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O primeiro erro foi reservar os ingressos de véspera, deixando 24 horas para o segundo: contar a alguém na cidade que ia ver “O Juiz”.

“Ah... “, diz uma amiga.

“O que foi?”

“Nada, é que alguém que saiu com o supervisor de roteiros – ou o instrutor de sotaques, não me lembro – me disse que a história foi reescrita umas 41 mil vezes.”

O ingresso não é reembolsável. Você adora Robert Duvall e uma vez encontrou Robert Downey Jr. no Starbucks durante o período que usava drogas e ele não podia ter sido mais simpático, então...

Depois de uns vinte minutos do início do filme os diálogos mudam completamente, dando a impressão de que as frases foram pescadas de vários gêneros diferentes. Depois de uma hora, então, você tem a impressão de que pediram para um batalhão da SWAT reescrever a trama.

Chegando em casa vi um e-mail de um amigo que morava em Nova York. “Acabei de ver ‘O Juiz’. Adorei!”.

Inveja. É o que você sente de seu amigo, que ainda tem a capacidade de se divertir com um filme. Trabalhar em Los Angeles arruinou qualquer chance de permitir que a ida ao cinema seja um programa legal.

Antes de me mudar para cá, eu adorava filmes. Era alegria pura poder me esquecer de tudo e curti-los no escuro.

Bons tempos aqueles. Cinco, dez, vinte anos em Los Angeles e você passa a sofrer as -ites e -oses do excesso de informação. Conhece tudo sobre a estrutura do roteiro, as observações do estúdio, orçamentos estourados, problemas dos atores, diretores demitidos. É como ver o filme antes da estreia.

Eu me lembro com clareza do fim da minha inocência cinematográfica: fazia três anos que trabalhava no show business e estava sentado em uma poltrona de corredor, em Westwood, entretido com a interpretação matadora de Jack Nicholson e o diálogo ágil de Aaron Sorkin em um filme de que estava gostando, quando um pensamento sorrateiro me surgiu na mente: Cara, esse filme devia ter se chamado “A Few Good Close-ups” (“Poucos closes bons”, brincando com o nome original de “Questão de Honra”, “A Few Good Men”).

Foi o tipo de ideia involuntária que passei a ter cada vez que via um filme de Hollywood, aquele cinismo de baixo-impacto que mostrou que eu já não conseguia mais me deixar levar. Antenas permanentes surgiram na minha cabeça, receptoras de sinais que apitam assim que veem a primeira cena esquisita, qualquer mudança explícita demais do personagem ou os truques de uma cena emotiva.

Mas Los Angeles é assim. Você tem que continuar indo ao cinema. Não dá para parar e se excluir de todas as conversas em todas as áreas da cidade.

Antes de “Gravidade” ser lançado, conheci o sujeito bacana cuja empresa fez os efeitos especiais do filme. “Acho que você vai gostar da grandeza dos efeitos visuais”, brincou ele, meio sério.

Mal as luzes do cinema se apagaram e lá vem George Clooney, preso por um cabo no espaço sideral, batendo papo com Sandra Bullock como se ela fosse a garota que tinha acabado de entrar no bar.

Ai, não, alerta de história paralela forçada!

Ele pergunta se há alguém esperando por ela em casa.

Ô, meu Deus, não. Tento me concentrar na beleza do cosmo...

Sandra diz que não há ninguém. A filha de quatro anos morreu.

E lá vem a avalanche de pensamentos irônicos/críticos involuntários: pelo visto a Warner Bros achou que o público não ia se identificar com uma mulher sozinha no espaço e, por isso, lhe “arranjaram” uma filha morta.

Mas não são só os filmes que tiram qualquer prazer na Guerra dos Veteranos de Hollywood.

Há também o cinismo da proximidade. (“Não preciso ver ‘Livre’, já encontro a Reese Witherspoon caminhando toda hora em Brentwood”.) Nos créditos de abertura de qualquer produção de estúdio grandes são as chances de você dar de cara com um nome que lhe é familiar – e não se iluda, o pessoal aqui raramente torce pelos conhecidos. Bem-vindo a Los Angeles, o único lugar do mundo em que a plateia quer que o filme fracasse.

Os filmes estrangeiros fazem sucesso porque provavelmente você não conhece ninguém que trabalhou neles — e se os créditos forem em coreano, então... quanto mais exótico, melhor.

É claro que todo ano há longas bons que conseguem filtrar tudo isso, mas mesmo quando aprecio um deles e não conheço ninguém que tenha trabalhado ali, a pureza da experiência fica comprometida por todos os detalhes que você (infelizmente) conhece.

Peter Mehlman é escritor e ex-roteirista de “Seinfeld”

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