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Nenhuma cultura familiar realmente saudável pode florescer sem o apoio do direito | Pixabay
Nenhuma cultura familiar realmente saudável pode florescer sem o apoio do direito| Foto: Pixabay

Nota do editor: o termo “liberal” em inglês, tem uma conotação próxima à de “progressista” ou “de esquerda” em português. Neste texto, em que se discute a neutralidade do Estado em questões morais, a tradução do termo pode abarcar, sem trair o argumento, também os liberais no sentido corrente em português. Optou-se,  conforme o contexto, por “de esquerda” ou “liberal” para traduzir “liberal”.

Uma série de contratempos nas guerras culturais pode tentar os conservadores a se afastar de qualquer novo conflito sobre o casamento e a vida familiar, “deixando o Estado fora dessas questões”. Casamentos, então, seriam uma preocupação apenas dos próprios casais e das instituições da sociedade civil com que as pessoas casadas se relacionam. De todo modo – os conservadores podem pensar –, é melhor não ter nenhum reconhecimento estatal do casamento do que ter um reconhecimento equivocado. 

Essa tentação de tornar o casamento uma questão privada parece justificada por diversos motivos. Primeiro, muito da vida conjugal e familiar é de fato privada. Há pouca influência governamental direta nas escolhas de fazer sexo, ter filhos, criar os filhos, e assim por diante. 

Segundo, nossas circunstâncias culturais mudaram: muito do que parece privatização já ocorreu em questões relacionadas ao casamento e à vida familiar. Enquanto sociedade, nós tornamos uma questão privada o acesso a métodos contraceptivos, afrouxamos regulamentações sobre obscenidade e pornografia, permitimos o divórcio fácil e agora igualamos os relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo ao casamento. O casamento em geral pode não ter escolha a não ser seguir essa tendência. 

Nossas convicções: A importância do casamento

Como outras pessoas já argumentaram, tal posição adota a ilusão liberal central de que o estado pode ser neutro em controvérsias morais. Meu novo ensaio “Can the State Be Neutral on Marriage?” (“O Estado pode ser neutro em relação ao casamento?”, em tradução livre) combate essa crença

Por quê? Porque a abordagem liberal do casamento cultiva uma ética da individualidade expressiva, compromete a orientação das paixões e também tende a enfraquecer os direitos familiares. 

Não há terreno neutro 

A tentação de tornar privado o casamento é outra aplicação da aspiração liberal e libertária contemporânea de neutralidade estatal. Controvérsias morais, como aquela acerca da natureza do casamento, são, desse ponto de vista, “postas entre parênteses” ou retiradas do domínio da política para que os grupos majoritários não possam mais votar sobre elas. Os liberais fingem acreditar que a privatização de controvérsias morais não terá efeitos práticos. 

Na verdade, porém, não existe um direito neutro. As leis tornam alguns pensamentos mais cogitáveis e algumas ações, mais realizáveis. Quando as pessoas tratam todas as formas de relacionamentos adultos como igualmente válidos (como os privatizantes insistem que são), os costumes também mudam, de modo que se concede a todos os relacionamentos o que Ronald Dworkin chama de “igual consideração e respeito”. Isso afeta o comportamento e as atitudes das pessoas, separando honra ou vergonha das ações em si.

A escolha acerca de permitir escolhas nas questões de casamento é, por si só, uma escolha – uma escolha que é moldada por considerações morais específicas e que tem ramificações morais inevitáveis no longo prazo. Decidir se o Estado deve deixar as pessoas livres para escolher em questões de casamento e sexualidade é decidir que esse domínio é realmente privado e, portanto, irrelevante – como a escolha de um corte de cabelo; ou que se eleve as escolhas pessoais acima do bem comum – como a escolha de definir o que é casamento.

As leis sempre reverberam pela cultura. Retirar o casamento da proteção das leis ensina que a forma ou o propósito do casamento é uma questão indiferente do ponto de vista público. Isso molda as condutas morais e sociais para uma indiferença pelo casamento e uma concepção mais flexível dele. Os resultados estão em todo lugar ao nosso redor. Até mesmo supostos privatizantes, como Lawrence Friedman, reconhecem implicitamente que “‘A república da escolha’ (...), um mundo em que o direito ‘de ser você mesmo’, de escolher a si mesmo, é colocado em uma posição especial e privilegiada, em que a expressão tem prioridade sobre o autocontrole”. 

Moralidade e o desafio das paixões 

Um país sempre legisla uma moralidade. A única questão é qual moralidade. As leis promoverão uma ética do autocontrole ou uma ética da autoexpressão? As leis incorporarão a ideia, ancorada no individualismo, de que o casamento é uma convenção que os indivíduos podem moldar para se adaptar aos seus desejos? Ou eles incorporarão a ideia de que o casamento é uma instituição com objetivos específicos (procriação e educação de crianças) que são mais bem atingidos por meio de uniões monogâmicas entre um homem e uma mulher? O meio caminho da neutralidade é um cavalo de Troia para avançar um compromisso em direção ao individualismo expressivo. 

A existência de cada comunidade política depende de adultos casados terem filhos e criá-los para uma vida adulta responsável. As sociedades dependem de esses futuros cidadãos possuírem autocontrole, uma ética de trabalho saudável, altos níveis de confiança, perseverança, uma capacidade de executar planos de longo prazo acima da satisfação em curto prazo, assumirem responsabilidade pelas próprias ações, e terem civilidade. 

Nossas convicções: O valor da família

As paixões humanas tornam mais complicado assegurar o tipo de caráter necessário para manter um povo que se autogoverna. As crianças devem ser criadas para controlar os seus impulsos e subordinar suas paixões a objetivos valiosos. Desejos eróticos adultos também devem ser canalizados em direção a relacionamentos duradouros e à procriação responsável. Homens e mulheres devem ver seu casamento, a paternidade e a maternidade como componentes importantes de uma vida boa em meio à concorrência das carreiras e de outras reivindicações de seu tempo e energia. 

Como as pessoas respondem a esses desafios depende muito da moralidade pública – ideias predominantes acerca das coisas boas e honrosas em uma comunidade política. Nenhuma instituição atende melhor ao desafio das paixões do que o casamento estável, monogâmico e heterossexual. A família que surge de tal casamento é centrada em parte na devoção individualizada a crianças, ajuda a colocar as paixões sexuais adultas em um lugar apropriado e subordinado a uma vida compartilhada, e atrai lealdade com a promessa de companheirismo vitalício e afeto mútuo. 

As leis que ainda apoiam uma moralidade pública de autocontrole têm como justificativa principal o objetivo de manter um ambiente em que homens e mulheres possam formar laços duradouros e monogâmicos. Por exemplo, proibições de prostituição, incesto, poligamia, demonstrações públicas de pornografia, nudez pública e fornicação pública permanecem. Cada um desses elementos restantes de uma ética robusta que promove o autogoverno merece reflexão cuidadosa. 

Proteção dos bons costumes

Consideremos a proibição da fornicação e da nudez públicas. Tais atos tiram o mistério do sexo, enfatizando a proximidade dos humanos com os animais em vez de nossas relações pessoais, únicas, uns com os outros; tais proibições refletem uma crença de que há algo especial no sexo humano que se apoia na nossa capacidade de amar e sentir vergonha. Demonstrações públicas de tais coisas tenderiam a liberar ainda mais as paixões eróticas das suas amarras a relações duradouras e amorosas e de permitir que o olhar se perca ainda mais por aí. A nossa proibição contra fornicação e nudez públicas faz sentido como um elemento que promove relações duradouras e monogâmicas. 

A decisão do ministro da Suprema Corte Warren Burger em Paris Adult Theatre versus Slaton (1973) justifica os limites da exibição pública de pornografia explícita: 

“O acúmulo de experiência, incluindo as das últimas duas décadas, oferece uma ampla base para legislaturas concluírem que uma relação sensível e fundamental da existência humana, central para a vida familiar, o bem-estar da comunidade e o desenvolvimento da personalidade humana, pode ser degradada e distorcida pela exploração comercial e vulgar do sexo” 

Os anos seguintes confirmam a contenção da Corte. A moralidade sexual mais permissiva instigada pelo consumo público de pornografia criou relações distorcidas e degradadas. Isso despersonalizou o sexo e mudou os padrões do que constitui uma aparência modesta ou vergonhosa. Isso torna a cultura americana menos hospitaleira para casamentos duradouros, relações monogâmicas íntimas e vida familiar responsável. 

Como resultado da nossa aceitação do individualismo expressivo, ampliamos a definição de obscenidade, garantimos a liberdade de divórcio, cultivamos o tratamento igual para coabitação e casamento, aceitamos casais do mesmo sexo e superamos muitos outros elementos da ética (ethos) que favorece o autocontrole e autogoverno. Tudo isso foi feito para promover ideias específicas sobre a sexualidade humana, educação infantil e dependência conjugal. 

As leis que permitem a obscenidade e, portanto, desregulamentam a pornografia, por exemplo, podem sustentar implicitamente que o desejo sexual é naturalmente bom e não problemático, desde que tabus sociais não imponham restrições artificiais a ele e desde que seja consensual. Nessa visão, a libertação do desejo sexual de restrições tradicionais, o fim da humilhação e da vergonha públicas, o apagamento da ideia de que há canais sexuais “certos” e “errados”, e até mesmo o fim da vergonha como um sentimento privado são necessários para um crescimento mais completo da felicidade e da virtude. Desregulamentar a pornografia promove a “modernização” do sexo. 

Leis de divórcio, entre outras coisas, tornam a dependência mútua de um casamento mais difícil de sustentar. Elas exigem que a mulher, principalmente, tenha uma abordagem mais independente do casamento. Os casamentos não podem mais ser uma prioridade alta em suas vidas sem que corram riscos por isso. De qualquer modo, “as crianças ficarão bem”, como diz um livro de um autor “completamente moderno” – independentemente do quanto os pais e especialmente as mães fizerem. 

Leia também: O Estado quer roubar o poder de decisão dos pais e é preciso evitar isso

Os “privatizadores” podem sugerir que aqueles que desejam uma vida de monogamia devota e que se dedicam a criar os filhos ainda são livres para fazer isso sem interferência da lei e sem reprovação cultural. Há alguma verdade nisso. Muitas pessoas orientam-se por autoridades que não o direito e a moralidade pública predominante, como igrejas, tradições ou simplesmente o hábito. Essas autoridades, desde que sejam toleradas, podem oferecer apoio à ética do autocontrole, do autossacrifício e da administração das paixões. 

A vida familiar tradicional não está tão fora da lei quanto está comprometida e desonrada. As pessoas são criaturas sociais. Portanto, a cultura predominante – que é moldada, em parte, por meio das leis – afeta a todos. A aceitação de divórcio sem culpa, o grande consumo de pornografia e a aceitação da coabitação como igual ao casamento são instigados pelas leis que promovem uma ética (ethos) de individualismo expressivo. Assim como essa cultura depende do direito, também dele depende uma cultura com ênfase no cultivo do autocontrole e do amor monogâmico. Elementos das nossas leis ainda tendem a auxiliar a promoção do autocontrole. 

A nova parentalidade 

Tirar o Estado da questão do casamento significaria refundar em novas bases os direitos e a autoridade dos pais por meio da criação de novas unidades criadas pelo Estado. A sociedade exige que alguém supra as necessidades da criança, escolha a sua escola e ofereça apoio e supervisão para crianças em casa. 

Para substituir o casamento, a esquerda contemporânea faria o Estado criar “Unidades de Cuidado Íntimo” (UCIs), utilizando o conceito de Tamara Metz, para regular e incentivar relações entre cuidadores e dependentes. As UCIs identificariam cuidadores e então incentivariam o cuidado por meio de verbas públicas, de regulação do espaço de trabalho para oferecer tempo de folga ou espaço aos cuidadores especificados e da atribuição de certos poderes para tomar decisões em nome do dependente. 

Empiricamente, tais unidades criadas pelo Estado fracassaram, em grande escala, nas periferias das cidades americanas, entre outros lugares. Mas é crucial ver por que elas são ineficazes. 

As UCIs são construídas sobre a suposição de que, para o cuidador, a dependência de bebês e crianças não é diferente da dependência de idosos ou enfermos. Isso abstrai o quanto a relação entre cuidadores (por exemplo, casamentos) dá impulso para o cuidado de dependentes (por exemplo, crianças). Isso supõe que o cuidado surge, do jeito que é, do nada, em vez de ser uma expressão do amor conjugal, do dever ou da responsabilidade parental devotada. O Estado seria proibido de incentivar estabilidade e exclusividade entre cuidadores – e, portanto, não promoveria estabilidade, compartilhamento de recursos ou responsabilidades mútuas entre “cuidadores”. Essa instabilidade tornaria ainda mais difícil identificar os pais e supervisionar, disciplinar, inspirar e educar as crianças. 

Outros problemas práticos surgem nesse cenário, como o estabelecimento da maternidade e da paternidade, a dissolução de direitos familiares e a definição da extensão da intimidade e do cuidado necessários para se tornar uma unidade apta a receber patrocínio estatal. 

Considerando a predominância dos que promovem o individualismo expressivo, é necessário que aqueles que defenderiam a família comecem seus esforços nas suas próprias famílias, nas igrejas e na sociedade civil como um todo. Isso pode começar a limitar a ética (ethos) dedicada ao individualismo. No fim das contas, entretanto, nenhuma cultura familiar realmente saudável pode florescer sem o apoio do direito. Os conservadores de hoje devem testemunhar em prol desse fato, sabendo que, por enquanto, pode não haver ouvidos para escutar. 

Scott Yenor é professor de Ciência Política na Boise State University e em 2015-2016 foi associado visitante em Pensamento Político Americano no B. Kenneth Simon Center for Principles and Politics na The Heritage Foundation. É autor de “Family Politics: The Idea of Marriage in Modern Political Thought” (“Política Familiar: A Ideia de Casamento no Pensamento Político Moderno”, em tradução livre) e “Hume’s Humanity: The Philosophy of Common Life and Its Limits” (“A Humanidade de Hume: A Filosofia da Vida Comum e Seus Limites”, em tradução livre).

©2018 Public Discourse. Publicado com permissão. Original em inglês.

Tradução: Andressa Muniz
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