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| Foto: Pedro Serapio/Gazeta do Povo

Falta muita transparência ao Sistema Nacional de Controle de Interceptações Telefônicas do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Em 2015, segundo dados do próprio CNJ, havia 98.224 ofícios em andamento com pedidos de interceptação de telefones e endereços eletrônicos e uma média de 24.000 alvos monitorados por mês. No entanto, um relatório de transparência publicado pela Telefônica da Espanha revelou que, no mesmo ano, a empresa atendeu a 326.811 requerimentos de interceptações no Brasil. 

Os dados do CNJ não são claros. Embora se obtenha um total de 289.556 de interceptações de telefones e endereços de e-mail no Brasil quando se soma o total de janeiro a dezembro, a jurisprudência brasileira tem permitido a prorrogação das interceptações por mais de um mês, o que não evitaria sobreposição dos números. Além disso, os números do conselho cobrem, a princípio, todas as empresas, incluindo, Tim, Claro, Oi e Net, além da Vivo. A discrepância foi destaca na segunda edição do relatório “Vigilância Sobre as Comunicações no Brasil”, publicado na segunda-feira (29), pelo centro de pesquisas Internetlab. 

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A legislação brasileira não exige das empresas operadoras a publicação de relatórios de transparência, o que tampouco é prática no setor. Não há dados disponíveis sobre quantos requerimentos de interceptações as demais empresas do setor recebem no Brasil.

O  Justiça & Direito entrou em contato com o CNJ, a Anatel e a Vivo - que faz parte do grupo da Telefônica no Brasil. A Vivo informou que, entre os 326.811 requerimentos, estão pedidos de renovação da interceptação, o que, a princípio, não permitiria concluir um número de alvos operados pela empresa e interceptados a pedido da Justiça.

O CNJ afirmou, por telefone, que está trabalhando para melhorar o Sistema Nacional de Controle de Interceptações. 

A ANATEL informou que não dispõe desses dados nem exige que as empresas os informem.

Interceptações Telefônicas

O inciso XII do artigo 5º da Constituição Federal garante a inviolabilidade do sigilo das comunicações, mas abre uma exceção para as interceptações telefônicas, na forma da Lei 9.296/1996, que estabelece requisitos e procedimentos rigorosos para a polícia ou o Ministério Público (MP) grampearem telefones, sempre com autorização judicial. 


Art. 5º (...) XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;

Em 2008, o CNJ editou a resolução 59, com o objetivo de padronizar os procedimentos seguidos pelo sistema judiciário nos casos de interceptação. A princípio, o caminho de um grampo é longo. A autoridade que investiga deve solicitar uma autorização do Poder Judiciário, que abre vistas para um manifestação do MP. Se deferido o pedido, o juiz envia para operadora um mandato e avisa o investigador, que envia então para a operadora um ofício complementar com informações técnicas. A operadora faz o grampo e o conteúdo das conversas e demais informações são enviadas para o sistema da polícia, que armazena e cataloga as informações. Cada pedido de prorrogação do grampo, por parte da polícia, deve seguir o mesmo procedimento.

“A única coisa que não precisa de autorização judicial é para descobrir os dados cadastrais. Precisa de requerimento, com autorização judicial, para a quebra do sigilo telefônico – chamada conta reversa, que é saber quem ligou e para onde ligou –; para a interceptação telefônica; e para a prorrogação da interceptação”, explica Ricardo Sidi, advogado, mestre em processo penal pela USP e autor do livro A interceptação das comunicações telemáticas no processo penal

“A discrepância nos números da Vivo e do CNJ talvez se deva a alguma diferença de metodologia entre o CNJ e a empresa. Mas falta muita transparência nesse campo, inclusive para conferir isso”, afirma Danilo Doneda, advogado e professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). “O volume de pedidos de interceptação no Brasil é imenso, mesmo se levarmos em conta só os números do CNJ, o que gera um custo para as empresas de telefonia, que acaba diluído entre todos os consumidores”, aponta. 

“Os setores que fazem isso nas companhias são secretos, é um tabu nas companhias, ninguém entra lá a não ser os funcionários autorizados”, completa. “A polícia costuma pedir primeiro a quebra do sigilo e, no final, pode nem pedir a intercepção. Ouvir as gravações e transcrevê-las dá muito trabalho para a polícia”, conta ainda Sidi. 

“A percepção dos advogados criminais sempre foi a de que existe uma caixa-preta das intercepções. Por exemplo, antes do sujeito atender, o microfone aberto já captando a conversa ambiental, às vezes as gravações são anuladas porque algumas ligações são captadas fora do período autorizado, há casos de gravações que sumiram, o que o sistema não deveria permitir, segundo a polícia”, diz Sidi. “Mas nós não temos como fazer a fiscalização que a defesa costuma fazer da procedência das provas. É tudo muito restrito. Existe uma dificuldade enorme de se obter fontes sobre os métodos exatos do que a polícia faz”, afirma. 

“Quando escrevi meu livro, até procurei fabricantes dos sistemas Guardião e Vigia, das empresas que fornecem ao governo, mas os eles alegaram o sigilo das informações”, relata.

 

Dados armazenados 

Cada vez menos as pessoas falam ao telefone, à medida que as conversas por WhatsApp passam a dominar a vida cotidiana. Mas o que é óbvio para muitas pessoas ainda é polêmico nos tribunais brasileiros. Para ter acesso ao conteúdo das conversas de um telefone fixo ou móvel, por meio do “grampo”, é necessário seguir os rigores da Lei das Interceptações. Já para ter acesso a todos os dados armazenados no celular, incluindo as fotos e as conversas, basta à polícia ter acesso ao aparelho numa mera busca e apreensão. 

No Recurso em Habeas Corpus nº 75.800, relatado pelo ministro Félix Fischer do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em 2016, o tribunal entendeu que “a obtenção do conteúdo de conversas e mensagens armazenadas em aparelho de telefone celular ou smartphones não se subordina aos ditames da Lei 9.296/96”. Para o STJ, isso ocorre porque a proteção do inciso XII do artigo 5º da Constituição Federal destina-se apenas à comunicação dos dados, e não aos dados em si, armazenados nos dispositivos. 

A decisão do STJ que, nesse caso, discutia a proteção de dados de celulares apreendidos pela operação Lava Jato baseou-se em um precedente do STF que, em 2005, considerou regular a apreensão dos dados armazenados em computadores apreendidos pela polícia. De acordo com o acórdão do STF, relatado pelo ministro Sepúlveda Pertence, “a proteção a que se refere o art. 5º, XII, da Constituição, é da 'comunicação de dados' e não dos 'dados em si mesmos', ainda quando armazenados em computador”. 

Essa interpretação nasceu de um artigo publicado em 1993 pelo jurista Tércio Sampaio Ferraz Junior, professor aposentado da USP. No entanto, Sampaio Ferraz reconheceu, em entrevista ao Justiça & Direito, que tinha em mente uma disputa sobre a obrigação de operadoras de cartão de crédito de fornecer ou não os dados cadastrais dos clientes, como nome, endereço e filiação. “[Os dados] Não iam muito além disso”, diz. 

Diante das mudanças tecnológicas das últimas duas décadas, o jurista reconhece que os tribunais brasileiros estão “aplicando conceitos velhos” a um mundo novo. “Essa tese fica discutível hoje, quando pensamos na noção de dados. Minha posição implicava a possibilidade de separar a comunicação da sua base, do seu substrato”, afirma. 

O professor Danilo Doneda concorda com o diagnóstico. “Essa discussão ainda é muito incipiente no Brasil, embora ela tenha vindo à tona pela primeira vez no impeachment do Collor, quando apreenderam os computadores do PC Farias”, afirma. “Hoje grande parte das nossas comunicações e dos nossos dados deixa traços que têm um valor intrínseco. Alguns dados podem revelar coisas com mais clareza do que o conteúdo de uma conversa. A interpretação que os tribunais adotaram é da época pré-digital”, completa Doneda.

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