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| Foto: Juan Barreto/AFP

Como toda terça-feira, dia da semana em que seu número de documento lhe permite comprar nos supermercados pagando os preços fixados pelo governo, Abraham Luis Gil, desempregado e pai de quatro filhos, sai de seu apartamento em Guatire, estado de Miranda, a cerca de 30 quilômetros de Caracas, para enfrentar uma fila demorada. Sua meta parece simples: voltar para casa com produtos básicos como farinha, arroz e açúcar. No entanto, depois de duas horas e meia de espera, quando finalmente chega sua vez, as prateleiras estão vazias. Não é algo pouco comum, contou Abraham na porta do supermercado. Para ele, como para outros milhões de venezuelanos, conseguir comida a preços econômicos tornou-se verdadeiro pesadelo.

Basta circular por Caracas para ver as filas de pessoas esperando para comprar alimentos. Muitas não trabalham e muitas outras acabam faltando no dia em que podem comprar, porque o mais normal é perder várias horas indo a diversos supermercados na procura por produtos básicos. “Tenho dois filhos morando na Venezuela, minha mulher e os dois menores foram embora para a Colômbia. Tem dias em que não consigo nada, não tenho mais do que um pão pra dar a eles”, contou este motorista de caminhão, que há três meses está sem trabalho.

Seu pequeno apartamento em Guatire já não tem geladeira, vendida para pagar a passagem de avião da mulher e dois filhos para San Cristóbal, de onde viajaram de ônibus para a Colômbia. O micro-ondas ainda está, mas Abraham também decidiu se desfazer dele por 50 mil bolívares (cerca de US$ 14, com a cotação do mercado paralelo) para pagar contas e sobreviver com os dois filhos que ainda estão com ele. “Minha família está sofrendo muito. Minha mãe morreu há nove meses por falta de remédios para a pressão alta”, disse Abraham, que já perdeu as esperanças de uma vida melhor em seu país.

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Assim é o dia a dia de milhões de pessoas, numa Venezuela na qual a taxa de pobreza alcança 81,8%, a mais alta de sua história. Os pobres carecem de recursos e, com os poucos que têm, muitas vezes não conseguem adquirir alimentos essenciais pela dramática escassez que assola o país. Uma realidade que o governo do presidente Nicolás Maduro e seus seguidores tentam esconder, limitando o trabalho de jornalistas locais e estrangeiros. É arriscado tirar fotos ou filmar as já tradicionais filas em Caracas ou em qualquer outro lugar. Militantes chavistas hostilizam jornalistas e o risco de violência é grande.

Classe média

Para a classe média, comer também é um drama. As famílias têm mais margem financeira para pagar preços não regulados pelo governo, mas o problema do desabastecimento é igual. “Meu dia é quinta-feira, e o panorama é sempre o mesmo. Horas e horas nas filas, e quando não consigo o que preciso, acabo indo a um supermercado de melhor categoria e pagando valores mais altos”, disse a aposentada Yurelvy Vera, 54 anos. A diferença de preço é expressiva: um quilo de farinha de milho (usada para fazer as arepas venezuelanas) custa 1.690 bolívares nos supermercados com preços regulados e até 5 mil nos privados. “Minha aposentadoria é de 70 mil bolívares e vivo com minha mãe, também aposentada, e um irmão. Está duro chegar ao fim do mês”, desabafou Yurelvy, que mora no bairro El Cafetal.

As classes mais altas também tiveram de inventar mil e uma estratégias para abastecer-se. A dona de casa Maria Teresa de Galdo, que vive em Altamira, apelou para um novo fenômeno no país: os bachaqueros (o nome vem de bachaca, um inseto similar à formiga). Trata-se de uma profissão ilegal, que funciona, basicamente, através de grupos de WhatsApp. Cada bachaquero tem seu grupo e, através do aplicativo, informa que produtos tem disponível todos os dias, a preços obviamente bem mais caros que no supermercado. A grande incógnita é saber onde eles conseguem os alimentos e medicamentos. A suspeita, cada vez maior, é de que muitos tenham contatos com militares, encarregados do abastecimento do país.

“O bachaquero ajuda, mas mesmo assim eu vou a supermercados e farmácias, estou sempre procurando coisas e, quando acho, compro tudo o que estiver disponível”, disse Maria Teresa, que, como muitos de classe alta, aproveita as viagens próprias e de amigos e familiares para o exterior para trazer de tudo, de sabão em pó a papel higiênico.

Pessoas como ela também compram através de sites nos Estados Unidos, que enviam os produtos para a Venezuela. “O estresse é grande, estamos sempre correndo e preocupados”, lamentou Maria Teresa, que tem um depósito na garagem do prédio, onde guarda seu estoque.

Escambo

As estratégias de sobrevivência desenvolvidas pelos venezuelanos incluem até mesmo o escambo. Foram criadas páginas no Facebook, como a “Trueques CCS” (trueque significa escambo e CCS, Caracas), na qual as pessoas trocam, por exemplo, fraldas por medicamentos. A servidora pública Alejandra Martínez usa frequentemente esta ferramenta. “Com meu salário de 35 mil bolívares e o de meu marido, mais ou menos do mesmo valor, não podemos nem sequer comprar no supermercado. Comemos o que o governo nos dá na sacola mensal de produtos, e o que falta conseguimos pelo escambo”, contou Alejandra. O bachaqueio, para ela, é impagável: “Com meu salário, eu conseguiria comprar cinco produtos, no máximo”.

Quando Maduro chegou ao poder, em 2014, a pobreza atingia 48,4% e a comida ainda circulava com certa normalidade. Hoje, quatro anos depois, o país tem quase o dobro de pobres e os alimentos são cada vez mais escassos. Estima-se que 93% das famílias não tenham recursos para comprar comida, e o índice de escassez de produtos básicos no país é de 66%. O Fundo Monetário Internacional calculou em 475% a inflação de 2016, e estima índice de 1.660% para este ano.

Caos venezuelano afeta artistas

  • Caracas

Na década de 80, ela estrelou uma das novelas mais famosas da Venezuela, A Dona, exportada para muitos países e considerada símbolo dos anos de ouro da televisão nacional. Há dois anos, profundamente comprometida com a luta da oposição venezuelana, a atriz Amanda Gutiérrez retornou ao teatro com a peça Venezuelanos Desesperados, na qual, junto com outros artistas, denuncia os aspectos mais dramáticos da crise: a fome, o exílio, a insegurança e a perseguição a todo aquele que pensa diferente. Apesar de o país praticamente ter perdido sua vida cultural, a peça faz sucesso, segundo Amanda, “porque as pessoas se identificam”.

Não é fácil ser artista na Venezuela. Uma das regras básicas para quem mora em Caracas, por exemplo, é não circular na rua depois das 18 horas ou, no máximo, 19 horas. A capital venezuelana é uma das mais violentas da América Latina. Como fazer, então, para ir ao cinema, ou ao teatro? Isso sem contar as limitações econômicas. O ingresso para a peça de Amanda custa em torno de 7 mil bolívares, num país no qual o salário mínimo é de 41 mil bolívares.

“Tenho muitos amigos artistas trabalhando em qualquer coisa. Eu mesma, há alguns anos, vendi comida para sobreviver. Não tive outra alternativa”, conta Amanda. Ela lembra, com nostalgia, que a Venezuela chegou a produzir mais de dez novelas por ano e hoje, no melhor dos casos, produz uma. “Trabalhei no canal RCTV, que Chávez fechou, deixando 1,5 mil famílias sem sustento. Na época, inventei uns rolos de salmão para vender entre amigos”, disse a atriz.

Amanda não titubeia em referir-se ao governo do presidente Nicolás Maduro como “uma ditadura”, apesar dos insultos e ameaças que recebe nas redes sociais. Outra mulher combativa é a pianista venezuelana Gabriela Montero, famosíssima dentro e fora de seu país. Gabriela não pisa em Caracas há sete anos, pois teme ser perseguida e até presa. “Acho que minha voz é mais valiosa no exterior. Aproveito cada concerto que faço para denunciar a ditadura em que vivem os venezuelanos”, afirmou Gabriela, por telefone, de Barcelona.

Segundo a pianista, com exceção dos músicos do Sistema de Orquestras estatal, os artistas do país estão vivendo em condições muito precárias. “A Venezuela está asfixiada e a cultura é parte do país. Não temos mais vida cultural, é muito triste”, lamentou.

Em Caracas, fazer um programa cultural virou luxo e, ao mesmo tempo, uma aventura arriscada se for à noite. Os poucos teatros e cinemas que continuam funcionando são frequentados, na maioria dos casos, à tarde.

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