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| Foto: Hugo Harada/Gazeta do Povo

As primeiras seis versões de textos da Constituição Federal e o “Projeto A”, votado no primeiro turno da Assembleia Nacional, previam eleições diretas, a qualquer momento, no caso de vacância dos cargos de presidente e vice-presidente da República. O eleito iniciaria um novo mandato completo (cuja duração, entre quatro e seis anos, também estava em debate). Mas a versão definitiva do texto constitucional acabou por definir que, em caso de vacância, nos dois primeiros anos de mandato, haveria eleições diretas; nos dois últimos, indiretas.

A norma que prevaleceu na versão final da Constituição retoma as regras das Constituições de 1946 e de 1891 e só foi introduzida no texto, pela primeira vez, no substitutivo apresentado pelo relator da Comissão de Sistematização, o então deputado Bernardo Cabral, eleito pelo PMDB do Amazonas. 

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É verdade que o tema foi objeto de algumas discussões durante os trabalhos, mas a hipótese de se fazer uso do dispositivo era vista como remota por alguns constituintes. Mal podiam imaginar. A questão acabou eclipsada pelo embate sobre quando terminaria o mandato do então presidente José Sarney, pelas disputas entre o centrão e o ex-deputado Mario Covas – então PMDB-SP, uma vez que o PSDB ainda não tinha sido fundado – e pela controvérsia sobre qual sistema de governo o Brasil devia adotar: o presidencialista, o parlamentarista ou uma mistura dos dois. 

Durante quase todo o processo, duas posições polarizaram os poucos debates que houve sobre a eventual vacância. De um lado, aqueles que defendiam a realização de eleições diretas com o início de um novo mandato, de quatro, cinco ou seis anos. De outro, a ala que defendia as regras da tradição constitucional brasileira, inspirada no modelo dos Estados Unidos, segundo as quais, havendo vacância, o novo eleito cumpriria o restante do mandato e, se a eleição ocorresse na segunda metade do período, seria indireta, por meio do Congresso Nacional. É a regra que acabou no texto final da Constituição de 1988. 

Choque de datas

Os juristas que defendiam as regras de 1946 tinham como objetivo evitar que uma eventual vacância passasse a descasar as eleições legislativas e executivas e, com isso, a vida dos presidentes ficasse mais difícil, uma vez que passariam a ter de lidar com dois Congressos diferentes durante seus mandatos. A ala dos constituintes que comprou a ideia também queria evitar o dispêndio de recursos e de energia para fazer a eleição direta de um presidente que governaria por pouco tempo, caso se aprovasse, no fim das contas, que o eleito só completasse o mandato em curso. 

O então senador José Fogaça, hoje deputado federal pelo PMDB-RS, foi relator do projeto na subcomissão de Poder Executivo. As 24 subcomissões da Constituinte funcionaram de abril a maio de 1987. 

O  anteprojeto apresentado à subcomissão previa, aberta a vacância, uma eleição a ser realizada em 60 dias para um novo período de quatro anos. Desde o início das discussões, porém, membros do colegiado já apresentavam emendas ao projeto do relator no sentido de recuperar a tradição constitucional: se o cargo vagasse na segunda metade do mandato, as eleições seriam feitas indiretamente pelo Congresso Nacional. Apesar disso, a versão final da subcomissão manteve a ideia original, apenas reduzindo o período de realização de novas eleições para 30 dias. 

“O debate era radical e muito intenso naquela época. Estávamos saindo de uma ditadura. A maioria dos deputados praticamente não tinha votado para presidente. Eleição indireta era sinônimo de Colégio Eleitoral e Colégio Eleitoral era palavrão. Mas hoje já não tenho essa posição dogmática. O mecanismo da Constituição, em si, não é antidemocrático”, afirmou o deputado José Fogaça em entrevista ao Justiça & Direito. “Nossa avaliação naquele tempo é que presidente da República não dura no Brasil, então sempre que houvesse um problema, entregaríamos para o povo decidir”, completa. 

“Um dos nossos medos era que, sendo eleito para um período curto, um presidente legitimado pelo povo pudesse argumentar que a crise ou a situação política o levaria a propor uma emenda para estender seu mandado, dada a impossibilidade de resolver os problemas do país em pouco tempo”, diz Fogaça, explicando por que a previsão inicial era a de que, sempre que houvesse eleição direta, o eleito começaria um novo mandato completo.

“Naquele momento, se dizia que a dignidade do país só seria devolvida com o funcionamento pleno do Congresso brasileiro”, José Fogaça, deputado federal pelo PMDB-RS

A discussão voltou à tona na Comissão de Organização dos Poderes e Sistema de Governo, que recebeu a proposta aprovada anteriormente. A Constituinte tinha 8 comissões, que funcionaram entre abril e junho de 1987. O deputado Vivaldo Barbosa (PDT-RJ), por exemplo, quando defendeu a regra tradicional em uma proposta de emenda, escreveu: “A emenda visa regular a vacância em termos nacionais, respeitada a data tradicional das eleições. Se a vacância ocorrer na segunda metade, não se justificará a convocação ao povo para um período tão curto de mandato, ficando o Congresso investido dessa missão”. No entanto, a comissão, que tinha como relator o deputado Egídio Ferreira Lima (PMDB-PE), acabou optando por manter a linha inaugurada pela subcomissão. 

Nesse momento, ainda prevalecia entre os constituintes a ideia de que o Brasil teria como sistema de governo o parlamentarismo presidencialista, em que o presidente e o primeiro-ministro dividiriam algumas funções de Estado e governo, modelo inspirado nos sistemas francês e português. 

O deputado Egídio Ferreira Lima já vaticinava a falência do presidencialismo forte brasileiro: “O nosso Presidencialismo revelou-se falho e fomentador de impasses. A sua história é o retrato perfeito da instabilidade e das rupturas institucionais. Basta dar de vista no passado e uma reflexão sobre o próprio presente para que se conclua pela dramaticidade de seu percurso. Regala-se, ainda, de ser viveiro de corrupção, empirismo e do mais deslavado pragmatismo politico. Governo de um só homem, nele os partidos não se solidificam, a inteligência se torna solitária; quando não se deteriora, e os quadros técnicos e administrativos se transformam em ninhos de apaziguados e áulicos”, escreveu em seu relatório.

Surge a eleição indireta

As eleições indiretas só entraram de verdade em jogo na Comissão de Sistematização, que ficou responsável por reunir as propostas das Comissões e consolidar o texto que seria levado para os dois turnos de votação no plenário da Assembleia Nacional Constituinte (ANC). A regra da eleição indireta apareceu pela primeira vez no primeiro substitutivo apresentado pelo relator desta Comissão, o então deputado Bernardo Cabral, em agosto de 1987, quando o plenário da Assembleia Nacional já participava das discussões propondo emendas. 

No chamado “Projeto A”, apresentado por Cabral em novembro de 1987, voltou a constar a regra que previam eleições gerais e o início de novo mandato completo para o eleito, por força de uma emenda apresentada pelo então senador Nelson Carneiro (PMDB-RJ), aprovada inclusive por Cabral. Carneiro justificou a necessidade de restabelecer eleições diretas nos casos de vacância da presidência porque a Comissão tinha aprovado uma versão parlamentarista do texto constitucional. Desde a redemocratização, os parlamentaristas tinham o compromisso de manter a votação direta para presidente da República, que era uma bandeira da sociedade brasileira desde o fim do regime militar.

O Projeto A foi submetido ao primeiro turno de votações na ANC, já dominada pelo “centrão”, que aprovara a reforma do regimento interno da Assembleia, a fim de aumentar o poder do bloco em dezembro de 1987. A votação do Projeto A estendeu-se de novembro daquele ano a julho de 1988 e deu origem ao Projeto B. Nesta versão, que varreu o parlamentarismo da Constituição, consolidou-se finalmente a opção pela regra da eleição indireta que vale até hoje, com uma novidade: a previsão de que esse pleito ocorreria “na forma da lei”. Desde então, nenhuma lei específica foi votada pelo Congresso. 

Bernardo Cabral e seu assessor jurídico na constituinte, Sergio Ferraz, foram contatados pelo Justiça & Direito, mas não se dispuseram a falar sobre o tema.

O deputado Miro Teixeira (REDE-RJ), àquela época constituinte pelo PMDB-RJ, recorda que, em plenário, os argumentos que mais apareciam eram os da dificuldade e do custo de realizar eleições gerais, que não se justificariam para um mandato-tampão. “As pessoas acabaram se convencendo pela tradição brasileira”, afirmou em entrevista para o Justiça & Direito. O deputado ressalta, porém, que os tempos mudaram e essa situação se alterou radicalmente com as novas tecnologias, como a urna eletrônica. “Acabou-se a época de o povo perder ”, diz o deputado, que é o autor da PEC 227/2016, que pretende reformar o artigo 81 da Constituição e introduzir as eleições diretas para o caso de vacância dos cargos de presidente e vice, exceto nos seis últimos meses de mandato. 

O deputado Egídio Ferreira Lima também destaca a mesma percepção de Teixeira. “Nessa época, prevaleceu o argumento que fazer eleição direta seria oneroso demais para o país, mas eu, em particular, discordava disso: embora fosse oneroso, seria mais danoso se viessem a existir eleições diretas perto da seguinte, que influísse na próxima eleição do seu sucessor”, afirmou o ex-deputado, hoje com 88 anos, em entrevista ao Justiça & Direito. “Mas o melhor é que sempre houvesse eleições diretas”, completa.

Na apresentação da sua atual PEC, Teixeira afirma: “Em meio a tamanha crise de representatividade creio que o Congresso Nacional deve devolver ao povo, em qualquer circunstância, o direito de escolher o Presidente da República”.

Na reta final das discussões sobre o texto definitivo, em julho de 1988, o deputado Egídio Ferreira até tentou manter regra original, apresentando uma emenda para suprimir os parágrafos 1º e 2º do que viria a ser o artigo 81 da Constituição. Justificou: “A eleição indireta do presidente da República, mesmo no caso de vacância dos cargos de presidente e vice, nos últimos dois últimos anos de mandato, é de todo desaconselhável, no sistema presidencialista a legitimidade do Governo decorre da eleição popular do presidente. Suprimi-la, por mais incidental que seja a hipótese, é deixar uma brecha à aventura e aos impasses institucionais. Assegurado o processo eleitoral direto, com os dois turnos, para o caso de vacância, impõe-se que os sucessores, em qualquer caso, iniciem um mandato de cinco anos. Com Isto, evita-se a utilização de todo o ritual eleitoral para períodos curtos. Todo presidente e vice são sempre eleitos por cinco anos. Essa é uma solução racional e que vem sendo adotada por outros países, com indiscutível êxito, como é o caso de Portugal”. 

O deputado Carlos Alberto Caó (PDT-RJ) também estranhou a eleição indireta pelo Congresso e sugeriu, em uma proposta de emenda, sua supressão do texto final: “Os termos do contido parágrafo 1º contrariam a proposta democrática contida no texto constitucional. A supressão se propõe como absolutamente necessária à consolidação do processo democrático em nosso país”. Mas não foi atendido.

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