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A eutanásia para pacientes com doenças mentais ou com problemas cognitivos é algo intrinsecamente controverso. Considerando o risco de erro fatal, quantos casos equivocados seriam necessários para descartar totalmente a prática?

Se você respondeu “qualquer número maior do que zero”, pode se interessar pela morte assistida de uma mulher de 74 anos com demência na Holanda em 2016. As circunstâncias foram tão perturbadoras que até mesmo o órgão regulatório holandês que revisa, e geralmente aprova eutanásias retrospectivamente não conseguiu apoiar o caso.

A paciente, referida em documentos oficiais apenas como “2016-85”, havia feito uma diretriz antecipada (o chamado “testamento vital”) solicitando eutanásia em caso de demência. Mas o documento foi escrito de modo ambíguo e a mulher não tinha mais capacidade para esclarecer os seus desejos no momento em que foi colocada em um asilo – e o seu marido pedir a eutanásia para ela.

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Apesar da ausência de uma permissão clara da paciente, um médico concluiu que o seu sofrimento era insuportável e incurável – apesar de não haver nenhuma doença física terminal – e preparou uma injeção letal.

Para se assegurar da concordância da paciente, o médico lhe deu café com sedativos, prática vedada pela legislação, e, quando a mulher ainda assim se esquivou da agulha, ele pediu que os familiares a segurassem. Depois de quinze minutos necessários para que o médico encontrasse a veia, a infusão letal se espalhou.

Sem ser voluntária, indolor ou digna, a morte dessa senhora se tornou a primeira investigada pelos promotores da comissão responsável por regular a prática na Holanda – com, até o momento, consequências desconhecidas.

É possível ter alguma empatia pelo médico. Eutanásia é algo comum na Holanda e os critérios legais para a sua implementação são totalmente subjetivos: “sofrimento insuportável”, “cuidado devido” e, o mais confuso de todos, principalmente em casos de demência ou debilidade mental, um “pedido voluntário e bem refletido”.

Como os bioéticos David Miller e Scott Kim, dos Institutos Nacionais de Saúde dos EUA, escreveram em um trabalho recente, “Médicos holandeses (...) relatam dificuldades em aplicar as leis [da eutanásia]”, principalmente quando se trata de julgar a vontade dos pacientes e decidir se há alguma “alternativa razoável” para a eutanásia. Entre 2012 e 2016, segundo Miller e Kim, houve 33 casos em que os reguladores holandeses constataram que os médicos haviam quebrado pelo menos uma regra ao dar fim à vida de uma pessoa, apesar de não ter sido de modo tão flagrante quanto para iniciar uma ação penal.

Médicos ativistas pró-eutanásia foram defendidos à revelia da lei em casos problemáticos. “Em alguns casos, os médicos desafiaram conscientemente os limites da legislação”, observaram Miller e Kim.

De qualquer modo, uma mulher de 29 anos, “Sarah”, cuja única queixa médica é um caso de depressão séria e quase vitalícia, além de comportamentos de automutilação, recebeu permissão para eutanásia, que acontecerá na sexta-feira, de acordo com o jornal holandês RTL Nieuws.

Ela saiu da prisão em dezembro de 2016, após cumprir pena de 2,5 anos por incêndio culposo. Sem receber tratamento psicológico enquanto estava encarcerada, depois de doze meses ela convenceu os médicos de que o seu sofrimento psicológico era insuportável e incurável.

“Foi um caminho longo e difícil até ela finalmente conseguir permissão”, apontou a RTL Nieuws. “E é por isso que Sarah quer atenção para a sua história. Não para si mesma, mas para outras pessoas que também consideram a vida psicologicamente muito pesada, não têm chances de cura e querem morrer de modo digno.”

“Tenho certeza de que na Bélgica as pessoas morreram quando ainda havia opções de tratamentos e uma chance de anos e até mesmo décadas de vida.”

Joris VandenberghePsiquiatra da Universidade de Leuven

A experiência belga

Na Bélgica, enquanto isso, relatos de eutanásias precipitadas e questionáveis de pessoas com doenças mentais acenderam um debate sobre morte assistida. A Bélgica legalizou a morte assistida em 2002, e a prática tem grande apoio.

Joris Vandenberghe, psiquiatra na Universidade de Leuven, está pedindo um controle mais rígido do Estado. Ele reclamou no ano passado que pacientes psiquiátricos morreram nas mãos de médicos que não conseguiram cumprir os critérios estabelecidos na lei belga: “Tenho certeza de que na Bélgica as pessoas morreram quando ainda havia opções de tratamentos e uma chance de anos e até mesmo décadas de vida.”

O apoio à prática ainda é amplo, tão forte que os Irmãos da Caridade, uma organização da Igreja católica que opera o maior grupo de hospitais psiquiátricos na Bélgica, concordou em aceitar pedidos de eutanásiacontrariando as diretrizes do Vaticano.

Essa decisão foi tomada após um tribunal belga ordenar que outra instituição católica pagasse indenização para a família de uma mulher de 74 anos com doença terminal porque os administradores do local se recusaram a fazer a eutanásia e pediram para que ela fosse a outro hospital para essa prática. O tribunal decidiu que consciência religiosa não era uma justificativa.

O Vaticano poderá punir os hospitais dos Irmãos da Caridade, mas a influência do Papa Francisco nos Países Baixos é limitada. Na região, muitos saúdam a eutanásia legal como uma vitória para a autonomia individual acima da doutrina religiosa.

A pressão internacional de instituições seculares poderia impedir a expansão da eutanásia de pessoas com doenças mentais ou deficiências cognitivas, cuja capacidade de “consentimento” em relação à própria morte é claramente duvidosa. Mas a Associação Mundial de Psiquiatria evitou totalmente a questão durante o seu congresso em Berlim, em outubro do ano passado.

Por enquanto, essas pessoas vulneráveis, e aqueles que as protegem na Bélgica e Holanda, estão abandonados pelo poder estatal e fadados a defender-se apenas por si mesmos.

* Charles Lane é colunista do Washington Post, especializado em políticas públicas.

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