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 | Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasilnome do fotografo/Agência Brasil
| Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasilnome do fotografo/Agência Brasil

O Movimento Brasil Livre (MBL) se meteu em práticas antigas da política brasileira. O Projeto de Lei (PL) 3.174/2015, a que o movimento declarou apoio na última segunda-feira (19), não passou por nenhuma Comissão da Câmara dos Deputados e foi incluído, logo depois de proposto, ao PL 4.500/2001, que está pronto para entrar em pauta desde 2002 e agora tramita em regime de urgência, a pedido do deputado do autor do próprio projeto de 2015, o deputado Giovani Cherini (PDT-RS). 

Leia também: Fim do regime semiaberto: menos violência ou retrocesso?

Não é incomum a tentativa de aprovação de uma proposta pegar carona em outras no Congresso Brasileiro. As emendas nas medidas provisórias são conhecidas como jabutis e há casos famosos, como a inclusão do fim do exame para ingressar na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) na MP sobre o Programa Mais Médicos. As MPs têm origem em iniciativas do Executivo para aplicação imediata e, para que virem lei, sem data de validade, precisam ser aprovadas pelo Congresso. Mas a estratégia é semelhante quando se apensa um PL  a outro que já tramita há bem mais tempo e não tem o mesmo tema: aprovar rápido uma mudança que pode ter bastante impacto social, sem passar por todas as instâncias de debate, ou seja, sem seguir o processo democrático previsto.

À primeira vista pode até parecer que o PL a que foi apensado o projeto sobre o fim do regime semiaberto tem tema semelhante, já que os dois tratam de matéria penal. Mas o fato é que, no projeto mais antigo, só houve discussão sobre a mudança na progressão da pena, e no curso dessa tramitação não se debateu o fim desse regime. Na prática, se a extinção do semiaberto for proposta pelo relator e a Câmara aprová-la, o resultado será que a questão terá sido discutida apenas pelo plenário sem ter passado por nenhuma comissão ou audiência pública. A casa não terá oportunidade de discutir em detalhes a proposta, porque o PL 4.500/2001 é o oriundo do Senado, de onde saiu como PLS 104/1995. A Câmara já atua como casa revisora nessa etapa do processo legislativo. A pressa em aprovar uma mudança tão fundamental no Código Penal está sendo duramente criticada por especialistas.

Questionado sobre a pertinência temática entre os projetos e sobre a pressa com que a matéria está sendo tratada, o autor do PL 3.174/2015, deputado Giovani Cherini, não respondeu aos questionamentos da reportagem até o fechamento desta matéria. 

Sobre o mesmo assunto, em entrevista ao Justiça & Direito, Kim Kataguiri, representante do MBL, afirmou foi informado pelo Movimento Paz de Novo Hamburgo – que vinha encabeçando o lobby pela proposta – que o PL 3.174/2015 já tinha passado por comissões, mas “de qualquer maneira, o projeto será discutido pelo Senado, o que não trará prejuízo à discussão”. 

O Movimento Paz de Novo Hamburgo, por sua vez, informou ao Justiça & Direito que, em 2015, discutiu se era apressado propor a apensação do PL 3.174/2015 ao PL 4.500/2001, mas concluiu que a matéria era “vinculada à segurança pública”. 

Entenda 

O PLS 104/1995, de autoria do falecido senador Romeu Tuma, à época no PFL- SP, pretendia apenas modificar dois artigos da Lei de Execução Penal, aumentando o lapso temporal para progressão de regime e introduzindo a necessidade de laudo criminológico para embasar a decisão do juiz de execução. Aprovado em 2001, ele seguiu para a Câmara, onde recebeu parecer favorável da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), em 2002. Desde então, ele tem dormitado na casa, recebendo diversos outros apensos. 

Atualmente, há 52 projetos de lei apensados ao PL 4.500/2001 (projeto principal) e todos tratam, de alguma forma, do endurecimento da progressão de regime, mas não da extinção desse elemento central no regramento penal brasileiro. O semiaberto é considerado fundamental na estrutura do sistema progressivo de cumprimento das penas, que vinha sendo aprimorado desde o surgimento do Código Penal em 1940. Dois marcos legislativos consolidaram o atual sistema: a Lei 6.416/1977 e a Lei 7.209/1984, que reformou a parte geral do Código Penal. 

Apesar da verdadeira revolução que o PL 3.174/2015 quer engendrar no direito criminal brasileiro, a Mesa da Câmara entendeu, em outubro de 2015, que ele tratava de “matéria análoga ou conexa” ao projeto principal, de acordo com o inciso I do artigo 139 do Regimento Interno da Câmara. Em fevereiro de 2016, o deputado Giovani Cherini, um dos autores do PL juntamente a outros deputados gaúchos, pediu urgência na tramitação do PL 4.500/2001. Em março, o plenário da casa aprovou o pedido. 

Rubens Glezer, professor da FGV-SP, considera a apensação uma burla do processo democrático. “Esse movimento tem problemas de processo legislativo e problemas constitucionais, ferindo o pluralismo partidário e o princípio republicano. Há problemas de moralidade política também”, afirma. “O que se pretende é trazer uma mudança drástica da legislação fugindo dos espaços de escrutínio público. Isso não é só leviano, mas antidemocrático”, completa. 

“O regimento da Câmara diz que as comissões devem dar parecer não só sobre o projeto principal, mas sobre cada um dos apensos. Se a regra geral é essa, prevista no artigo 57 do Regimento da Câmara, então todos os apensos que trazem mudanças substantivas devem ser apreciados por comissões. A exceção é apenas para matérias análogas ou conexas, o que não é o caso”, afirma Glezer. “Essa é uma opção política fundamental para haver controles de transparência e responsividade perante a população”, diz ainda. 

Para Zulmar Fachin, professor de Direito Constitucional, a literalidade do regimento interno da Câmara foi atendida. O artigo 127 do Regimento permite a existência de um parecer único para todas as proposições apensadas nas hipóteses do artigo 139, I, que, por sua vez, permite a apensação em caso de “matéria conexa ou análoga” e obriga a aplicação do parágrafo único do artigo 142: “A tramitação conjunta só será deferida se solicitada antes de a matéria entrar na Ordem do Dia ou, na hipótese do art. 24, II, antes do pronunciamento da única ou da primeira Comissão incumbida de examinar o mérito da proposição”. 

Semiaberto 

Sérgio Harris, promotor e presidente da Associação de Promotores do Rio Grande do Sul, defende a bandeira do fim do regime semiaberto. “Hoje, o sistema de justiça passa uma ideia equivocada para a sociedade: a pessoa é condenada para um determinado número de anos e depois não cumpre”, afirma. “O semiaberto não tem fiscalização e serve ao fortalecimento para facções – as facções tomam conta de locais do semiaberto e aí angariam presos para cometer crimes fora”, completa. 

Para o promotor, como a fiscalização e a construção de unidades adequadas do semiaberto são impossíveis na prática, pelas limitações do orçamento público, e a tecnologia criou novos meios de vigiar os presos, como as tornozeleiras eletrônicas, o regime semiaberto deixou de fazer sentido. 

“Há de fato um segundo problema que o projeto não vai e não pretende resolver: a superlotação e as facções nos presídios de regime fechado. Os problemas do regime fechado precisam ser resolvidos por outros projetos de lei e por investimentos em segurança pública”, ressalva Harris. 

Otávio Almeida Toledo, desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) e membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), reconhece os problemas do regime semiaberto, mas também critica o açodamento da proposta. “É possível discutir se um sexto da pena para a progressão é pouco, mas extinguir o semiaberto é outra coisa”, diz Almeida Toledo, que é autor de um livro sobre privação de liberdade. 

“É preciso partir dos princípios. A regra da progressividade do regime existe para beneficiar não o réu, mas a sociedade. Do contrário, você pega uma água suja, não trata a água e depois devolve para a sociedade”, explica. “A ideia de extinguir o semiaberto é perniciosa. Você vai jogar uma pessoa num lugar que não recupera ninguém, pelo contrário, e depois devolver para a sociedade”, critica. 

“Ainda é preciso discutir se o regime fechado deve começar mesmo para todo mundo com a condenação a quatro anos de prisão, como está previsto no projeto”, afirma Harris. Para o promotor, o semiaberto não cumpriu a função de ressocialização. “A pena é mais que ressocialização. Ela é também prevenção geral, prevenção individual e a necessária repressão: a pena é castigo. Se junto com tudo isso vier a ressocialização, melhor. Mas a ressocialização do preso é a única depende de uma via de mão dupla, porque depende do Estado e da vontade do condenado”.

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