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Chegada de Hugo Chávez ao poder, em 1999, encerrou a “Quarta República”, referência de um passado melhor para a geração que hoje deixa a Venezuela. | Leo Ramirez/AFP
Chegada de Hugo Chávez ao poder, em 1999, encerrou a “Quarta República”, referência de um passado melhor para a geração que hoje deixa a Venezuela.| Foto: Leo Ramirez/AFP

Muitas vezes, cada vez com mais frequência, os alunos do professor de Sociologia da Universidade Central da Venezuela (UCV) Ricardo Marcano lhe perguntam como era a Venezuela na qual seus pais cresceram e se tornaram profissionais independentes. Os jovens querem saber, movidos pela curiosidade – e, também, pela tristeza – que país existiu no passado recente e que hoje parece tão distante.

As respostas de Marcano confirmam que ali já foi uma terra de oportunidades; segundo o professor, a maioria dos estudantes conclui que “teria gostado muito de conhecer esse país”. Mas a Venezuela de hoje os expulsa, em massa, para destinos variados: Espanha, Chile, Argentina, Estados Unidos, Peru, Colômbia, Panamá e Uruguai são alguns dos mais procurados.

De acordo com uma pesquisa do professor da UCV Tomás Páez Bravo, intitulada “A Diáspora Venezuelana”, nos últimos 15 anos cerca de 2 milhões de venezuelanos rumaram para o exterior. As despedidas no aeroporto internacional de Maiquetía, o principal do país, são frequentes. Há duas semanas, Carlos de Pablos foi até lá acompanhar o segundo de seus quatro filhos que decidiu ir embora. Para este funcionário de um escritório de finanças de Caracas, a opção dos jovens é compreensível: apesar da dor que provoca a distância, ele entende que é “a única chance de terem uma vida independente”. “Meu filho era formado em Comunicação, tinha três empregos e nem assim podia pensar em alugar um apartamento ou comprar um carro. Isso tornou-se impossível. Ele se mudou para a Espanha, com a namorada”, conta um resignado Carlos.

2 milhões de venezuelanos

deixaram o país em 15 anos

A jornalista Sarai Coscojuela, 27 anos, também escolheu a Espanha para recomeçar. Com viagem marcada, ela hoje mora com os pais, trabalha no jornal Tal Cual, também como freelancer. O que ganha, conta, “cobre apenas os gastos com alimentação”. “O que nos expulsa é, principalmente, a crise econômica. Claro, também a insegurança, eu mesma sofri três assaltos recentemente. Sei que será difícil, mas estou disposta a encarar essa aventura. Aqui não podemos mais viver”, disse Sarai, que em maio embarca rumo a Madri com o namorado.

Ela, como muitas venezuelanas, tem dificuldades até para conseguir pílulas anticoncepcionais nas farmácias: “Há seis meses não encontro em lugar algum. Não são só as limitações para ter uma vida independente, é tudo”, resume a jornalista, que viu amigos partirem para outros países da América do Sul e Europa, além dos EUA.

Escassez de produtos na Venezuela não poupa ninguém

Os mais pobres enfrentam filas quilométricas em supermercados para achar prateleiras vazias; classes média e alta pagam mais caro pelos produtos ou recorrem a contrabandistas

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Passado democrático

Para a geração que está deixando a Venezuela, a referência de um passado melhor é a chamada Quarta República, que começou com a queda da ditadura de Marcos Perez Jiménez, em 1958, e estendeu-se até a chegada de Hugo Chávez ao poder, em 1999. Durante todo esse período, esteve vigente o Pacto de Punto Fijo, selado pelos partidos Copei e Ação Democrática para garantir a estabilidade política no país. “Naquela época, existia mobilidade social, os jovens podiam progredir, algo que desapareceu totalmente”, explica o professor Marcano.

A investigação realizada por Páez Bravo mostrou que a maioria dos emigrados gostaria de retornar ao país, mas a condição para isso seria uma mudança de modelo político. Os cerca de 100 entrevistados pelo pesquisador da UCV afirmaram que, enquanto as condições políticas, econômicas e sociais não melhorarem, permanecerão no exterior. Mas sempre com o desejo e a disposição de ajudar a reconstruir a Venezuela.

Alguns, como o médico José Luis Oreja, 25 anos, ainda estão meditando sobre ficar ou partir. Não é uma decisão fácil, disse ele, apesar da crise cada vez mais profunda. “Dos estudantes que se formaram comigo, cerca de 80% já foram embora. Praticamente não tenho mais amigos morando no país. É horrível”, comentou Oreja, que ainda está se especializando na UCV e estabeleceu o fim deste ano como prazo para definir seu futuro. Ao mesmo tempo, o médico tem receio de expressar sua insatisfação publicamente: “Já não vou às manifestações. Uma vez atiraram um tijolo que por pouco não pegou minha cabeça”.

28.476 mortes violentas

foram registradas na Venezuela em 2016. Segundo a ONG OVV, são 92 assassinatos para cada 100 mil habitantes.

Para ele, os jovens que não viveram a Quarta República acumulam “18 anos de decepções” e não veem saída do modelo atual. “Para mim, o pior é viver numa mentira, num país que nós sabemos que passa fome com um governo que nega tudo. Vejo crianças desmaiando na minha frente por falta de comida”, afirmou Oreja.

Os pais destes jovens não pensam, ainda, em seguir o mesmo caminho. Muitos já compraram sua casa própria, têm carro e aprenderam a viver estressados para conseguir comida, medicamentos e outros produtos básicos. A crise venezuelana está rachando as famílias, separando pais de filhos e muitos amigos.

Este é um fenômeno social inédito para um país que, no passado, recebeu imigrantes e exilados de ditaduras do Cone Sul. Em 1975, a Venezuela foi a escolha, por exemplo, do jornalista e escritor Tomás Eloy Martínez, que vinha da Argentina em busca de ares mais democráticos e tranquilos.

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