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Trump enfrenta os desafios da Coreia do Norte e Síria, mas também tem que superar a lacuna de credibilidade que ele próprio criou | Jim Watson/AFP
Trump enfrenta os desafios da Coreia do Norte e Síria, mas também tem que superar a lacuna de credibilidade que ele próprio criou| Foto: Jim Watson/AFP

Em tempos de crise, credibilidade é a moeda de troca mais valorosa do presidente norte-americano. Uma coisa é um parceiro estrangeiro duvidar do julgamento do líder, mas totalmente debilitante quando não põe fé em sua palavra.

No momento, Donald Trump enfrenta os desafios da Coreia do Norte e Síria, mas também tem que superar a lacuna de credibilidade que ele próprio criou. Sua insistência em continuar sendo o maior consumidor e fornecedor de notícias falsas e teorias de conspiração não é só corrosiva à nossa democracia, como também perigosa para a segurança nacional. Cada tuíte averso aos fatos mina sua credibilidade em termos domésticos e ao redor do mundo – fato crucial quando a desinformação é a arma preferida de nossos adversários mais perigosos.

Parte do problema é que o dedo irrequieto de Trump não resiste à fanfarronice. Uma série de recadinhos presidenciais – “A Coreia do Norte está se comportando mal”; “a Coreia do Norte está procurando confusão”; “Se a China não ajudar, resolveremos a questão sem ela! EUA!”; “A busca da Coreia do Norte por um ICBM não vai se concretizar!” – deu a Pyongyang a rara chance de assumir uma posição conciliatória. “Trump está sempre fazendo provocações com suas palavras agressivas”, disse seu vice-ministro do Exterior.

Igualmente problemática é a relação complicada de Trump com a veracidade, documentada quase diariamente por organizações independentes de verificação de fatos

Com esse tipo de bravatas, está arriscado também a ver os norte-coreanos levarem suas palavras a sério e cometer erros de cálculo à altura. Ameaças inconsequentes de ataques militares preventivos podem fazer com que Kim Jong-un atire primeiro para pensar nas consequências depois – atingindo a Coreia do Sul com armas convencionais, por exemplo, só para lembrar o mundo do que é capaz, se os EUA quiserem eliminar seu programa nuclear. Ou seja, é o caminho mais rápido para o conflito com um adversário volátil e munido de armas nucleares.

Igualmente problemática é a relação complicada de Trump com a veracidade, documentada quase diariamente por organizações independentes de verificação de fatos. Os maiores destaques incluem sua insistência em alegar que Barack Obama grampeou seus telefones; um ataque terrorista inexistente que teria ocorrido na Suécia; a dívida monumental que a Alemanha tem com a OTAN; os mais de cem detentos de Guantánamo soltos por Obama que voltaram ao campo de batalha; os democratas que inventaram as alegações de que os russos teriam influenciado nossas eleições. Com esses boatos, está arriscado a ver desaparecer sua capacidade de combater a doutrinação de nossos adversários.

O presidente foi elogiado, e com razão, por reagir na Síria contra o regime de Assad e seu uso de armas químicas, mas o ataque levou a uma guerra de informações na qual Assad e seus apoiadores russos tentaram se eximir da culpa por tamanha atrocidade.

Suas táticas variaram da tentativa de impingir cenários alternativos – por exemplo, alegando que foram os aviões norte-americanos que bombardearam um galpão terrorista cheio de gás – à afirmação de que as evidências oferecidas pelos EUA eram fabricadas. “Não sabemos onde aquelas crianças foram mortas. Será que foram mesmo?”, especulou Assad.

Cada tuíte averso aos fatos mina sua credibilidade em termos domésticos e ao redor do mundo

Putin é mestre nesse jogo, lançando falsidades a esmo para confundir o consumidor casual de notícias enquanto cria uma equivalência falsa entre a imprensa, os governos ocidentais e o seu próprio. Um exército de bots, trolls e a RT, rede internacional de doutrinação do Kremlin, levam sua bandeira de falsidade ao redor do mundo. Como resultado, todas as fontes de informações são suspeitas e não há verdade objetiva.

Durante a crise causada pela agressão militar russa contra a Ucrânia, em 2014, tive que dar duro, com colegas da administração Obama, para convencer os povos de outros países que as tropas russas estavam de fato na região leste do país, em Donbass, que Moscou estava armando e dirigindo os separatistas e que foram eles, usando um lançador de mísseis levado da Rússia, que derrubaram um avião de passageiros da Malaysian Airlines, matando todos a bordo.

Passamos horas negociando com a comunidade de inteligência para definir as informações que poderíamos divulgar, requisitando evidências de fonte aberta e trabalhando com apresentações baseadas em fatos para nossos aliados e a imprensa.

As campanhas doutrinárias de Putin tornaram nosso trabalho mais difícil que o previsto, mas, no fim das contas, tínhamos um trunfo inestimável: a credibilidade de Obama. Os líderes estrangeiros confiavam em sua palavra, mesmo que não apoiassem suas políticas.

A palavra do presidente norte-americano me basta

Charles De Gaulle sobre John Kennedy, durante a Crise dos Mísseis em Cuba

John F. Kennedy demonstrou o valor da credibilidade presidencial no auge da crise dos mísseis em Cuba, em outubro de 1962, quando enviou emissários aos aliados norte-americanos para garantir apoio para a quarentena da ilha. E designou o ex-Secretário de Estado Dean Acheson para lidar com o parceiro mais espinhoso de Washington: Charles de Gaulle, da França.

Quando Acheson se ofereceu para mostrar ao francês imagens feitas por aviões espiões que corroboravam a alegação de que a União Soviética tinha instalado mísseis nucleares a pouco menos de 150 km da costa dos EUA, de Gaulle levantou as mãos e disse que não precisava de tais provas.

“A palavra do presidente norte-americano me basta”, disse ele.

Se Trump continuar a espalhar informações falsas sobre questões essenciais e irrelevantes, cederá essa vantagem e os EUA serão vistos como qualquer outro país, o que é exatamente o que nossos adversários querem. Só que isso também vai complicar a capacidade de seu governo de convocar outros países contra ameaças à nossa segurança nacional.

Todo país tem uma mitologia referente à sua criação; a nossa tem a ver com o encontro do primeiro presidente com uma cerejeira e a recusa de contar mentiras.

Trump ganharia muito se fosse buscar inspiração nessa história, que explica por que os EUA são diferentes dos outros países do mundo e sua política externa é tão efetiva.

*Antony J. Blinken foi assessor de Segurança Nacional do governo Obama.

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