos abortivos, medida adotada pelo governo Obama e revertida pelo governo Trump em outubro].

Se, por outro lado, a balança pender a favor do bem personalizado do requerente, então não apenas o requerente pode manter esse bem, como outras pessoas são obrigadas a pagar por ele, como aconteceu com quase todos requerentes de direitos de identidade sexual (heterossexuais ou não) que entraram com ações em comissões antidiscriminação nos últimos trinta anos. 

Como se pode ver, a abordagem da massividade não trata os direitos melhor do que o positivismo. A falácia do positivismo é um único problema; os problemas da massividade são muitos. Tratar os direitos como bens imutáveis que são jogados em uma balança no começo das deliberações torna-os prematuramente reificados. Isso os investe de uma importância normativa que eles não possuem. 

Os direitos são estabelecidos em oposição à lei, à justiça e a outros direitos (e até mesmo em oposição aos deveres com os quais eles supostamente deveriam ser correlacionados e que fornecem o seu conteúdo normativo) e devem ser violados ou desconsiderados quando a balança pesa contra eles. Os direitos se cancelam e os conflitos entre eles convidam a soberania a exercer um poder cada vez maior. 

Portanto, o conceito de direitos desabou – e, como essa lista não exaustiva de problemas revela, o colapso é sistêmico. Para ser breve, focarei em dois desses problemas. 

O primeiro problema é que a abordagem da massividade desvaloriza os direitos até quase zero. Na abordagem agora dominante da massividade, a violação dos direitos não é apenas permissível, mas também exigida quando a balança de motivos pesa contra honrar os direitos. 

Para chegar à igualdade de direitos, o valor normativo de direitos genuínos deve ser destruído. Direitos verdadeiramente invioláveis devem ter o mesmo status que direitos contingentes para que todos os “direitos” possam e devam ser “violados” ou superados por motivos contraditórios. 

É assim que acabamos tendo o mesmo termo para definir o direito de uma pessoa inocente não ser deliberadamente assassinada e o “direito” de matar deliberadamente uma pessoa que por acaso está no útero. O “direito” ao aborto está sendo confundido com o prestígio e a força normativa do direito inviolável à vida. Enquanto isso, a força normativa do direito inviolável é reduzida. 

O segundo problema é que a abordagem da massividade não faz nada para resolver o problema do positivismo. Ela simplesmente transfere a intenção soberana de um legislativo soberano para o braço judicial ou para a agência administrativa. A soberania permanece intacta e incomparável em seu poder totalizante. A lei não se aplica ao soberano, e os direitos não são direitos em nenhum sentido significativo. 

Portanto, a abordagem predominante dos direitos tem apenas custos, sem benefícios. Isso causa um colapso no valor normativo dos direitos sem entregar nada da promessa do liberalismo. 

A teoria perfeccionista do direito oferece uma solução 

Contra a abordagem predominante, surgiu nas últimas décadas uma concepção alternativa de direitos a partir da escolha de filosofia jurídica chamada teoria do direito perfeccionista. Essa escola se desenvolve a partir do trabalho de liberais perfeccionistas, como Joseph Raz, e teóricos do direito, como John Finnis e Robert P. George. 

Perfeccionismo significa uma abordagem em que o bem precede o direito. Ou, para explicar de modo diferente, as concepções perfeccionistas do direito dizem que os direitos não podem ser estabelecidos nem especificados sem uma deliberação prévia ou contemporânea do que é bom e ruim, certo e errado – o que fazer e o que não fazer. 

Como já deveria ficar claro, a abordagem perfeccionista transforma a arquitetura da construção dos direitos de dois modos. Ela muda a perspectiva do ponto de vista do direito do requerente para o ponto de vista do portador do dever, o agente moral que tem alguma obrigação ou responsabilidade para com o portador do direito e que precisa saber o que ele pode e deve fazer ou não fazer. Isso restaura a importância dos direitos. Os direitos são importantes porque oferecem respostas necessárias para a questão mais importante, a questão prática das relações humanas: Como eu devo agir em relação a esta pessoa? 

A abordagem perfeccionista também restaura o valor normativo dos direitos ao construir direitos com base em bens humanos genuínos. Os direitos são estabelecidos e especificados apenas em favor dos bens que são realmente valiosos para os seres humanos. E eles garantem esses bens ao eliminar da deliberação, excluindo de consideração, motivações para ações que são contrárias ao bem e que podem nos levar para longe das nossas obrigações para com os outros. 

Consideremos os direitos de propriedade. A liberdade de administrar e utilizar algo em comunidade com outros – o que chamamos de liberdade de propriedade – tem grande valor moral. Como eu defendi em um livro, a propriedade privada permite que os seus donos, seus colaboradores e seus beneficiários se constituam como pessoas praticamente razoáveis. 

Uma declaração de que os donos devem ser livres para usar suas coisas é uma conclusão retirada da observação de que o uso da propriedade privada atende a pelo menos um aspecto importante do bem-estar. Os direitos de propriedade exprimem o peso dos bens humanos servidos pela propriedade privada. Eles também garantem esses bens ao eliminar da deliberação as motivações que podem nos impedir de respeitar os planos de outras pessoas para as coisas que estão sob seu domínio e controle. 

Essa é a recompensa da nossa reconstrução de direitos: por serem fundados nas deliberações fundamentadas de comunidades, incluindo comunidades pré-políticas (e intermediárias), os direitos de propriedade e outros como eles (como os direitos fundamentais do casamento natural e da família biológica) são estabelecidos e especificados anteriormente a qualquer codificação do direito positivista. Eles não dependem do Estado para a sua existência e podem impor diversas obrigações morais às autoridades públicas. 

Certamente, a autoridade legal de regras e julgamentos do direito positivo dependem, em grande parte, de normas que a precedem, das quais não são constitutivas, mas apenas declaratórias. Não roubarás: seja um morador da China comunista, da Singapura capitalista ou de uma região tribal governada por tradição na área mais remota da África. 

Ao restaurar a integridade estrutural e o valor normativo dos direitos, a abordagem perfeccionista também resolve o problema do positivismo. A lei não depende totalmente da vontade do humano soberano (e não é determinada por ela). Ela pode ser – e é – baseada na autoridade de instituições de ordem privada, em costumes e em leis naturais – até mesmo Deus. Sobre essa fundação talvez possamos começar a reconstruir o nosso discurso de direitos desmoronado, o Estado de Direito e a promessa de uma liberdade ordenada que as nações anglófonas mantiveram por gerações aqui e em todo o mundo. 

Adam MacLeod é professor associado na Faulkner University’s Thomas Goode Jones School of Law (Escola de Direito Thomas Goode Jones, da Universidade de Faulkner, Alabama) e é autor do livro “Property and Practical Reason” (“Propriedade e Razão Prática”, em tradução livre). Esse ensaio foi adaptado de uma palestra realizada em Montgomery, Alabama, e em um evento apresentado pela filial de Montgomery de advogados da Federalist Society e do Institute of Faith & The Academy da Universidade Faulkner.

Publicado em português com permissão. Original em Public Discourse: Ethics, Law and the Common Good.

Tradução: Andressa Muniz
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