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John Fisher Burns faz entrevistas em Bagdá no dia em que Saddam Hussein foi capturado, em 2003 | Michael Kamber/The New York Times
John Fisher Burns faz entrevistas em Bagdá no dia em que Saddam Hussein foi capturado, em 2003| Foto: Michael Kamber/The New York Times

A luz desaparecia nas colinas junto ao Arno, e meu amigo estava sentado em um catre chinês com dossel, em uma linda casa antiga em sua aldeia natal perto de Florença.

Seu nome era Tiziano Terzani, um dos escritores mais famosos da Itália. Naquele fim de semana, uma década atrás, ele era o anfitrião, com sua mulher, Angela, no casamento de sua filha.

Aos 65, Tiziano estava nas últimas semanas de um câncer terminal e aproveitou um almoço tranquilo no dia seguinte ao casamento para oferecer, de seu lugar no catre, uma despedida pessoal e um pouco da sabedoria que acumulou em 40 anos como repórter itinerante para a revista alemã “Der Spiegel” e os principais jornais italianos.

“Nunca esqueçam”, disse à reunião de músicos, médicos, políticos, empresários, escritores, diplomatas e repórteres. “Não importa quão longe você viajou, mas o que você trouxe de volta.”

Tenho me lembrado de Tiziano com especial afeição, porque também alcancei o marco de 40 anos em minha carreira no jornal “The New York Times” e me aposentei recentemente, seis meses depois do meu 70° aniversário.

Nossas carreiras, a de Tiziano e a minha, foram semelhantes de um modo improvável: passamos anos fazendo sombra um ao outro na Rússia soviética e na China de Mao Tsetung e Deng Xiaoping e fazendo crônicas das guerras, assassinatos e outros desastres na Índia, no Paquistão, na Coreia do Norte, no Afeganistão e em países mais distantes. Ambos fomos presos na China, sob acusações que mais tarde as autoridades locais admitiram ser falsas, e ambos compartilhamos, no mesmo momento nos anos 1990, o mesmo câncer —linfoma não Hodgkin— e o mesmo oncologista em Nova York.

Agora a roda girou, e chegou a hora de começar a encontrar o desafio que Tiziano emitiu depois da conversa habitual de seus convidados sobre até onde tínhamos viajado, as maravilhas e os sofrimentos que relatamos e os governantes mais fascinantes, ou cruéis, por cujos reinos havíamos passado.

Era uma boa coisa, disse Tiziano, ter acumulado tantos vistos, todos aqueles lugares exóticos, tantas histórias de coragem ricamente temperadas.

Mas o que trouxemos de volta?

Em meu caso, espiando do alto de minha mochila, há algo que se poderia esperar de um repórter que passou longos anos em alguns dos lugares mais horríveis do mundo na época. O que aqueles anos geraram em mim foi uma repulsa pela ideologia, sob todos os seus disfarces.

Da Rússia soviética à China de Mao, do Afeganistão governado pelos taleban à repressão da África do Sul na era do apartheid, aprendi que não há limite para a loucura, o mal e o sofrimento que podem afligir qualquer sociedade com uma ideologia dominante e nenhuma perfídia que não possa ser justificada ao se manipular os preceitos de um Mao ou de um Marx, de um profeta Maomé ou de um Kim Il-sung.

Como Tiziano certamente sabia, destilar certo grau de sabedoria do trabalho de toda uma vida não é o mais fácil dos desafios, não apenas porque supõe a inteligência para extrair ordem e sentido de anos de experiências acumuladas —da repressão pelas forças de esquerda e de direita, da propensão do homem à crueldade contra o homem e das forças compensadoras de humanidade que suportam os piores tipos de malevolência.

Há um medo, também, de entregar-se ao que os repórteres de minha geração foram instruídos a evitar: abandonar os ditames da reportagem objetiva pelos perigos da presunção moral e, com ela, a arrogância.

O que um repórter transmite brota, inevitavelmente, das crenças e princípios que ele carrega. Para mim, estes foram definidos pelo editor do “NYT” que primeiro me destacou para o exterior em 1976, A. M. Rosenthal. Abe exigia um “jornal honesto”.

Ele emitiu esse lema antes de minha primeira missão no estrangeiro: a África do Sul do apartheid, um país justamente considerado um caso evidente de opressão. Mas mesmo lá a necessidade de manter o jornal honesto exigia, disse Abe, que não contássemos apenas a história do oprimido, mas a de todos os outros atores principais na tragédia da África do Sul, incluindo a população africâner que ergueu a fortaleza de preconceito racial que o país havia se tornado.

Essas histórias poderiam nos surpreender, dizia ele, e nos dar um sentido mais tátil da verdade.

O compromisso com a justiça e o equilíbrio foi nossa regra áurea —e algo em que eu, assim como outros repórteres, certamente falhei quando minhas paixões foram mais intensas.

Aqueles momentos, temo, talvez devam incluir, para mim, as horas depois que as tropas americanas arrasaram Bagdá, em abril de 2003.

Na época, eu testemunhei e compartilhei a extrema emoção do público diante da queda de Saddam Hussein, que deu lugar quase da noite para o dia a graves premonições sobre o caos sectário assassino que se seguiria.

Minha impaciência com a ideologia se transferiu nos últimos anos aos meus embates com as sociedades ocidentais que são meu lar: à generalizada propensão das pessoas que não têm a desculpa da dureza brutal que é uma constante no mundo totalitário a aceitar os “ismos” formulares da esquerda e da direita que mitigam e, na verdade, sufocam o livre pensamento.

A falência da abordagem que divide o mundo em campos à esquerda e à direita foi uma lição que aprendi cedo. Uma missão na China no início dos anos 1970 me expôs às doutrinas assassinas do “Pensamento” de Mao Tsetung, com vítimas que chegaram aos milhões. Uma temporada em Moscou no início dos anos 1980, 30 anos após a morte de Stalin, relembrou as tristezas que uma forma pervertida de marxismo-leninismo impôs à Rússia soviética, com seu terrível saldo de milhões de mortos.

Meus cinco anos na África do Sul encerraram suas próprias lições. Quanto mais eu vi o apartheid, mais ficou evidente que o aparelho de repressão de direita —a ideologia distorcida, o papel invasivo da polícia secreta, a desumanização de toda uma população— pouco diferia das ditaduras de esquerda.

Se a ideologia foi a praga do século 20, continua sendo no 21.

Talvez o mais assassino de todos os Estados em nosso tempo seja a Coreia do Norte da família Kim, com milhões de mortos de fome e privação.

As decapitações e incinerações cometidas pelo Estado Islâmico têm origem em outro tipo de pensamento extremista e corrupto.

Minha experiência foi que, quando interessa aos objetivos do poder, a ideologia pode ser invocada para provar que 2 mais 2 são 5, ou qualquer número que interesse ao Estado, e exigir que todos aprovem a loucura.

É uma coisa realmente assustadora entrevistar um cientista nuclear graduado, ou um importante cirurgião do cérebro, ou um pianista de concerto, como fiz na China sob o domínio de Mao, e ouvi-los, como párias ideológicos, justificar com total convicção as brutalidades voltadas contra eles mesmos por seus perseguidores enlouquecidos pela ideologia.

Em outros lugares, a loucura era do tipo que convida a uma reação de risos de escárnio, se isso não fosse potencialmente fatal aos fiéis ao sistema, ou os que pretendiam sê-lo.

Na Coreia do Norte, quando Kim Il-sung ainda era vivo, havia um novo hospital construído em seu nome em Pyongyang, carregado com dezenas de milhões de dólares dos mais novos equipamentos americanos, suíços e alemães, mas nenhum paciente.

E por que não? “Como já explicamos”, disse um médico, “o grande líder do povo coreano, camarada Kim Il-sung, cuidou tanto da saúde de seu amado povo que ninguém fica doente.”

Nunca? “Não, nunca”, foi a resposta.

Meu catálogo desses momentos nas horríveis ditaduras do mundo poderia encher um livro, ou três. Mas, voltando para casa, nos países do Ocidente, onde ninguém morre por causa de um lapso momentâneo de fidelidade a um primeiro-ministro ou presidente, pode ser deprimente, de modo indescritível, ouvir os seguidores de um determinado credo político —seja de esquerda ou de direita— adotarem as certezas infalíveis comuns nos Estados totalitários.

Nossos direitos de pensar e falar livremente foram conquistados a grande custo, e os usamos mal sob nosso próprio risco.

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