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O preço obtido recentemente pela obra de Picasso ‘’ Les Femmes d’Alger (Versão O) ‘’ representou um ganho de 462 por cento desde 1997. | Timothy A. Clary/Agence France-Presse — Getty Images
O preço obtido recentemente pela obra de Picasso ‘’ Les Femmes d’Alger (Versão O) ‘’ representou um ganho de 462 por cento desde 1997.| Foto: Timothy A. Clary/Agence France-Presse — Getty Images

Ainda não sabemos quem aceitou pagar US$ 179,4 milhões (R$ 538,2 milhões) por uma tela de Picasso num leilão neste mês —nem de onde veio o dinheiro, ou o que motivou essa(s) pessoa(s) a gastar(em) mais do que qualquer um já gastou para arrematar uma única obra de arte.

O que sabemos: que a astronômica valorização das obras de arte mais procuradas na última década é também a história da crescente desigualdade global. Na sua essência, isso é o que há de mais simples na matemática econômica.

A oferta de telas de Picasso ou esculturas de Giacometti (uma das quais foi vendida por US$ 141 milhões no mesmo leilão) é fixa.

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Mas o número de pessoas com disposição e recursos para comprar arte de altíssimo nível está aumentando, graças à distribuição da riqueza extrema.

Uma das mais principais conclusões dos economistas que estudam a desigualdade é que a riqueza e a renda no topo do topo são “fractais”. Ou seja, à medida que se examina em maior proximidade a ponta da distribuição de riqueza, padrões se repetem em escalas cada vez menores.

Sócios de escritórios de advocacia que estão no grupo do 1% com maior renda tiveram um aumento de rendimentos mais rápido do que dentistas bem sucedidos na faixa dos 10% mais ricos.

Mas, por uma margem semelhante, executivos-chefes de grandes empresas que estão entre o 0,1% com maior renda veem seus ganhos crescerem mais rapidamente que os advogados sócios de escritórios. Gestores de fundos de hedge na faixa dos 0,01% de maior renda superam os CEOs de forma semelhante.

E quem pode confortavelmente pagar mais de US$ 100 milhões por um Picasso —a faixa dos 0,001% mais ricos, digamos— está se saindo ainda melhor.

A moral da história

Quando Dan Price disse a seus 120 empregados no mês passado que aumentaria o pagamento dos trabalhadores de salário mais baixo para US$ 70 mil (R$ 210 mil) por ano, o vídeo de seu anúncio se tornou viral.

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É possível tirar essa conclusão lendo o trabalho dos economistas franceses Thomas Piketty e Emmanuel Saez. Ou examinando atentamente o mercado para as obras de certo pintor espanhol.

Suponhamos que ninguém gastaria mais de 1% do seu patrimônio líquido total em uma única pintura. Por esse cálculo, o comprador de “Les Femmes d’Alger (Versão O)”, tela pintada por Picasso em 1955, precisaria ter uma fortuna de pelo menos US$ 17,9 bilhões. Isso implicaria, com base na lista “Forbes Billionaires”, que há no mundo todo exatamente 50 compradores plausíveis.

Isso é para ser ilustrativo, não literal. Algumas pessoas estão dispostas a gastar mais de 1% da sua riqueza em uma pintura.

Steve Wynn, magnata dos cassinos, disse à Bloomberg que deu neste mês um lance de US$ 125 milhões por esse Picasso, o equivalente a 3,7% do seu patrimônio líquido estimado. A lista da “Forbes” também pode ter imprecisões, ou talvez faltem famílias que conseguiram manter suas fortunas em segredo.

Criando uma cultura euro-africana

Enquanto nos EUA a recente onda de confrontos letais entre policiais e homens negros desencadeou um novo debate sobre o racismo, na Europa a discussão a respeito da violência, da exclusão social e da imigração evita cuidadosamente a questão racial.

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Mas essa métrica bruta mostra o quanto o conjunto dos compradores de arte megarricos aumentou desde a última vez que esse Picasso foi leiloado, em 1997.

Descontada a inflação e adotando a nossa premissa de 1% do patrimônio líquido, seria preciso ter US$ 12,3 bilhões em dólares de 1997 para poder comprar essa obra. Olhando a lista da “Forbes” daquele ano, apenas uma dúzia de famílias em todo o mundo superava esse patamar.

Em outras palavras, o número de pessoas que, por essa métrica, poderia facilmente ter recursos para pagar US$ 179 milhões num Picasso mais do que quadruplicou desde que a pintura esteve no mercado pela última vez.

Isso ajuda a explicar o preço que a obra alcançou em 1997: meros US$ 31,9 milhões, o que em valores atuais são US$ 46,7 milhões. Simplesmente havia naquela época menos pessoas na estratosfera da riqueza capazes de disputar o leilão até fazerem o preço chegar ao nível que chegou em 2015.

Mais pessoas com mais dinheiro disputando uma oferta mais ou menos fixa de alguma coisa é uma situação que só pode resultar em aumento de preços. A mesma dinâmica se aplica a imóveis de luxo no centro de Londres ou com vista para o Central Park, ou para garrafas de Bordeaux 1982.

Sob um supermercado, uma história sinistra

Passando as gôndolas de acessórios para o cabelo no térreo do supermercado Monoprix, na esquina da Rue Réaumur e o Boulevard de Sébastopol, no 2« arrondissement, há uma porta em que se lê: “Entrada permitida somente para funcionários”.

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Isso ajuda a explicar por que “Les Femmes d’Alger” se valorizou 462% desde o seu leilão anterior, período em que o índice Standard & Poor’s 500 da Bolsa de Nova York rendeu 215%, incluindo dividendos reinvestidos. A comparação não é inteiramente adequada, já que a pintura exigiria gastos anuais em segurança, armazenamento e seguro, reduzindo seu retorno. Por outro lado, o Picasso fica mais bonito na parede da sala do que um prospecto de fundo mútuo.

O que isso significa para o futuro? Não existe almoço grátis, mesmo para as pessoas que pagam milhões por uma pintura. Os preços das obras de arte são vulneráveis à moda, é claro.

Dentro de alguns anos, Picasso poderá estar relativamente em baixa, e nesse caso o comprador anônimo deste mês poderá não ter retorno tão excepcional quanto o proprietário anterior.

Há riscos legais também. A China está coibindo a ostentação, o que poderá tolher a demanda por arte nos próximos anos.

Autoridades americanas e europeias podem intensificar seus esforços para impedir que o comércio de obras artísticas seja usado para lavar dinheiro ou sonegar impostos, como Nouriel Roubini diz ser comum.

Mas qualquer bilionário que pague quantias astronômicas por uma pintura ou escultura deve torcer acima de tudo para que se mantenha intacta a tendência de ampliação da desigualdade —ou seja, que a riqueza dos ultrarricos cresça mais rapidamente que a economia mundial como um todo.

Porque, enquanto isso acontecer, sempre poderá haver por aí outro comprador que alimente uma guerra de lances, como a do leilão deste mês.

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